O “politicamente correto” é uma inquisição diária não só sobre gostos e opiniões, mas sobre a relação entre corpo e espírito.
leia também – A Revolta do Subsolo (I): o conceito
Quando o avião da American Airlines colidiu com a Torre Norte do World Trade Center, os profetas anunciaram: o século nasceu. Brincar de prever é um vício inerente à tentativa de pensar. É a qualidade da imaginação que distingue a inteligência e a ausência dela. Ressalvas feitas, confesso que também gosto de especular. Para mim, o século XXI começou simbolicamente na vitória presidencial de Obama em 2008.
Não, caro leitor. Não sou mais um desses maníacos em relação ao Obama realizador do céu – ou do inferno – na terra. Quero dizer que a vitória do jovem senador de Illinois foi um símbolo aglutinador das tensões que presenciamos nos dias que correm. Resultado das forças que formam o coração da “América” – para o bem e para o mal. Por um lado, Obama representava a coroação daquela “América” que lutava contra as leis segregacionistas, contra o racismo institucional, contra o mundo árido da ganância de fundo puritano. Por outro lado, marca a ascensão – e a atualização – da utopia (a temporalidade onde o ‘meu futuro’ vai corrigir o ‘teu passado’).
Um “sonho de liberdade” funda a “América”. Em 1777, o federalista John Jay afirmava que o povo americano era o primeiro a ser abençoado por Deus com a liberdade de escolher a sua forma de governo da maneira que contemplasse a todos[1]. As outras constituições eram frutos da violência, já a americana era orientada pela razão e experiência. Essa perspectiva de um povo guiado pela providência divina para construir a terra da liberdade na terra é cara ao puritanismo[2]. Os céus não estão tão longe assim e a “América” é a terra das promessas divinas. Os homens nasceram livres para a realização desse destino na terra. Essa “mão de Deus” é vista por George Washington nos eventos de construção do país[3]. A terra guiada por Deus coloca sua fé sobre a constituição porque sabe que os homens são falhos e cometem violências e, por isto, os pactos devem ser respeitados. A partir da sua constituição, a lei e a liberdade são os guias do povo americano.
Esse sonho de liberdade emerge de maneira ambivalente. O seu primeiro núcleo é a crença de que a liberdade é um arranjo político inspirado pela providência. Os homens abdicam do arbítrio da vontade e limitam a sua liberdade natural através de um contrato social. Para isso, cada homem deveria ter direito de ser livre para exercer suas capacidades sem a interferência arbitrária do soberano. E essa liberdade não era uma criação dos homens, mas um arranjo que limitava, por um lado, a liberdade do soberano em fazer o que bem entendia, e, por outro, a liberdade dos cidadãos por aceitar um contrato social e a entrada no estado civil. Todos poderiam exercer o seu livre arbítrio sem coerção exterior desde que abdicasse da liberdade irrestrita pela vida saudável em sociedade. Cada indivíduo usaria o seu livre-arbítrio para desfrutar da liberdade política e realizar-se nesse mundo, seguindo os seus sonhos em busca de felicidade, paz e prosperidade econômica.
O segundo núcleo do sonho americano é utópico. Defino utopia como ideias que ganham sentido a partir de uma temporalidade onde o futuro está em aberto para reconstruir o ser humano, superando os nossos dramas. A utopia acredita que o mundo é plástico e manuseável, sendo o futuro o palco de nossa redenção. Os homens passam a acreditar que o amanhã é o palco necessário de realização do fim da história – o seu reino de liberdade. O homem pode ser agora senhor do seu futuro, criador de um novo mundo que supera as debilidades ontológicas do anterior. O horizonte de expectativas afasta-se do seu espaço de experiências, pois o futuro é o palco do destino final da humanidade – a superação das agruras do passado e a conquista de um mundo melhor. A utopia é crítica perene das experiências passadas e instaura, por sua vez, uma crise contínua. Ela funda as ideologias como doutrinas e retóricas que devem dominar por completo o mundo material e afetivo para construir o nosso futuro.
