Em sua filmografia, há uma ascensão da consciência individual percebendo a sua natureza ambivalente e escorregadia.
Carmen é uma bela boêmia que não consegue controlar o dom da sedução pela necessidade de sentir-se sempre confiante através da paixão de rapazes novos e inesperados. É o seu vício. Quando se envolve com um jovem soldado espanhol, este decide matar o seu marido na esperança de tê-la para sempre. Nesse mesmo instante, Carmen já estava interessada noutro rapaz – um toureiro. Sabendo que rivalizar por sua paixão seria uma luta vã, o soldado resolve acabar com o objeto desejado, e mata a bela boêmia. O dom de Carmen é a marca da sua tragédia.
Essa história contada pela Condessa de Montijo ao escritor francês Prosper Mériméé tornou-se uma novela em 1845. Décadas depois, foi consagrada em forma de ópera por Georges Bizet. Um trecho dessa ópera resume o mistério do desejo entre a vida e a morte: “O amor é um pássaro rebelde, que ninguém consegue domar, e é inútil chamá-lo, foi ele que acabamos de recusar”.
O trecho foi utilizado por Paul Thomas Anderson no filme Magnólia para representar o encontro necessário e inesperado entre o policial exemplar Jim e a traumatizada Claudia. O amor é sentimento, mas também desejo. E o desejo não é controlável. A vida parece apontar algo e, de repente, é o inverso. Tudo que nos parece firme pode escorregar de nossas mãos e apontar para o avesso.
Os filmes de Anderson possuem esse caráter fugidio do “pássaro rebelde”. Boogies Nights parece mais uma história banal sobre sexo e violência, mas está falando mesmo da ambivalência do dom. Magnólia foi retratado como um drama de superação e redenção, porém, é sobre algo mais amargo: quando chegamos ao ponto em que uma atitude não tem mais o caminho de volta? Do mesmo modo, o sentido de Sangue Negro não é uma crítica social à ganância da vida americana, e sim uma pergunta: por que não conseguimos evitar a autodestruição mesmo conscientes do caráter destruidor de um desejo? O Mestre não trata de charlatanismo, mas sobre o potencial de violência da imitação. Trama Fantasma parece mais um enredo sobre temas da moda – tais como relações tóxicas, egoísmo, machismo –, porém, é sobre a ambivalência do amor humano que se encontra “escondido” diante de nossos olhos.
Na maioria das críticas, os filmes de Paul Thomas Anderson são lidos como uma sociologia barata. Contudo, se assim fosse, eles não passariam do que demarca toda obra militante: a poluição do imaginário. Pelo contrário, o grande potencial dramático de sua filmografia reside nessa passagem do superficial da vida social para o que realmente interessa: a complexidade e a ambivalência dos sentimentos humanos que compõem o grande drama da humanidade. Em sua filmografia, há uma ascensão da consciência individual percebendo a sua natureza ambivalente e escorregadia. Mostrarei essa ascensão em quatro atos.
Ato 1: Eu existo
O longa-metragem de estreia de Paul T. Anderson, Jogada de Risco, nos causa um estranhamento. Assistimos a trama esperando que algo seja revelado para dar sentido aos acontecimentos. Aparentemente, a simples informação de que Sydney matou o pai de John não tem força explicativa suficiente para erguer o sentido de uma trama. Sentimos esse estranhamento porque há um sujeito oculto na trama. Esse sujeito é o acaso.
O acaso é o protagonista do filme. Não o acaso como mera fortuna, mas como uma força natural, algo vivo, carregado de sentido. Superficialmente, Sydney aparece como um jogador veterano que conhece todas as artimanhas dos cassinos ou como um assassino de aluguel da velha guarda. No entanto, Sydney é muito mais do que isso. Ele é o homem do acaso, o dono da sorte, uma espécie de “anjo” que transforma a desgraça de John (a perda do pai) ou de qualquer outro em bonança.
