O que pensa Sergio Moro, ninguém sabe. O que se sabe é que existe uma multitude de pascácios aptos a acreditarem em qualquer coisa.
I.
Mais de uma vez em minhas colunas para a Amálgama fui, por força circunstancial do retardo político do Brasil e de seu povo, a repetir a epígrafe de Karl Marx em O 18 Brumário de Luís Bonaparte. Marx, que é desconhecido pelas esquerdas múltiplas que jamais o leram, mas viram releituras de fichamentos de comentários, e desconhecido pela caricatural direita neoconservadora que teme uma suposta releitura sua gramsciana, raramente acerta. Quando o acerta, de fato, é na análise da história que lhe era contemporânea, e esta ocasionalmente também nos serve para o tempo presente no manicômio federativo do Bananil. Serve, por exemplo, neste trecho:
“Hegel observa em uma de suas obras que todos os fatos e personagens de grande importância na história ocorrem, por assim dizer, duas vezes. E esqueceu-se de acrescentar: a primeira vez como tragédia, a segunda como farsa. Caussidière por Danton, Louis Blanc por Robespierre, a Montanha de 1845-1851 pela Montanha de 1793-1795, o sobrinho pelo tio”.
Oras, se Hegel acreditava que os fatos se repetiam duas vezes na história, e Marx acrescentava que se sucediam enquanto tragédia e depois farsa, é porque desconheciam a capacidade do brasileiro de infantilizar-se politicamente e de investir em gêneros literários cada vez mais caricatos para compor sua narrativa política. Na história do Brasil, as farsas políticas se emendam às tragédias, em vez de serem repetidas a posteriori em novo formato, e muitas vezes até são sucedâneas entre si. E, não raro, como agora, as desgraças que lhes são sobrevindas se pretendem recauchutadas dentro do mesmo pacote e formato de novidade antipolítica, populista, contrária ao establishment e anticorrupção, mas apenas reciclam o contexto do gênero: são comédias.
Existe uma multitude de pascácios com título de eleitor aptos a acreditar em qualquer coisa, e não raramente são até os mesmos de sempre, caso a caso. São batidos os que acreditaram em um Fernando Collor superpoderoso, combatente da corrupção, que faria todas as reformas estruturais necessárias ao Brasil (e até fez algumas, ao contrário do farsante que se investiu do mesmo manto), e que depois sumiram das praças públicas, fingindo-se todos de mortos quanto a quem tenham votado em 1989. O mesmo gênero de gente, embora não as mesmas pessoas ‒ às vezes, pode até ser que sejam as mesmas em certos casos ‒ continua acreditando até hoje em um Jair Bolsonaro superpresidente a demolir a corrupção e fazer todas as reformas estruturantes que afastam o fantasma do petismo, ainda que trocando constantes lambidas, afagos e fluidos seminais com Arthur Lira, Ciro Nogueira e os arquidelinquentes condenados Roberto Jefferson e Valdemar da Costa Neto. Tudo bem, faz parte da farsa, enquanto caricatura estrutural, pretender-se inabalavelmente séria.
O gênero de cidadão ansioso por ser enganado sempre se repetiu. Há aquele que acreditou e que continua acreditando em um Lula antipolítico e contra o status quo, mesmo quando é, por essência, o nadir do político brasileiro do século XXI. (Aos que sempre souberam que Lula é um político hábil na arte da rebolação sensual partidária, presto, é claro, meus respeitos). É o mesmo, aliás, que acreditou meio século antes em um Getúlio remasterizado, e que logo depois abraçou com força Jânio Quadros, votou em João Goulart para seu vice, e aceitou bovinamente a Ditadura Militar. É o mesmo que acreditou nas deliciosas campanhas do gênio João Santana sobre Dilma, a coração valente que foi incapaz de reverter um voto sequer em seu desfavor no Senado Federal, porque preferiu aceitar a cantilena do golpe que nunca foi. É o otário que acredita toda vez que Lula diz que après moi, le déluge. Ou que, na direção oposta, veste camisas onde se lê “Meu partido é o Brasil” e declara que iria votar em Eduardo Campos antes do acidente de avião (não sabia nem quem era, e não ia votar mesmo), ou que Enéas foi o melhor presidente que o Brasil jamais teve. Sobre este típico cidadão brasileiro, afinal, existe um adágio que lhe representa: “todo dia saem de casa um malandro e um otário: quando os dois se encontram, alguém faz negócio”.
Com o devido perdão, o otário ‒ seria eufemismo dizer “cidadão-médio brasileiro”, e pleonasmo dizer “cidadão-médio brasileiro otário” ‒ que está decepcionado com Bolsonaro, porque uma parcela de otários continua firme e forte e de mãos dadas com o seu mito rumo à lata de lixo, escolheu um novo paladino para chamar de seu.