Por causa dessa expectativa de domínio absoluto sobre as experiências humanas, a utopia está sempre relacionada com a esperança da libertação pela técnica. As inovações científicas e tecnológicas, guiadas pela ascensão da razão instrumental, trariam um futuro promissor que nos libertaria dos dramas humanos (guerras, escassez, preconceitos, etc.). A razão humana, independente e autônoma, tornava-se consciente de que podia planejar o futuro, alterá-lo e torna-lo melhor. A história aparece como futuro promissor da realização da autonomia do indivíduo.
Como utopia, o sonho de liberdade da “América” transforma-se na crença de que os americanos estão numa busca constante e ascendente pela libertação da humanidade. Essa crença já estava em gestação nos pais fundadores, mas foi aprofundada pelos antigos progressives e pelos novos liberais, pois estes acreditavam que a liberdade fundadora da “América” não é fruto da lei natural, mas uma conquista da arena política que deve ser sempre atualizada no tempo de acordo com as circunstâncias históricas. A liberdade política deixa de ser um arranjo e passa a ser um processo, uma filosofia da história que age de maneira ascendente e transforma a essência do homem em direção ao futuro feliz. Os “marginalizados” da história (mulheres, homossexuais, etc.) seriam finalmente libertados. Os Estados Unidos é o palco da libertação da humanidade.
Essa utopia foi internacionalizada. Woodrow Wilson, o “presidente-historiador” admirador de Hegel e Bagehot, acreditava que o destino americano era iluminar todo o mundo com o seu farol da liberdade, sendo esta uma conquista ascendente das atualizações das circunstâncias históricos e não um predicado ontológico. O próximo passo dessa utopia seria “internacionalizar” as instituições da democracia liberal para criar uma paz perpétua. Para o bem e para o mal, essa crença cresceu com Franklin D. Roosevelt, com o esforço de guerra e a sua retórica civilizatória, e com o novo complexo industrial-militar. Durante a Guerra Fria, presidentes tão distintos como Truman, Carter ou Reagan, usaram esse núcleo utópico para sustentar atos e palavras. A Guerra do Iraque foi o auge e o extremo da utopia americana em sentido internacional. Nas justificativas de Bush, Blair e dos neocons, tínhamos a defesa da superação de Westfália, a guerra contra a “barbárie” como aprofundamento dos direitos humanos, e a retórica triunfalista do fim da história depois da vitória da democracia liberal sobre o socialismo do leste europeu.
A crise de 2007-08 varreu tudo e trouxe junto um novo século. O núcleo utópico da liberdade americana deu um novo salto retórico. A liberdade é um processo de transformação antes cultural do que institucional. Não se trata mais de pensar na implantação de instituições da democracia americana pelo mundo, mas de compreender que a liberdade é uma ordem que funciona através de um biopoder (que é micro e não macro), espalhando-se por redes, teias, canais. As redes de comunicação se espalham em defesa das novas pautas de ascendência de liberdade: direitos reprodutivos (aborto recente e tardio), matrimoniais (indiferenciação sexual ou poligâmicos), direitos sexuais (mudança de gênero em idade juvenil), etc.
Todas essas pautas formam um biopoder porque agem antes na relação entre corpo e espírito presente em todos os indivíduos, e só depois nas relações sociais. Elas vão circulando através das redes, das novas possibilidades técnicas de comunicação. Por isso, junto às mutações internas do liberalismo americano, temos também as transformações tecnológicas do século XXI. A evolução da técnica não só abriu novos horizontes de comunicação, como também de transformação do corpo, do mundo do trabalho, etc. Possuímos tecnologias capazes de mapear cada segundo de nosso tempo, cada centímetro de nossos movimentos, como também para fazer mudanças genéticas significativas.