Sydney encontra John entregue, sem estima, literalmente na sarjeta. Ele o recupera, ensina-o como ganhar dinheiro no jogo, e transforma-se num modelo de confiança e sucesso para o seu pupilo. Faltava algo. John se apaixona por Clementine, que vende o seu corpo não só para sobreviver ou por um sonho futuro, mas também como vício. Sydney faz o mesmo trabalho de recuperação com Clementine. E a deixa na cama de John enquanto este ainda se encontrava fora. John chega em casa e os anjos sopravam em sua consciência: “Clementine na minha cama: um presente de Deus”.
O que o acaso uniu, ninguém separa. John e Clementine casam no dia seguinte, mas a moça trai o marido no mesmo dia, pois vender o seu corpo era um vício. John agride e sequestra o cliente de Clementine. A situação era drástica, mas não para Sydney. Ele cria a atmosfera da redenção ao realçar que o amor – e não o passado – era o único meio de sobrevivência. Sydney afasta-os da cena e mata o chantagista Jimmy, a representação do rancoroso que não reconhece a dignidade intrínseca de um pecador.
Por que Sydney agiu por John? Por culpa? Não. Sydney é a vida. Um dia, você sofre com as forças do destino; noutro, recebe a bonança. Sydney é o acaso ganhando vida, corpo, existência. A vida é uma jogada de risco, pois o risco da vida é existir. E existir é abraçar o inesperado. Nós existimos aqui e agora, lidamos com nossa carga de experiências e nossos sonhos de amanhã, mas é o acaso que nos arrasta. Como no cassino viciado, a Jogada de Risco não é sobre sorte, mas sobre resistir ao inesperado e ir em frente.
Os pecados dos pais recaindo sobre os seus filhos foi um tema abordado em Jogada de Risco, mas de maneira marginal através da miséria existencial enfrentada por John e Clementine. Esse tema será central em Magnólia.
Magnólia começa em ritmo cortante. Paul T. Anderson conta três rápidas histórias que unem o acaso aos dramas familiares. Essas histórias compõem um mosaico do que virá. Durante o filme, várias histórias se unem a partir do seguinte eixo: os pecados dos pais recaem sobre os seus filhos.
Donnie Smith foi uma criança prodígio, famosa por ser recordista do programa O que as Crianças Sabem?. Explorado pelos pais, cresceu amargurado, sem confiança, fracassado por opor felicidade à inteligência. Stanley Spector é o presente do que foi Donnie no programa, e sente que o seu interesse por conhecer é explorado pelos adultos. Jimmy Gator é o apresentador, e abusou sexualmente da sua filha Claudia quando pequena. Abuso psicológico e sexual convivem no espírito de Jimmy. Claudia Gator tornou-se uma viciada em drogas que não consegue superar os traumas da infância. Ela encontra-se por acaso com o policial Jim Kurring. Por sua vez, ele possui uma compulsão em ser justo e correto, o que muitas vezes se transforma em incompreensão. O que é justo vira do avesso. Quando a arma de Jim desaparece, a vergonha e a humilhação que ele sente liberta-o para entender as ambivalências da vida e de Claudia.
Earl Partridge é o produtor do programa de Jimmy. Ele é casado com Linda, uma mulher muito mais nova que se casou por interesse financeiro. Earl abandonou a sua primeira esposa quando esta tinha câncer, e a deixou fenecer aos cuidados do seu filho de apenas 14 anos, Frank Mackey. Por sua vez, Frank tornou-se um bizarro vendedor de fórmulas para os homens se tornarem sedutores e dominadores. A sua plateia é repleta de fracassados que se sentem incompreendidos e tolhidos, e estão em busca de alguma esperança para realizar os seus desejos.
A história gira em torno dos pecados fundadores de Jimmy e Earl. Os pecados dos pais recaem sobre os filhos. Ironicamente, os dois estavam com os dias contados por causa de um câncer terminal.
O que parecia uma história de perdão e redenção, torna-se outra coisa. Paul T. Anderson explicitamente cita vários trechos do livro do Êxodo. O Êxodo significa o reencontro pela fuga. O reencontro dos hebreus com a Terra Prometida é simbolizado no sangue do Cordeiro Pascoal e pelo poder de Deus na passagem pelo Mar Vermelho.
