Há estabilidade no caos?

por Luiz Ramiro (01/11/2019)

A pesquisa de Eduardo de Alencar revela o imenso desconhecimento no Brasil a respeito da dinâmica de nossas prisões.

“De quem é o comando? – O desafio de governar uma prisão no Brasil”, de Eduardo Matos de Alencar (Record, 2019, 532 páginas)

Menos de um mês após seu lançamento em São Paulo (17/10), o livro do sociólogo Eduardo Matos de Alencar, De quem é o comando?, já subiu ao 1o lugar da lista dos mais vendidos em Ciências Humanas pela Amazon. Não se trata de uma obra de ficção policial, de reportagem investigativa ou de livro acadêmico. Na verdade é tudo isso e muito mais. Dotado de veia literária, Alencar traduziu sua tese de doutoramento defendida no departamento de Sociologia da UFPE para um texto de fôlego, agradável e instigante, palatável ao grande público. A riqueza dos relatos, a capacidade descritiva para explicar o funcionamento de agentes e instituições, fez do texto uma verdadeira escola para qualquer um que procure aprender ou compreender como se faz um trabalho investigativo costurado pela Sociologia.

No bate-papo de lançamento do livro no Rio (22/10), o jornalista Allan de Abreu – autor de Cocaína – A Rota Caipira, salientou o quilate da obra de Alencar: profunda análise científica com exímia capacidade de inserir o leitor na situação real convivida pelo pesquisador. É de fato um texto raro. Pois em geral a linguagem acadêmica das teses e dissertações cria uma camisa de força, com um emaranhado de citações e referências que se afastam da leveza ensaística. Trata-se de uma cientifização torpe, que impede o texto corrido (e legível) em nome de uma propensa “ciência”. Curiosamente, um dos maiores filósofos contemporâneos, Nicholas Nassin Taleb, argumenta que justamente a tara quantitativista, a necessária demonstração de gráficos e estatísticas em textos de ciências humanas, revela as próprias incongruências e em diversos casos não é mais do que muleta para incapacidades lógicas[1].

Por outro lado, Eduardo de Alencar faz muito mais do que contar o que viu, ouviu e sentiu em 2 anos de pesquisa de campo nas três unidades prisionais que compõem o Complexo do Curado, na grande Recife[2]. Há uma permanente preocupação com os conceitos e a elucidação de uma tese: de quem é o comando da prisão? Por todo o contexto de domínio das grandes facções brasileiras, em especial o Primeiro Comando da Capital (PCC) e o Comando Vermelho (CV), o lance inicial era procurar no Curado a existência ou representação de algum desses poderes, isolados ou em disputa. Contudo, assim como a relação PCC-CV não é linear, preto no branco, tampouco em Pernambuco se poderia presumir uma receita de bolo sobre o que acontece nos presídios do país.

Mas afinal, como é possível que os mais de 7 mil detentos, num ambiente confinado para cerca de 1.800 vagas, mantenhan uma convivência, sob tensão permanente, e sem um efetivo controle estatal disciplinador ou a “guarda” de uma grande facção criminosa? Quem comanda, quem protege, quem gerencia aquela bomba-relógio?

O autor demonstra que, ao contrário de uma noção pré-fabricada, por vezes importada de autores como Michel Foucault, que concebem um hipercontrole institucional sobre as prisões, o que vigora no Brasil, e em especial no Curado, é a administração de um meio ambiente caótico. O controle estatal é fraco, e não é conveniente aos presos locais a dependência de um mecanismo estranho, como o PCC de São Paulo. Assim, vigoram os pequenos domínios privados no interior da cadeia pública. Nesse sistema a figura do “chaveiro” é o grande agente da mediação das relações, é aquele por meio do qual se realiza a “governança” da prisão. O “chaveiro” é um detento que goza de uma ascendência moral sobre um pavilhão, e logra uma confiabilidade junto à direção do presídio, como um intermediário entre as partes.

Ao comentar sobre o livro, João Cezar de Castro Rocha, professor de literatura da UERJ, disse que se Eduardo de Alencar havia lançado uma lupa da sociedade sobre o Curado, nós poderíamos tomar aquela realidade para, inversamente, enxergar o Brasil. O estudo propositadamente não procurou a métrica do tipo ideal weberiano, mas se filiou àquilo que Walter Eucken usou para tratar da economia: o entendimento da economia de uma única casa ou vizinhança poderia servir de parâmetro para a economia de uma sociedade inteira. Assim, as particularidades do Curado podem servir para explicar o sistema prisional do país. Como? Não há apenas uma resposta, há várias, sobre as quais o autor se debruça.

Primeiro, não é possível fazer, dentro de um país tão complexo e heterogêneo, modelos estanques de prisões ou de qualquer política de Segurança Pública. A pesquisa de Eduardo de Alencar revela algo espantoso: o imenso desconhecimento no Brasil, seja no âmbito acadêmico, seja na administração pública, sobre a dinâmica das prisões. Falta literatura, falta análise, falta preparo, falta atenção para o problema. O pontapé que é dado no texto é o de revelar uma ignorância fatal, a qual não deve, ou não deveria, persistir, ainda mais para um país com tamanhos dilemas relativos à violência.