A evolução da técnica é também ambivalente. Por um lado, nos oferece um mundo de maior segurança e conforto, que amplia nossas possibilidades, democratiza os objetos, e cria novas possibilidades afetivas. Por outro lado, cria uma enorme ilusão em todos nós. Acreditamos que as novas descobertas libertariam a humanidade de suas agruras, o futuro seria livre do trabalho, da opressão, da aflição e da obrigação. Contudo, a técnica também liberta Prometeu. O orgulho da inventividade se volta contra nós mesmos, e cria o delírio de onipotência. Achamos que o futuro será construído por nós em direção à conquista da autonomia absoluta e, então, o nosso desejo se liberta, descontrola-se de nossa consciência. A única coisa que media o nosso desejo é a consciência de si, de nossos pecados, de nossas responsabilidades e culpas, de nossa natureza. Sem isso, o desejo tende a se tornar autodestrutivo por causa da soberba e do orgulho. A vontade se torna caótica, e a técnica acaba por não libertar, mas por nos iludir como crianças travessas.
A utopia transfere a consciência de si para a consciência sobre a sociedade (os outros). O “politicamente correto” é uma inquisição (no sentido de inquirir) diária não só sobre gostos e opiniões, mas sobre a relação entre corpo e espírito. Sem aceitar a transformação cultural da utopia da liberdade, você se torna um monstro, um indigno, algo abaixo de um ser humano. Todos são vigiados e vigiam. Um erro alheio e é hora de mostrar para todos a sua bondade na sua rede de amigos. Linchamos e somos linchados. A consciência afasta-se de si e torna-se tirana em relação ao outro.
Então, chegamos na eleição de 2008. A crise, os equívocos no Oriente Médio, e a nova utopia que brotava nas elites americanas transformaram o cenário. Inicialmente, parecia mais uma eleição aborrecida entre John McCain, com o seu temperamento neocon, e Hillary Clinton, a falcão e a lobista dos democratas. Então, apareceu a figura de Obama, a possibilidade do primeiro presidente negro, e de uma nova sociedade americana que pulsava.
O novo salto da utopia ganha uma face na eleição de Obama. Não é que o ex-senador de Illinois seja socialista, hippie amalucado, um progressista de extrema esquerda, ou qualquer coisa do gênero. Pelo contrário, junto a sua mentalidade de novo liberal, Obama demonstrou um temperamento até conservador. É que a sua eleição simboliza a ascensão de uma nova sociedade: a ascensão das elites liberais e de sua esperança utópica.
O historiador Edward Carr mostra que toda utopia traz junto a sua punição. Por tentar uniformizar a vida humana e as suas expressões (tal como o politicamente correto), a utopia constrói ressentimento e alimenta a crise que instaurou. A irritação com essa “harmonia de interesses” forjada de maneira silenciosa pela utopia vai alimentando o ódio e o rancor. A realidade nua e crua da imanência do poder se desamarra da violência silenciosa da utopia.
Por isso, durante todo o governo Obama, vimos a ascensão do “homem do subsolo” nos Estados Unidos. As novas elites liberais podiam fazer de tudo, pois era detentora do futuro mundo melhor, logo, qualquer ato se justifica em si mesmo. Uma mentira sobre um reacionário, uma falsa acusação contra um inimigo da sua utopia, o pedido de demissão de quem não comunga da “harmonia de interesses”. Tudo se justificaria perante o horizonte de expectativas da utopia.
Esses elementos vão criando um enorme ressentimento no coração do “homem comum”. Atacado, lutando por sobrevivência, vendo o seu mundo desabar pelo maquinário agressivo da nova utopia das elites liberais, o “homem comum” viu a sua identidade se dissolver. Corpo e espírito dominados pelo biopoder, só sobrou a ausência para esse homem. Isolado, ele não existe mais enquanto indivíduo para as novas formas de vida sustentadas pelas elites. Encarado como um monstro do passado, o homem comum dissolve o seu nome abaixo do solo, e faz do ódio o seu cativeiro. Esse homem que só consegue encontrar a sua moradia no subsolo está pronto para emergir como – agora sim – verdadeiramente um monstro, carregando toda a violência que marca a “punição da utopia”. De tanto chama-lo de aberração, ele quis se transformar numa.