Entretanto, alguns renegam a partida. A renegação é o momento crucial da nossa existência. É o dilema que definirá toda nossa trajetória. Earl desejava abandonar a mulher doente e ir em busca de uma nova paixão. Jimmy tinha desejos sexuais por sua filha indefesa. A renegação de ambos reside antes no que origina esses desejos desordenados. O que leva alguém a desejar sua filha? Ou a abandonar a sua esposa de maneira tão cruel? O desejo se torna incontrolável, mas a sua origem poderia ter sido evitada se a renegação não fosse escolhida.
Esse dilema se encontra no discurso de despedida de Earl para Phil Parma, o seu enfermeiro. Earl explica que há um momento na vida de um homem em que tudo pode desabar e do erro não há caminho de volta. Você renega, desordena o seu desejo, e este se torna incontrolável. Depois, vem a culpa – a torturante e infinita culpa. Não há mais perdão. A culpa será eterna. Viver é perigoso, pois colocamos a nossa alma em risco. E ela escorrega por suas mãos o tempo todo.
Jimmy e Earl causaram grande sofrimento para muitos por causa da renegação. Os que sofriam com a consequência de um grande pecado precisavam buscar uma saída, uma fuga. Como no discurso do garoto negro para Jim: “Ele está fugindo do demônio, mas a sua dor é eterna”. Ninguém se livra do pecado dos pais, mas se pode recomeçar com um novo encontro. E a chuva é o meio, a esperança, pois ela vem e limpa os corações: “Quando o sol não aparece, o bom Deus faz chover”.
Todos os personagens estão no limite da sua vida no momento derradeiro do filme. Donnie está prestes a perder sua identidade. Jim perdeu Claudia que, por sua vez, está ainda mais desorientada e escrava do vício. Linda tenta se matar em seu carro. Stanley se isola na biblioteca e pensa nas atitudes do pai. Frank vive um sentimento conflituoso a respeito do pai que morre na sua frente. Então, ele grita: “Não se vá! Não se vá!”. Nesse momento, começa uma chuva de rãs, uma referência ao Êxodo 8:2.
A chuva é castigo para os que renegaram, e esperança para os que sofreram com as consequências dos pecados alheios, mas ainda possuem a chance de obter o perdão e recomeçar. Donnie quebra os dentes, e entende que não precisava de aparelhos, Jim recupera sua arma e entrega seu amor à Claudia, Frank se reconcilia com Linda.
Viver é perigoso. Gostamos de pensar que sempre haverá um perdão e um amanhã, mas há renegações que só sugerem uma torturante e insuperável culpa (como Judas traindo o Cristo). Não existimos sozinhos. Recebemos uma carga do passado, criamos e adaptamos novas tonalidades afetivas. Saber receber e recriar é o segredo para escapar da renegação.
Ato 2: Eu crio
Ao primeiro olhar, Embriagado de Amor parece mais uma trama batida sobre um renegado que encontra o par perfeito. Não é nada disso. Paul Thomas Anderson está falando sobre talento. Aos olhos superficiais, Barry Egan é um fracassado. O seu negócio não decola, não possui namorada, teme relacionar-se com outras pessoas, é alvo de piadas desde a infância. Entretanto, tudo isso não o esmorece. Barry não é vítima de nada. Ele é artífice, pois possui um dom incomum: mistura uma incrível força com um insuperável desajeito, a graça com a despretensão. O seu carisma é para os fortes de espírito.
Em síntese, Barry Egan é a perfeita representação do dom artístico de Adam Sandler. Personagem e ator se misturam para homenagear a técnica do cinema em si. Filmar é um ato de criação, e isto exige talento. O dom inventivo de criar é a força motora da arte. Por isso, Anderson afirma que a história do filme é indissociável de Adam Sandler.
