O álbum é um documento sintomático do tipo de experiência religiosa que o homem tem para com Deus em nossos dias.
O infame Karl Rahner, SJ, é autor de uma frase bastante famosa na qual ele diz que “O cristão do futuro será um místico, ou não será”. É curioso que essa frase tenha sido escrita em meados do século XX, uma era na qual o que mais se procurava era o misticismo. Com efeito, o próprio Rahner, junto com os outros nouveaux théologiens (a saber, Yves Congar, SJ; Hans Küng, SJ; Henri de Lubac, SJ, et al.), arquitetou os ensinamentos que depois seriam postos em prática com o Concílio Vaticano II, remodelando a Igreja de forma que ela se tornasse outra coisa. E entre os ensinamentos que a turma da nouvelle théologie mais prezava estava o misticismo. Seria esse o misticismo dum são João da Cruz ou duma santa Teresa D’Ávila, encetado por uma vivência católica radical? Mas qual! Estamos falando do misticismo “que brota do fundo da experiência”, da experiência de Deus em meio ao caos do século XX, urdido por uma espécie de conflito dialético entre a ortodoxia santificante e o Mundo e seus prazeres.
Esse tipo de pensamento é predominante hoje em dia. Não exatamente na forma que os novos teólogos oficialmente pensavam, mas está lá. É um sentimento geral em que a ortodoxia é menos importante que um contato imediato, ainda que torturado, do indivíduo com Deus — ou com coisa parecida. É quase que a mesma espécie de sentimento que o amante que não quer mais a amada sente — ele a rejeita, mas não consegue parar de desejá-la de maneira carnal. Assim também é o sentimento religioso dos nossos dias: o homem moderno quer algum deus, mas não quer andar na linha.
Curioso, portanto, que Kanye West nos ofereça agora Jesus is King, cujo lançamento completou um mês há poucos dias. Álbum rico, este; ainda que não tenha o gosto da obra-prima, chega perto. É um grande álbum. Mas mais que ser um grande álbum de música (ignoro se os mandarins da nova cultura lamentem que o espaço desta Amálgama ceda linhas generosas a um texto elogioso a um álbum de rap), mas mais que isso, dizia, Jesus is King é um documento sintomático do tipo de experiência religiosa que o homem tem para com Deus em nossos dias. Este homem, no caso, está simbolizado na figura errática e torturada de Kanye West. West é o pólo simbólico no qual todas as tendências da modernidade — sejam elas artísticas, religiosas, sociais — se encontram. Isso se sintetiza em sua posição de “decadente de ego inflado”, e eu acho que ele mesmo sabe disso.
É possível que ele mesmo saiba disso; é possível — é radicalmente possível — que nesta mal-traçada caminhada que trilha desde seu primeiro álbum, o triunfante College Dropout (2004), West, com seu Jesus is King de fé sincera, tenha chegado ao entendimento que a humanidade (ou, ao menos, que o mundo cristão) terá de chegar, cedo ou tarde: Rahner não serve; a dialética amorfa entre Deus e Mundo, entre santidade e pecado, entre luz e sombra, sem um mediador objetivo e delineado — ou seja, uma religião, — uma dialética assim está fadada ao fracasso.
Por isso mesmo, para quem estava prestando atenção, não é surpreendente que Kanye West ora chegue a um ponto em sua carreira que um álbum como Jesus is King tenha se tornado inevitável. Voltemos a College Dropout, cuja principal faixa é justamente dedicada a Jesus Cristo — “Jesus Walks”. Em 2004, West rezava para si mesmo, ainda que declarasse estar sob o senhorio de Cristo:
(Jesus walk)
God show me the way because the Devil’s tryna break me down
(Jesus walk with me)
The only thing that I pray is that my feet don’t fail me now
Nove anos depois, West era ele mesmo um deus encarnado entre os homens. Encontrando sua centelha divina na criatividade, criando sons e peças de roupas, West divinizou-se, ele é o verbo criador — de músicas e tecidos, mas um criador, e nem mesmo o pecado tirava sua divindade:
I am a god
Hurry up with my damn massage
Hurry up with my damn ménage
Get the Porsche out the damn garage
I am a god
Even though I’m a man of God
My whole life in the hand of God
So y’all better quit playin’ with God
Há algo de muito moderno aí. Do mesmo jeito que West se considera um deus por criar materialidade (a música é imaterial, mas a música profana ainda pertence ao mundo da imanência), o mundo moderno infla seu próprio ego por criar matéria em quantidades alucinantes; com sua superioridade em questões de criatividade prática, o Ocidente contemporâneo, há quase 200 anos, considera que a riqueza quantitativa é a prova cabal, o noves-fora da sua superioridade ante às outras culturas. A marca em sua pele, como a marca de Caim, é o cronocentrismo; a marca da quantidade se faz notar mesmo em matéria escatológica: quanto mais contato com o Eschaton, com o Além, com os efeitos hipostáticos do espírito, com o frenesi borbulhante do espiritual, melhor. Não importa a qualidade desse contato — o que importa é que ele seja grande em número e de grande constância. Pode ser da Renovação Carismática Católica, da macumba ou do Espiritismo; pode ser do Budismo ou dum Hinduísmo de autenticidade duvidosa; pode até mesmo ser dalguma igreja protestante recém criada; o que importa é que o misticismo — aquele que brota do interior da experiência, mas que seja estimulado pelo que vêm à nossa experiência, como preconizava Rahner, esteja lá.
É precisamente isso que West fez nos últimos anos de sua carreira. E a arte costumeiramente faz isto: sendo por natureza, como sugeri noutro texto, uma simbolização de experiências vividas com referência a um arquétipo universal bem definido — aliás, ontologicamente definido, — West chegou à conclusão que o Ocidente cedo ou tarde terá de chegar: que não é possível viver uma vida cujo centro do mundo seja uma espécie de visão espelhada de si mesmo, que não é possível rezar para os próprios pés; o centro do mundo, logo terão de admitir, é uma coisa que está acima e além desta própria realidade, mas fixa de maneira polar esta realidade à qual ele está acima. Não digo que Kanye West tenha virado um cristão ortodoxo. Digo que ele transitou do místico barato e burguês do século XXI para o cristão de prática tímida que fala suas verdades de maneira sussurrada no dia-a-dia (coisa que o episódio a respeito da roupa da Kim Kardashian no baile de gala do Met deixou bem claro).
Portanto, não há nada de surpreendente neste Jesus is King, nem em relação à própria carreira de West e nem em relação ao estado espiritual do Ocidente moderno. Kanye Entendeu algo que eventualmente todos terão de entender. Ele é, verdadeiramente, um homem do seu tempo.
Victor Bruno
Estudante de Comunicação Social na UFPI. Tem artigos publicados no VoegelinView e na Political Science Reviewer, entre outros. Sua pesquisa se centra principalmente em filosofia tradicional, seu rompimento e manifestações dos efeitos desse rompimento na política, na cultura e na sociedade.
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