Do ponto de vista ideológico, os republicanos tentaram oferecer ao homem do subsolo as tradicionais ideias do reaganism ou do neoconservadorismo (establishment), ou mesmo o Tea Party, resgatando os valores da liberdade de fundação. Nada disso adiantou, pois não tocava o coração do homem amargurado. Foi uma nova ideologia que despertou o coração e a mente desse homem perdido no subterrâneo do espírito.
Quase sempre quem dirige a revolta do subsolo é uma figura que foi marginalizada dentro do quadro das elites. Um sujeito que frequentou as elites políticas, econômicas, intelectuais, etc., e não foi aceito em sua totalidade, rompeu com elas e quer a sua revanche. Steve Bannon, Roger Stone e Donald Trump preenchem o pré-requisito. Do ponto de vista ideológico, Steve Bannon, um ex-banqueiro, será uma figura fundamental.
Depois de uma passagem pela marinha americana nos anos 1970, Bannon começou a sua carreira no Goldman Sachs, chegando à função de vice-presidente. Nos anos 1990, foi produtor-executivo em Hollywood. Em 2007, ajudou a fundar o Breitbart News para denunciar as parcialidades na mídia tradicional e, a partir de 2012, tornou-se diretor-executivo e grande comandante do site. A partir desse período, Bannon vai oferecendo um novo ponto de vista para o seu público: uma direita populista em economia e não “conservadora fiscal”, atraindo os brancos pobres; e uma direita nacionalista e não internacionalista intervencionista como representada pela elite do Partido Republicano.
A partir da exploração da capacidade performática e imagética das novas mídias sociais, Bannon queria comunicar uma nova mensagem para uma nova geração. Essa mensagem seria “nacional-populista”, feroz com as elites, e anti-establishment. Uma união entre nacionalismo econômico, populismo e tradicionalismo. Mas, o mais importante: numa embalagem simples e direta, agressiva e conclusiva. Uma mensagem para despertar o homem do subsolo que existe em todos os desconfortáveis com a utopia das elites liberais.
Bannon leu em Julius Evola e René Guenon que há uma sabedoria em todas as religiões sobre as verdades universais da existência. Esse núcleo esotérico e invisível funda o espírito das nações e nelas possui o seu repouso. A nação guarda a tradição e protege a realização da vida iluminada pelas verdades invisíveis. O nacionalismo é a transformação do poder soberano do Estado-nação em algo místico, irrestrito e instransponível. A utopia nativista é a realização futura do passado mítico (o seu núcleo esotérico) que cada nação carrega. O pensamento de Bannon desenvolve-se como uma filosofia da histórica, pois a escatologia desce dos céus e se torna o futuro a ser conquistado pelo homem – não pelas forças do progresso técnico, mas pela realização do núcleo esotérico que cria o espírito de cada nação. Por isso, para Bannon, a história é o palco inevitável da realização do reino da liberdade através dos valores nativistas e tradicionalistas. A história é um ator que julga: “Let them call you racist, let them call you xenophobes, let them call you nativists. Wear it like a badge of honor. Because every day, we get stronger and they get weaker. … History is on our side and will bring us victory”.
O tradicionalismo esotérico carrega junto uma versão gnóstica sobre a batalha entre Deus e o demônio. Para Bannon, é o medo que nos faz agir. O homem no subsolo possui medo de encarar os seus carrascos na superfície. Para encorajá-los, você precisa da força da multidão em revolta. O ódio, o rancor, e o ressentimento conduzem a revolta do subsolo contra as elites liberais. Bannon tem consciência de que isso é “satã”, é “poder”.
