Jair Bolsonaro eleito é bem distinto de Jair Bolsonaro candidato, para decepção de seus seguidores e tranquilidade dos brasileiros.
Invariavelmente, sob quaisquer circunstâncias em uma vibrante democracia, ao elegermos um governo, levamos outro completamente distinto. Não se trata de propaganda enganosa. A gestão pública exige, afinal, intensa composição de interesses que agregue e satisfaça os players políticos. Desde esse entendimento é que se formula a real tônica do que será uma administração, e não das falas em comícios para multidões ensandecidas, nem tampouco do plano de governo teórico registrado no Tribunal Superior Eleitoral.
A militância petista, esperançosa por mudanças radicais, descobriu em 2003 essa diferença. Esperava-se que Lula viesse a promover grande revolução institucional e econômica, que desdobraria numa social-democracia radical com equidade econômica e vastas oportunidades para todos, na visão dos mais otimistas. Ou, que tivesse um approach de socialização da miséria do país, à guisa da Venezuela. Ledo engano. O presidente Lula seguiu, durante grande parte de seu mandato, as boas políticas econômicas de seu antecessor, requentando o sonho do Brasil potência, graças ao excelente desempenho – que durou até a aposta no farto crédito, na política de campeões nacionais, e na diária explosão de escândalos de corrupção.
O lulismo não é, de modo algum, democrático. O Mensalão simboliza muito mais do que seu conteúdo criminoso, de corrupção com dinheiro público. Revela verdadeiro desapreço à democracia, ao utilizar-se do expediente da compra de parlamentares, em vez da negociação política, próprio de qualquer sistema limpo. Porém, noves-fora este triste momento de nossa história, a grande marca do governo Lula foi a composição de interesses programáticos com os partidos políticos, que lhe possibilitou governar tranquilamente e ampliar o escopo de sua agenda administrativa.
Um grande rosário de nomes pode ser desfiado ao citar o largo rol de aliados de Lula enquanto presidente. Paulo Maluf, grande baluarte da ditadura militar e público inimigo do antigo petismo, é um desses. José Sarney é outro grande símbolo: de pessoa atacada pelo petismo como corrupto e corruptor, enquanto presidente, passou a ser publicamente defendido como pessoa diferenciada e venerável pelo primeiro prócer da esquerda brasileira. Simbólica, também, foi a aliança com Fernando Collor de Mello, com quem Lula disputou (e perdeu) o segundo turno das eleições presidenciais de 1989. A cooptação de personagens tidos como da direita mais recalcitrante, pelo Partido dos Trabalhadores, para sua base governista, tornou-se praxe: de Henrique Meirelles, deputado tucano recém-eleito, a Sérgio Cabral e Eduardo Paes. Tão grande foi a constante cessão de espaço, e tão avançados foram os diálogos, que chegou-se ao ponto de negociar a entrada de Aécio Neves – então governador de Minas e tucano da mais alta plumagem – no PMDB, para compor futuramente chapa presidencial com o petismo.
Durante as eleições, Bolsonaro fez questão de apresentar-se como um radical. Duvidava-se – aliás, duvidávamos todos! – de sua capacidade de diálogo com o Congresso Nacional e com os diferentes setores políticos. Seria um presidente que não negociaria em hipótese nenhuma com corruptos, com malfeitores, com sequazes ladrões – em suma, que não dialogaria com quase nenhum deputado federal ou senador, pois contam-se nos dedos da mão os parlamentares com uma ficha limpa. Seu governo seria revolucionário, assim pregavam a plenos pulmões e golpes de dedos nos teclados as suas hostes pela internet afora. Os ministros e secretários de Estado seriam escolhidos somente pelo mérito, porque ninguém teria o condão de impor-lhe quem quer que fosse como membro de seu governo – nem partidos, nem bancadas. E assim, não era difícil de aventar como essa aventura terminaria. Em persistindo Bolsonaro na incapacidade de dialogar, a coisa terminaria em golpe ou em impeachment, não havia outra possibilidade a ser imaginada, levando-se a sério o Bolsonaro dos debates e das lives do Facebook.
Ocorre que Jair Bolsonaro eleito é bem distinto de Jair Bolsonaro candidato, para decepção de seus seguidores e tranquilidade dos brasileiros.
Acreditávamos, confiantes em suas próprias palavras, que seu gabinete seria majoritariamente composto de oficiais-generais das Forças Armadas. Surpreendentemente, foram apenas três: o general Fernando Azevedo e Silva, para o Ministério da Defesa; o general Carlos Alberto dos Santos Cruz, para a Secretaria de Governo da Presidência da República; e o general Augusto Heleno Ribeiro Pereira, para o Gabinete de Segurança Institucional – aliás, posto sempre ocupado por militares desde sua concepção, em 1930 (como Estado-Maior do Governo), e mesmo durante todos os períodos democráticos. Mais: os três escolhidos são oficiais tidos, tanto pela tropa, quanto pela opinião pública, como personalidades humanistas e de índole razoavelmente democrática, longe dos arroubos manifestados eventualmente por outras figuras de igual galão nos ombros e que iriam vir a compor o governo, mas que descartados foram.