Ninguém enxerga o talento de Barry, mas ele é um “super-homem” ao seu modo. A incompreensão do seu dom leva à solidão e ao desprezo. Não é fácil ter talento, não é fácil ter a responsabilidade de ser incomum. Todo dom carrega em si a sua ambivalência. Ter um talento único significa dádiva e maldição.
Quando Barry apaixona-se por Lena Leonard, amiga da sua irmã, recebe a dádiva de preencher de sentido o seu dom, aquilo que Martim Vasques chamou de encontro com a sua “harmonia interior”. Lena ama Barry desde o início porque reconheceu e admirou o seu dom no primeiro olhar. O amor é a porta pela qual Barry entra e consegue administrar o seu talento da melhor maneira, livrando-se da tragédia e da solidão.
O tema da criação ganha contornos ainda mais dramáticos em Boogies Nights. Nele, o gênio causa a sua própria ruína. Eddie Adams é um jovem de dezessete anos ansioso para descobrir o mundo e mostrar para a sua mãe que pode “ser alguém”. O seu quarto funciona como uma metáfora: aglutina os seus gostos e expõe o embate entre o seu prazer individual e a dor com os sermões de sua mãe. É o primeiro lugar onde o dom apresenta a sua ambivalência: a linha tênue do compromisso consigo para si ou consigo para o outro.
A vida de Eddie desabrocha quando ele conhece Jack Horner, um veterano diretor do ramo pornográfico. Jack é um mestre da intuição, pois é capaz de sentir de longe o cheiro de uma sensualidade incomum. Ele identifica o dom de Eddie e o transforma em Dirk Diggler, o novo astro do pornô.
Eddie é inserido em seu novo mundo por Amber, atriz pornô e mulher de Jack. Amber carrega a culpa de ter abandonado o seu filho, e projeta nos novos atores a figura maternal que apresenta o mundo. Eddie vai tateando o ambiente da pornografia com admiração. Os eventos vão ocorrendo, entrando e saindo dos quartos. A namorada do coronel só pensa em drogas e popularidade, e sofre de overdose. O ator pornô que luta para conseguir meios para abrir a sua loja do sonho e só naufraga. O obcecado Maurice quer ser importante no ramo da pornografia e contracenar com Amber. O pequeno Bill casou-se com uma atriz pornô e é humilhado diuturnamente pelo vício de sua esposa em performar prazer para os outros. Enquanto Scotty transformou o objeto desejado (Dirk Diggler) em escravidão do modelo.
As pequenas histórias vão formando um mosaico que apresenta o ambiente da pornografia. E nele vemos que prazer e dor são a mesma coisa. Não só isso. O desejo despretensioso de simplesmente gozar sem qualquer sentido leva à busca pela dor como preenchimento dessa ausência de sentido. A luxúria traz a afetividade para o sexo, mas essa afetividade fica encastelada num desejo incontrolável, cada vez menos consciente do porquê se busca na dor o seu sentido. A afetividade ensimesmada é um gatilho para o descontrole de um desejo autodestrutivo.
Amber sofre por abandonar o seu filho e não sabe o porquê. Jack sofre pela sua nobre arte não ser respeitada e não sabe o porquê. Todos vão decaindo em culpa e sofrimento porque foram entregues a um desejo incontrolável, cada vez mais irracional, e que só pode buscar na dor o sentido da sua existência.
Nesse mundo de abandonos, Eddie é justamente a exceção. Ele não está ali porque se entregou, mas sim por possuir consciência do seu dom sexual. Rapidamente, Diggler se torna o ator mais premiado e prestigiado dos Estados Unidos. Em seus discursos, mantém a esperança de que o seu dom está sendo usado para ajudar a vida das pessoas de alguma forma. Eddie está onde deveria estar porque é o melhor no seu métier. E esse encontro melódico do dom com as circunstâncias é o alimento que protege o seu espírito do melancólico sadomasoquismo do ramo pornográfico. O seu sucesso é instantâneo e fugaz como uma força da natureza.