Por unir tradicionalismo e nacionalismo, uma nova direita ganharia espaço no Breitbart – a alt right (direita alternativa). A direita alternativa é um movimento difuso, com várias ideias contraditórias entre si, e vários de seus integrantes rejeitando o rótulo, mas que ganha unidade em dois pontos: negação do conservadorismo clássico e identificação entre raça, cultura e nação. Uma nação se forma através de uma cultura engendrada em suas tradições. Essa cultura não é uma construção caótica e dispersa, mas demarcada pelo meio e pela raça. Afastar-se disso é a degradação.
Bannon, Breitbart News, e a alt-right ofereceram uma explicação doutrinária e ideológica para o homem do subsolo liberar o seu ódio contra as elites liberais e a sua silenciosa violência. Os Estados Unidos eram o palco da degradação porque essas elites destruíam os mitos de fundação para construir um futuro de liberdade baseado no progresso. Era preciso lutar contra o establishment. Mas não de qualquer maneira. A luta agora era de biopoder, e envolvia redes de comunicação, domínio da linguagem das redes, linchamentos, desinformação, e qualquer arma possível que levasse à vitória.
A ideologia não serviria de nada sem a performance. E, nisso, Roger Stone é um especialista. Ele ascendeu no Partido Republicano como estrategista de campanha, ligado aos grupos jovens e a Richard Nixon, e teve que se reinventar após as investigações sobre Watergate. Em 1980, ele fundou uma empresa com Paul Manafort e Charles Black Jr. para arrecadar dinheiro para as campanhas eleitorais republicanas e depois fazer consultoria/lobby com os eleitos. O lobby incluía ditaduras, como a do Congo comandada por Mobutu.
Stone caiu em desgraça dentro do Partido Republicano em 1996. Ele era um dos consultores do candidato Bob Dole, que disputava a presidência com Bill Clinton, quando a National Enquirer descobriu que Stone e a sua mulher frequentavam casas de swinger. A reputação de Stone desabou, e ele foi excluído da elite republicana. A “excomunhão” permitiu ao nosso personagem explorar a sua faceta de maquiavélico folclórico e extravagante como um outsider. Em 2000, Stone encontrou-se com Trump para atrapalhar as primárias do Partido da Reforma, uma terceira via que havia atrapalhado a vida dos republicanos em 92 e 96. O primeiro ensaio do Trump presidente não passou de uma forma de retirar Pat Buchanan do páreo e ajudar George W. Bush.
O velho Stone voltou à ativa como um dos assessores da campanha de Donald Trump nas primárias republicanas de 2016. Foi afastado durante o processo, mas emplacou o seu ex-sócio, Paul Manafort, como substituto. Roger conhecia Trump de velhos tempos e acreditava que o empresário tinha uma forte imagem de presidenciável. Por seu estilo extravagante e chocante, Trump seria a realização das ideias do ex-lobista. Stone tinha três regras básicas para vencer na democracia: I) a política de massas é uma forma de entretenimento, onde chamar a atenção é a única coisa que importa; II) o ódio é mais forte do que o amor para mover as pessoas; III) a desinformação é o método mais eficaz, pois as pessoas não se preocupam com a verdade, mas com o que querem crer.
Essas três regras seriam aplicadas na campanha de Trump para atrair o coração do homem do subsolo. Com o seu vocabulário simples e direto, identificando os culpados pela tristeza do povo americano, com sua retórica contra as elites políticas, intelectuais e midiáticas, Trump era o entretenimento perfeito para atrair a atenção do “homem comum”. No lançamento da sua candidatura, os inimigos foram identificados para se odiar: When do we beat Mexico at the border? They’re laughing at us, at our stupidity. And now they are beating us economically. They are not our friend, believe me. But they’re killing us economically. (…) When Mexico sends its people, they’re not sending their best. They’re not sending you. They’re not sending you. They’re sending people that have lots of problems, and they’re bringing those problems with us. They’re bringing drugs. They’re bringing crime. They’re rapists. And some, I assume, are good people”.