A indicação de uma deputada federal da bancada do boi – Tereza Cristina, eleita pelo Democratas do Mato Grosso do Sul – não tem nada de atípico. Passaram pela pasta, no governo Temer ou no governo Dilma, os senadores Blairo Maggi e Kátia Abreu, ambos ruralistas. É mais do mesmo.
Grande parte do segundo escalão do governo Temer foi reaproveitado no novíssimo governo, sobretudo no tocante ao Ministério da Economia. Aliás, do atual governo, inclusive, reaproveitou-se um ministro: o da Controladoria-Geral da União, Wagner Rosário. Isso é tranquilizador, especialmente ao perceber que o responsável pela área, Paulo Guedes, tem nula experiência em gestão pública, apesar de suas vastas ambições transcritas no plano de governo.
As únicas mudanças reais, no quadro político, residem na seara dos Ministérios das Relações Exteriores e da Educação. Para as pastas foram escolhidos, respectivamente, o embaixador Ernesto Araújo e o professor Ricardo Vélez Rodríguez. Sugeridos por Olavo de Carvalho, o guru do conservadorismo psicodélico brasileiro, prometem modificar de cabo a rabo a agenda dos órgãos que chefiarão. E terão, como o seu superior hierárquico, o novo presidente da República, de se moderar e se adequar aos desafios do diálogo com o Congresso e com a sociedade.
Por mais simbólica que seja a escolha de Sérgio Moro para o ministério da Justiça, contará a sociedade com um elemento progressista no gabinete, para bem ou para mal. Moro, cujo curto sobrenome precede a fama, tem demonstrado ser uma força equilibrante no governo. Na sua primeira entrevista coletiva posterior à indicação pública para o posto, descartou as falas de criminalização dos movimentos sociais, tão caras ao bolsonarismo. Também claramente posicionou-se como contrário a propostas mais radicais ecoadas durante a campanha de seu novo chefe, apegando-se à defesa da democracia. Moro, enquanto ministro, terá voz para antagonizar com qualquer ideário mais refratário à normalidade constitucional. E é, como provavelmente Bolsonaro não percebeu ao nomeá-lo, não-demissível – e, se tudo correr bem para o próprio Moro, ou independentemente de correr mal ou bem para Bolsonaro, seu candidato à sucessão presidencial.
Feitas essas considerações sobre o gabinete até aqui indicado, duas coisas mais podem ser inferidos sobre o governo do novo presidente. A primeira, patente e óbvia para quem vê, é que não teremos um autoritário administrando o país na base do braço e do grito, a despeito do que Jair Bolsonaro prometeu. Veremos, sim, um presidente ciente do poder do Congresso Nacional e submisso à Constituição, porque finalmente percebeu que os tempos do autoritarismo militar não mais retornarão. E, bem por isso, muito mais do que Dilma – por ser Bolsonaro, apesar de uma pessoa visivelmente chucra, alguém humilde e que sabe ouvir – provavelmente, aberto ao diálogo com a classe política. A segunda, um pouco menos nítida, mas ainda perceptível diante de tantos recuos demonstrados desde o dia de sua eleição, é que temos um presidente ciente do poder da sociedade, e que lutará com unhas e dentes para não perder seu apoio. A base popular de Bolsonaro não é firmada solidamente, diante da forma avassaladora como se expandiu, e pode ruir nos primeiros erros. Por isso, tendo acordado do sonho da autocracia, percebeu o ex-capitão do Exército a necessidade de voltar atrás sempre que necessário. E o fará, pois é refém, desde já, dos seus eleitores.
Ficam os votos de um bom governo para Jair Messias Bolsonaro, novo presidente da República. E, inexoravelmente atrelados, os votos de que decepcione os seus eleitores mais autoritários e sonhadores, como Lula decepcionou os seus. Eleitores, aliás, que provavelmente são os mesmos. Que decepcione, sobretudo, ao realizar um governo mais equilibrado do que se esperava, devolvendo ao brasileiro a capacidade de viver tranquilamente, com boa assistência do Estado onde este deve fazer-se presente – mas, também caminhando livremente, liberto das correntes que o Leviatã aferrou-nos aos pés.
Mas, ao mesmo tempo, que não decepcione a sociedade que acreditou no discurso de combate à corrupção, custe o que custar. Este discurso foi mentiroso quando vertido da boca de Jânio Quadros, Fernando Collor e Lula da Silva, personalidades que comungam do novo chefe de Estado em alguns poucos pontos. Que não seja uma mentira, também, do novo presidente. Em sendo, reagiremos todos – os que não votamos nele, mas também aqueles que sufragaram Bolsonaro nas urnas – com o vigor que tomou as urnas no último ciclo, e que fez das vidas de Dilma e Temer verdadeiros calvários enquanto presidentes. Boa sorte e bom juízo, senhor Presidente da República.
Lucas Baqueiro
Bacharel em Humanidades pela UFBA. Editor de política e atualidades da Amálgama.
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