Por isso, a queda de Eddie não é igual aos dos outros personagens. O filme entra no que realmente importa: a soberba do gênio diante do produto do seu talento leva à inevitável ruína. Essa é a passagem do prazer para a dor em Eddie. Ele não é um escravo da luxúria como os outros, mas um escravo do seu próprio dom, o que criou um desejo incontrolável de onipotência. Eddie briga com Jack e com os seus antigos amigos por orgulho e ciúme. Ele imagina que só depende de si, que o seu dom não precisa entrar em melodia com as circunstâncias.
Decadente na profissão, Dirk Diggler entra no mesmo círculo vicioso dos seus amigos de profissão. O prazer rende-se à dor. O desejo tornou-se uma incontrolável força em direção ao abismo. Eddie precisa sofrer duas vezes para despertar do seu delírio de onipotência: quando a morte passa perto dos seus olhos num estelionato mal planejado e quando é espancado numa exibição paga de masturbação. O gênio causa a sua própria ruína. Agora, Eddie experimenta o duplo do prazer e da dor. A vida escapa pelas mãos.
Todos estão no fundo do poço. Amber cada vez mais entregue a sua culpa. Jack não se adapta à pornografia das fitas cassetes. A rollergirl é humilhada por um ex-colega de sala durante uma cena improvisada. Os dons de Eddie se despedaçavam em orgulho e soberba. Nesse momento, diante da Cruz de Cristo numa Igreja ao fundo, Eddie percebe o sentido da sua vida diante do seu dom. Deus não se afasta dos sacanas ou das prostitutas. Pelo contrário, abunda onde a sinceridade se fez no perecimento.
É a decisão de Eddie de encarar a responsabilidade do seu dom que reconcilia todos a sua volta. Eddie teve que se perder em soberba e orgulho para se reencontrar. Só depois disso, compreendeu as forças invisíveis que guiam o desejo e porque este não pode ser controlado.
Ter um dom é estabelecer um compromisso consigo para o outro. O contrário é cair na ilusão da soberba. Eddie cria, tem um dom, mas nunca será autossuficiente. Ele sempre dependerá de uma série de atenções, circunstâncias e pessoas. A compreensão dessa finitude do dom ascende a sua consciência em direção às forças caóticas do desejo.
Ato 3: Eu imito
Nos dois primeiros atos, Paul T. Anderson nos levou para os dramas da existência e para a descoberta dos nossos dons nesse mundo. Existimos e temos um propósito. A consciência de si não ascende de maneira linear, mas através de choques, tensões, desilusões. O choque é o meio pelo qual a finalidade aparece de maneira mais clara nos quatro primeiros filmes. Faltava explorar a natureza das tensões.
A partir de Sangue Negro, Paul Thomas Anderson explora um outro tipo de drama psicológico. Qual a natureza do confronto? Por que brigamos por coisas tão vãs? O desejo é a resposta para as duas perguntas. Daniel Plainview abandonou a família e foi em busca de petróleo. Em aparência, parece mais um enredo sobre as ambiguidades da modernização e as ruínas da ganância, mas o filme trata de outra coisa. O que dá sentido as ações de Daniel não é uma ganância crua por dinheiro, mas o seu vício por vencer. Minuto após minuto, Paul Thomas Anderson vai revelando o caráter terrível e angustiante desse vício em conquistar sempre o objeto desejado.
Numa de suas falas, Daniel afirma: “Eu trago uma batalha dentro de mim. Brigar com todos para vencer”. Daniel não suporta desejar e não adquirir. Não importa as intempéries da natureza, a perna quebrada, a resiliência de pequenos rancheiros em arrendar as suas terras, a resistência religiosa de um dos donos, Daniel quer e terá. Ele é escravo do seu desejo.