O ódio aos que teriam trazido a decadência ao povo americano levava à defesa intransigente do poder soberano dos Estados-nações; das fortes conotações nos valores da identidade nacional, reforçada com frases xenófobas contra mexicanos e latinos; do apelo ao nativismo; da transformação da nostalgia política em promessa de futuro (o reino da liberdade era a volta de um passado grandioso). O personagem estava construído para entreter o ódio da multidão.
Por fim, Roger Stone e a sua trupe se encarregariam de espalhar notícias falsas sobre os seus adversários. Ted Cruz, o candidato do Tea Party, único setor do Partido Republicano que resistiu de alguma forma ao furacão Trump, foi acusado de adúltero, mentiroso, homem das elites empresariais. Hillary Clinton era o establishment encarnado. Stone e o seu amigo Alex Jones, responsável pelo infame Info Wars, andavam em comícios com uma camisa que identificava Bill Clinton como estuprador. Hillary seria uma criminosa por intimidar as mulheres abusadas por seu marido. As coisas pioraram para a candidata democrata quando o jogo baixíssimo da sua campanha comandada por John Podesta foi revelado pelo Wikileaks. Como lobista e manipuladora de opiniões e eventos, os e-mails de Hillary – e da sua campanha – provavam o pântano das elites liberais. Pelo vazamento de mensagens privadas, os russos foram acusados de interferir nas eleições americanas, e Stone foi detido pelo FBI.
Steve Bannon forneceu as ideias, Roger Stone concedeu o entretenimento e as estratégias do espetáculo da política de massas para o homem do subsolo. Faltava agora um líder que fosse capaz de transformar isto em revolta e vitória. Esse líder seria Donald J. Trump.
Filho de um empresário que construía prédios populares no Brooklyn, Donald Trump queria mais. Ele desejava entrar em Manhattan, sentar na mesma mesa com os grandes do ramo, e fazer parte da elite. Trump seguiu o instinto da sua ganância e conseguiu. Construiu rapidamente um império, tornou-se popular, um exemplo do self-made man americano mesmo que abusasse de isenções, créditos, e da corrupção governamental para alimentar os seus negócios.
Todavia, o império de Trump ruiu. Negócios ruins, extravagâncias, separação, vida sexual desregrada e duvidosa. Transformou-se de “queridinho da América” em pária. Trump nunca foi aceito de fato no clube da elite que desejava frequentar. O seu estilo espalhafatoso, a sua breguice de novo rico, as suas ligações com a turma da pesada de Roy Cohn, tudo isso criava uma barreira intransponível. O dinheiro não podia comprar tudo. Depois da quase falência, Trump livrou-se de todas as amarras morais e de aparência, tornou-se uma figura midiática e popular com suas extravagâncias, fazendo questão de ser o centro das atenções por onde passava.
Durante o governo Obama, Trump voltou a ser um republicano, afastando-se do casal Clinton. Ele resolveu chamar atenção tratando o presidente como um líder fraco e cobrando a sua certidão de nascimento (lembram da regra de Stone?). No jantar dos correspondentes de 2011, Obama decidiu se vingar de Trump. O presidente democrata humilhou o empresário ao transformá-lo jocosamente num bufão que nada entendia do mundo adulto dos políticos e das decisões sérias. A plateia caiu em gargalhadas. Donald foi embora mais cedo e sem sorrisos, foi humilhado diante de toda elite que desejara entrar. Ali, nascia a sua candidatura.