Segundo, é ilusório crer na capacidade estatal para administrar conflitos sem um resgate da autoridade pública. A rede que mantém o sistema de influência dos “cabeças de área” nos pavilhões prisionais é patrocinada pelo Estado, cujos agentes aplicam seletivamente a legislação, contra rivais, em troca de favores e pela divisão do lucro da economia gerada dentro e a partir da prisão. Com a conivência os prisioneiros encontram um ambiente paradoxalmente regular para exercerem seus negócios, dentro e fora. Daí não ser curioso que de dentro das penitenciárias líderes controlem e gerenciem o que acontece nas ruas.

Terceiro, o circuito de negociações existente dentro das prisões, que leva os agentes penitenciários a agirem com discricionariedade, existe porque há falta de regularidade nas normas constituídas. Mais, o próprio desconhecimento sobre a realidade dos complexos prisionais gerou inúmeras leis incompatíveis com aquele sistema, tornando essas normas e protocolos instrumentos de barganha, ao invés de meios de proteção e controle previsíveis. O próprio emaranhado que compõe o mercado interno de bens e serviços dos pavilhões – drogas, sexo, cigarro, bebida, comida, espaço, colchão, ventilador etc. – só existe pelo consentimento dos agentes, que se valem dessa situação. Ao mesmo tempo, é esse ambiente de infindáveis trocas que permite algum grau de convivência entre presos, e entre presos e os órgãos públicos e agentes não governamentais, dada a contínua pressão daquele lugar.

Quarto, o mais importante no sistema prisional é a informação. O drama da falta de investigação policial no Brasil, e de como isso gera todo um ciclo de impunidades, reflete-se dentro das prisões. Parte significativa da tensão permanente se dá pela falta de previsibilidade, de modo que a informação opera enquanto instrumento de troca, pressão, constrangimento, proteção. Se de um lado os agentes públicos podem ter seus “informantes” entre os detentos, o uso e a circulação de celulares, com toda sorte de troca de informações dentro e fora da cadeia, é central para compreender a capacidade de articulação do crime. O modo como os grupos criminosos se organizam atualmente não seria possível sem o advento das mensagens instantâneas de celular.

Quinto, o Curado precisa acabar. Longe de um brado pela despenalização, o comentário que Eduardo de Alencar faz a respeito da necessidade de reforma no sistema prisional acompanha as poucas importantes obras no assunto, como o trabalho pioneiro de Edmundo Campos Coelho nos anos 1980, sobre a penitenciária da Ilha Grande. Aquele ambiente tenso é nocivo e nada razoável. Do estímulo a penas alternativas para crimes de menor potencial ofensivo até a própria implosão do Curado, estão entre as principais indicações deixadas no texto. No caso, a retirada daquele complexo de um bairro com alta densidade populacional seria o mais saudável a ser feito, para além de um ato simbólico.

De quem é o comando? emula inúmeras ideias e pensamentos sobre  Direito, Ciências Sociais, Violência, Governança, Poder, Teoria Política, e, é claro, Segurança Pública e o Sistema Prisional no Brasil. Há inclusive um tema de fundo essencial, sobre a formação brasileira, e que se pode imputar para vários momentos do texto. O Brasil é marcado pela teoria do consensus ou pela noção dos conflitos permanentes? O fato da “governança” diante de um espaço tão caótico explica um pouco de nossa capacidade de criar conformidade diante da confusão, tendo marcado a própria Independência do país? Ou, a miríade de negociatas que ocorrem na prisão é a forma possível de administrar os conflitos que são latentes, produto de uma sociedade incapaz de criar códigos mútuos, de efetivamente fundar uma Cidadania? Para qualquer uma das respostas perdura o mistério, que Eduardo de Alencar nos revela: de que maneira algo tão tenso, sujo, violento, carente de previsibilidade normativa, superlotado, não estoura com rebeliões cotidianas? No Curado até mesmo a violência é administrada, como os castigos impelidos por presos considerados como “gatos” ou “X9” – que delatam os companheiros, ou aos “ratos” – que roubam de outros presos.

É inegável a riquíssima contribuição do livro. Sua chegada é oportuna: num momento tão ermo às pesquisas e às universidades no Brasil – conforme uma aposta errada do atual governo federal em atrofiar e debochar, ao invés de substituir o modelo e restaurar o ensino e a pesquisa superior no país. O livro do Eduardo de Alencar cumpre uma tarefa elementar, de trazer aos pesquisadores, tomadores de decisão, bem como ao público em geral, uma junção daquilo que há de melhor numa formação humanística e acadêmica com uma perspectiva concreta sobre a realidade da Segurança Pública no país. Distante de modismos e cacoetes ideológicos, que pregam despenalização, desencarceramento, Direitos Humanos, legalização das drogas, e outros mantras de ideologias liberais radicais e socialistas, o autor esclarece os problemas e aponta que “o buraco é mais embaixo”, que lei e ordem são essenciais, e que a administração do caos é um ciclo infernal.

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NOTAS

[1] Nassim Nicholas Taleb explica essa questão em “Inequality and Skin in the Game”, de um dos capítulos de seu livro Skin in the Game. O texto pode ser acessado pelo link: https://medium.com/incerto/inequality-and-skin-in-the-game-d8f00bc0cb46

[2] Formam o complexo, o Presídio Frei Damião de Bozzano (PFDB), o Presídio Juiz Antônio Luiz Lins de Barros (PJALLB) e o Presídio Agente Marcelo Francisco de Araújo (PAMFA).

Luiz Ramiro

Professor de Segurança Pública (UFF/CEDERJ) e Coordenador-Geral na Fundação Biblioteca Nacional.

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