Mas qual a natureza do desejo? A relação de Daniel com o seu filho (H. W.), e de Daniel com Eli coloca a rivalidade mimética no jogo. H. W. é batizado no petróleo por Daniel, o que se torna a sua sina. Ele perde a audição num acidente durante a extração de petróleo, e imita a trajetória do pai de renegação e busca incontrolável por seu desejo. A natureza mimética do desejo leva o menino a tentar destruir o pai tocando fogo na casa num primeiro momento, e depois abandonando-o em busca dos seus próprios campos de petróleo. Daniel é o modelo de H. W., mas quando o desejo e as situações saem do controle, o modelo torna-se rival. H. W. quer disputar o mesmo objeto (os campos de petróleo) com o pai porque não consegue perdoá-lo – e talvez não exista perdão para tudo que ocorreu. Ambos querem vencer, e o que aparece na relação entre pai e filho é a terrível incontrolabilidade da rivalidade mimética que vai contagiando tudo a sua volta.
Por sua vez, a rivalidade entre Daniel e Eli é mais cáustica. Eli é o pastor de uma pequena igreja da região – A Igreja da Terceira Revelação. Apesar do termo sobre as três revelações ser mais utilizado dentro do espiritismo, poderíamos dizer que, para os cristãos, a primeira é a Verdade revelada aos Judeus, a segunda é a desvelada pela experiência de Cristo na Cruz, e a terceira seria a Parúsia – a segunda vinda do Cristo.
Daniel possui um caráter iconoclasta por só reconhecer o seu desejo, sendo sincero em relação a isso. Eli é o seu duplo. Daniel se esconde no petróleo, Eli como “falso profeta”. Durante todo o filme, a tensão entre os dois vai aumentando e consumindo as duas partes. Daniel dá um banho de petróleo em Eli. Eli batiza Daniel com muitas admoestações e tapas na cara. Eles se reconhecem mutuamente, e isso é aterrorizador, pois mostra como os desejos de ambos se tornaram desordenados, e como não podem ser controlados, dirigem-se para a autodestruição.
No fim, quando Daniel está desolado ao perceber a autodestruição que se submeteu em relação ao filho por ser impossível controlar o desejo, ele se defronta com um Eli sedento por dinheiro. Depois de humilhá-lo, Daniel exclama: “Eu sou a terceira revelação”. A terceira revelação é a dor da queda. A consciência de que não conseguimos lidar com a soberba, o orgulho, e a prepotência. A vida escorregou pelas mãos. Os desejos se tornaram todos desordenados e – como todo desejo – algo incontrolável.
O caráter mimético do desejo aparece de maneira ainda mais perturbadora em O Mestre. Freddie Quell parece mais um ex-combatente traumatizado pelos horrores da guerra, porém, o seu problema é mais abrangente do que um trauma: ele não consegue controlar o seu desejo. Impulsivo, Quell não faz outra coisa senão o que quer. Quando o seu desejo aponta para o sexo, vem a dor. Quando o seu desejo aponta para a violência, vem o recolhimento. A vida de Freddie muda quando ele encontra Lancaster Dodd.
Dodd é o mestre de uma espécie de seita mística e racionalista. Ele guia longos exames de consciência que seriam viagens às vidas passadas. Esses exames teriam o poder de cura por ensinar a técnica do autocontrole. Dodd é uma figura fáustica. Num de seus discursos avisa: “Sou acima de tudo homem. Um homem extremamente curioso”. Ele investiga cada aspecto da vida na esperança de adentrar aos mistérios mais profundos da existência. Quando é confrontado por uma mente rigorosamente objetivista, que o acusa de praticar hipnose, Dodd responde que a sua terapia é uma compreensão da consciência como um fluxo temporal. E continua: “Viajar no tempo tem seus perigos. É como viajar num rio”. O exame de consciência guiado por Dodd seria uma longa travessia onde o homem aprenderia a ter um perfeito conhecimento sobre si, o que levaria ao autocontrole absoluto sobre os seus desejos. Por isso, Dodd conclui como profeta que anuncia um belo futuro: uma verdade desvendada não deve ficar oculta.
De maneira abrupta, Freddie representa um duplo desafio para Dodd. Primeiro, porque Freddie é incontrolável e não sabe lidar com os seus desejos. Segundo, porque o fracasso com Freddie provaria terrivelmente que todas as teorias de Dodd são apenas ilusões sobre o controle do desejo.