Como um rico rejeitado pelas elites do país, o carismático Donald Trump era o que faltava para a revolta do subsolo explodir o barril de pólvora. Trump se apresentou como o candidato que lutaria até a morte contra as elites liberais, contra o “politicamente correto”. Ele revelaria os podres das elites americanas, do establishment político dos dois partidos. Donald “drenaria o pântano” de corrupção e de desmando vindos de Washington. Ele faria a “América para os americanos”, ressuscitaria o sonho americano cada vez maior e mais forte. O velho empresário jogaria duro com as outras nações e traria os empregos de volta. Trump derrotaria as elites liberais, e tiraria o seu jugo sobre o povo. Ele não tinha medo. Ele estava arriscando a sua reputação, a sua fortuna e a sua vida pelo homem do subsolo. Ele era o líder forte que a “América” precisava para impedir a opressão das elites. O Jeb “low-energy” Bush foi a caricatura perfeita. A paixão entre Trump e o subsolo foi fulminante.
Todavia, Trump não é um ideólogo, um doutrinador, mas um sujeito inescrupuloso, viciado apenas em vencer, que não se importa com o mundo das aparências. Trump quer vencer e fim. Todas as suas jogadas são feitas para gerar incertezas, criar o caos, e depois tirar vantagem com a situação. Donald adquiriu esse estilo de negociar na Nova Iorque dos anos 70 e 80 com Roy Cohn. E Trump sabia o que agradaria esse homem comum que habitava o subsolo, que estava silencioso, reprimido, apenas adulando o seu ressentimento interno. Da natureza humana, ele sabe quase todas as coisas – as piores e as melhores.
Trump transformou-se num personagem para comandar a revolta do subsolo. Ele encarnou a figura que esse homem comum desejava e não aquilo que as elites políticas americanas estavam acostumadas. Com o nacionalismo econômico, Trump ganhava o branco pobre do meio-oeste que vivia a degradação pela saída das indústrias, pois era um náufrago da globalização econômica. Com o nativismo, dava uma explicação prática e material (e não espiritual) para um grupo de insatisfeitos com as políticas de identidade das elites liberais. Com o espetáculo e o ódio, movia as pessoas e despertava desejo. Trump conseguiu convencer um grupo de brancos (em especial, homens) pobres que sempre votavam nos democratas a trocarem de lado. A política americana passou por uma revolução.
Donald J. Trump tornou-se irresistível para uma parcela do povo americano. A sua ira, os seus absurdos, o seu lado cômico, tudo se complementava e construía um personagem carismático. Quanto mais humilhado pelas elites liberais, mais crescia a tentação do povo americano de ver a narrativa do “humilhado sendo exaltado”. Quanto mais era galhofado, mais o homem do subsolo emergia para fazer a sua revolução e mostrar para os homens dos jantares chiques quem realmente manda. Uma dialética se construiu entre elite liberal e homem do subsolo que levava ao contágio mimético de toda a sociedade: I) Trump era verbalmente infame; II) a elite reagia com desprezo e galhofa; III) o homem do subsolo sentia ódio e ressentimento dessa humilhação com o seu candidato. Foi o vício inerente de toda campanha eleitoral de 2016.
No dia 08 de novembro de 2016, o mundo caiu e jamais seria o mesmo novamente. Donald J. Trump venceu. A revolta do subsolou armou-se, mas os especialistas não viram. Wisconsin, Michigan, Pensilvânia: os republicanos venceram onde não estavam acostumados. No governo, Trump está sendo mais pragmático do que ideólogo, embora igualmente sem escrúpulos. Por paradoxal que seja, a grande sorte da América foi ter encontrado em Donald Trump o comandante dessa revolta e não num ideólogo.
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NOTAS
[1] BROGAN, Hugh. The Penguin History of USA. New York: Penguin Books, 2001, p.196.
[2] Sobre as relações entre o puritanismo e a revolução americana, ver KIDD, Thomas S. God of Liberty: A Religious History of the American Revolution. Basic Books, 2012, e HEIMERT, Alana. Religion and the American Mind: From the Great Awakening to the Revolution. Eugene: Wipf and Stock 2012.
[3] BROGAN, The Penguin History of USA, p.196.
Elton Flaubert
Doutor em História pela UnB.
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