Essas ilusões de Dodd escondem algo mais profundo e aterrorizante: não é o desejo que podemos manejar, mas apenas a nossa consciência, e isso significa lidar com responsabilidades e culpas, enxergar os nossos próprios demônios e negociar internamente com o que somos. Com suas teorias, Dodd quer escapar dessa realidade árida.
A amizade de Freddie e Dodd vai se desenrolando como um duplo. Dodd quer ser um mestre para Freddie e confirmar as suas teses para não ter que se defrontar com a terrível realidade sobre a consciência e o desejo. No entanto, tudo começa a dar errado para Dodd. A vivência com Freddie torna-o mais impulsivo, mais agitado, mais violento, e ele começa a ser perseguido pelo governo. Quando Freddie sai de cena, Dodd volta para a sua velha máscara e retorna ao sucesso.
Freddie é o espelho terrível que mostra a natureza mimética do desejo para Dodd. Por isso, ele quer desfigurar o objeto. Como Freddie não aceita ser domado, só resta para Dodd a dissolução do objeto: o fim da amizade com uma ameaça caso se reencontrem nas próximas vidas. Freddie é tudo que Dodd não quer e não pode ver. Freddie mostra o caráter terrível e assustador do nosso desejo. No final, um Dodd assustado nos avisa quase admitindo o que renega: “é impossível viver sem um mestre”.
Ato 4: Eu pereço
Os últimos dois filmes de Paul T. Anderson são o remate de Sangue Negro e O Mestre. O caráter incontrolável do desejo é algo assustador para a consciência humana. E a consequência disso é uma perecibilidade crescente e constante.
Vício Inerente parece mais um pastiche sobre filmes policias e hippies com uma investigação sem ordem e coerência. O excesso de drogas e a narrativa cambaleante são intencionais. Paul T. Anderson adquire a consciência do telespectador e a conduz para a vertigem absoluta.
A nossa consciência pode fazer escolhas decisivas sobre a trajetória que tomaremos pela vida. Ela pode evitar que pequenas desordenações se transformem em grandes desordenações. Mas, para isso, a consciência terá que se deparar com os nossos demônios interiores, a sua paralisante feiura, ver o pecado como de fato ele é. E isso é terrível. Significa enxergar responsabilidades e culpas, negociar interiormente com o que somos e fazemos. É essa consciência de si que pode conduzir timidamente mais para os desejos virtuosos do que para os desejos sem virtude.
No entanto, não queremos ascender nossa consciência. Os seres humanos não querem ver o que há de terrível em sua natureza. E, sem isso, o desejo vai se guiando cada vez mais para o desordenado, caminhando em direção ao abismo. A vida escapa de nossas mãos e a nossa alma está em jogo. O que nos restou foi a tímida ilusão de controlar os nossos desejos. Mas o desejo não se controla. Ele é pássaro rebelde. Uma vez que o desejo brotou de maneira irresoluta, agimos como animais em busca dele. De maneira mais ou menos disfarçada dependendo da circunstância. A humanidade não quer tomar consciência do seu drama, e se ilude achando que pode conter os danos ao tentar controlar os seus desejos. A consequência é um declínio cada vez mais acentuado nos gostos. É a vertigem.
A vertigem do homem completamente entregue à rebeldia do desejo é o nosso vício inerente. Uma dor inescapável e necessária à própria essência da coisa. Como afirma a narradora do filme falando sobre a relação entre Doc e Shasta: “Ovos quebram, chocolate derrete”. A natureza das coisas possui a sua própria queda. O desejo é vício inerente, pois não pode mais ser controlado.
O caráter perecível da humanidade aparece assustadoramente em Trama Fantasma. Nesse filme, não só descobrimos que as coisas são assim, mas tomamos consciência de que somos e seremos assim. Como os personagens principais (na verdade, duas consciências num só corpo), somos incitados a abraçar nossa miséria, nossa queda, e os dramas da humanidade.
Reynolds Woodcock é um gênio da alta costura. Ele é metódico, detalhista, e muito genioso. Solteiro convicto, está sempre buscando uma nova musa, pois admite que está se relacionando, ao mesmo tempo, com o outro e com o modelo de relacionamento que possui. O dom de Woodcock é usado de maneira soberba, mas ele aprendeu a disfarçar as suas ruínas pessoais com a falsa segurança de quem acredita ter domínio sobre todas as situações. A honestidade com os seus instintos não dissolve a natureza do desejo. A hipocrisia do mundo dos ricos disfarça a sua miséria existencial.
Por isso, Alma aparece em sua vida não apenas como uma nova musa, mas como um confronto obrigatório e inadiável consigo mesmo. A relação entre Woodcock e Alma é um drama na própria consciência do personagem. Alma é a condutora desse mergulho profundo nas coisas mais insondáveis. Entre os dois, se estabelece uma relação afetiva com as ambivalências de todos os sentimentos. Já não é possível distinguir entrega de egoísmo, amor de paixão, admiração de piedade, carinho de admoestação. Todos os sentimentos estão presentes em nossas afeições.
A narrativa se encaminha para o seu remate quando Alma mostra impiedosamente a falsa segurança de Woodcock. A soberba é uma ilusão. Somos pequenos, frágeis, confusos, perecíveis. É confortável pensar que somos fortes, que somos bons, mas não passamos de meninos fenecendo. Alma defronta Reynolds com a sua própria consciência da fragilidade quando usa cogumelos para adoece-lo terrivelmente por um dia. O gênio da alta costura estraga o vestido de casamento de uma princesa, não é capaz de se sustentar em pé, e torna-se totalmente dependente do trabalho de suas ajudantes.
Perecendo terrivelmente por um dia, Woodcock enxerga a sua miséria e decide pedir Alma em casamento. Ele avisa: “pensei que os meus dias eram infinitos. Os erros que cometi, eu repeti”. A falsa segurança dissipou-se. Alma aguenta a ignorância, o ensimesmamento, e o egoísmo do seu marido, porque gosta de mimá-lo. Ela depende de um Woodcock frágil, humano, pois só assim consegue fazê-lo ter consciência dos dramas da vida. E ele precisa dessa submissão para amá-la. Os dois estão no lugar certo porque é onde se desdobra os dramas de consciência do casal que se tornou – de fato – um só.
A beleza do perecimento é o encontro com a misericórdia genuína. Por isso, paradoxalmente, a destruição torna-se salvação. Alma precisa de um Reynolds fracassado para acalentá-lo. Reynolds necessita de uma mulher assim para se redimir de sua prepotência. Os dois são um. O que realmente se passa entre os dois é invisível aos olhos de todos, é uma “trama fantasma”, pois se constitui como um drama de consciência. E isso não acabará nunca. É um casamento para eternidade.
Alma e Reynolds ajudam-se mutuamente a compreender o drama da existência. O desejo é rebelde e incontrolável. E só a consciência pode mudar alguma coisa. O que distingue a nossa travessia na vida é como construímos nossa existência, nossos fazeres, nossa afetividade diante da consciência do que somos.
Por isso, no fim, Alma diz: “Eu quero você totalmente derrotado, fraco, exposto. Só tendo a mim para ajudar. E então eu te quero forte de novo”. Alma é a voz da vida. Precisamos de dias ruins para relembrar o que somos. Então, Reynolds responde: “Meu amor, me beije antes que eu adoeça”. Os dois estão no lugar certo para compreenderem o que são, e encontrar a beleza na dialética humana entre criar e perder, construir e perecer. Como diz Alma: “Ele estará esperando por mim na próxima vida. É só ter paciência para alcança-lo de novo”.
Expressando a ascensão da consciência de si diante das coisas terríveis que nós – seres humanos – teimamos em esquecer, Alma conclui o filme com uma lápide sobre toda filmografia de Paul Thomas Anderson: “Estar apaixonado por ele resolve todos os mistérios da vida”.
Elton Flaubert
Doutor em História pela UnB.
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