II.
O novo paladino da honestidade, a virgem vestal máxima que consigo carregará a tocha da iluminação e da anticorrupção à política brasileira, em verdade, já não é novo. Enquanto vestal, aliás, já não é mais casta, tendo rompido o seu sacro cabaço ‒ crime que Plínio, o Velho, não o de Arruda Sampaio, estabelece como punição a morte por soterramento ‒ ao fazer abertamente campanha na reta final de 2018 e negociar um ministério. A novidade é que, em vez de se deixar usar como instrumento captador de votos para outrem, vai captar votos para si mesmo.
Ecce homo, Sergio Moro. Finalmente decidiu vir ao páreo político candidatar-se como Presidente da República, tentando resgatar alguma coisa de seu prestígio roubado por Bolsonaro. Em seu discurso de anúncio de candidatura ‒ aliás, de pré-candidatura, digo, de filiação ao Podemos ‒ como testa do partido da lava-jato, a que se somará Deltan Dallagnol como candidato ao parlamento, já empunhou a vassoura janista e se prometeu como o campeão contra a corrupção. É legítima e bem-vinda a sua candidatura.
O que pensa Sergio Moro, sem acento no “e” ‒ coisa que a legião arrebatada de fanáticos por ele não percebeu em 2018 e tampouco perceberá em 2022 ‒ ninguém sabe. Qual é sua visão de economia para o país? Ninguém sabe. O que pensa a respeito da assistência social? Ninguém sabe. O que fará para conter a sangria desatada dos cofres públicos desde a sucessão de Henrique Meirelles no ministério da Fazenda (com o novo e patético nome de “ministério da Economia”)? Ninguém sabe. Para si, de algum modo, é prioritário reformar a previdência, sobretudo a previdência militar superfavorecida? Ninguém sabe. Qual é a sua posição a respeito de temas das liberdades sociais, tais como o comércio, consumo e produção de drogas, o aborto, liberação do porte de armas? Ninguém sabe. Qual é o seu projeto para o Brasil? Ninguém sabe. Duvido, inclusive, que o próprio Sergio Moro saiba.
Mas, sem nada saber sobre Moro, acredita-se nele. Acredita-se, mais uma vez, que fará uma revolução ética na política e no serviço público, à guisa do que foi esperado com Bolsonaro, ou com Collor, ou com tantos outros. Acredita-se que Moro representará o fim da corrupção, do terço do fiscal, do arrego do policial. Acredita-se que será o fim do jeitinho brasileiro, coisa que sequer um asteroide gigante ‒ como aquele que exterminou os dinossauros ‒ conseguiria. Acredita-se porque existe ânsia de acreditar em qualquer salvação.
Sergio Fernando Moro foi ministro da Justiça por um ano e quatro meses, e este foi o único cargo político que exerceu. Nunca foi eleito vereador, prefeito, deputado estadual ou federal, senador, governador, nada. O máximo que fez no serviço público foi passar em dois concursos públicos, tendo sido um professor medíocre de processo penal na Universidade Federal do Paraná ‒ sequer comparecia às aulas marcadas, sobretudo durante o auge do estrelismo na Lava-Jato ‒ e um juiz federal de questionável proceder, tendo transformada em duvidosa, por sua conduta questionável à luz do direito, condenações certeiras nas mãos de juízes mais certos. A mediocridade na sua profissão originária, enquanto operador de direito, não diz absolutamente nada: Antônio Carlos Magalhães foi um médico cardiologista que nunca viu um coração ou um paciente, e um professor da Universidade Federal da Bahia que jamais deu um dia de aula, mas também foi um dos políticos mais brilhantes da segunda metade do século XX.
Contudo, em sua curta participação política antes da candidatura, Moro mostrou-se uma vergonha enquanto homem público. Pusilânime, depois de emprestar o seu prestígio para o uso de Bolsonaro para a toilette íntima, voltava atrás em cada chilique do chefe. Supostamente indemissível, voltava atrás em todas as suas decisões quando o chefe ameaçava demiti-lo. Por quase um ano com a espada de Dâmocles pendendo sobre sua cabeça, prostituiu-se à espera de uma vaga no Supremo Tribunal Federal que jamais viria ‒ mesmo mal de que padece Augusto Aras, procurador-geral da República. Quase nada do que fez enquanto ministro da Justiça, ou que prometeu fazer, se concretizou, senão assistir às exéquias da Operação Lava-Jato. Por fim, com a dignidade completamente perdida ‒ entrou como o segundo maior eleitor de Bolsonaro, perdendo no posto apenas para Adélio Bispo ‒ renunciou ao cargo, partindo para o ocaso.
Embora, ao contrário do petista ‒ uma parcela de gente excepcional no sentido neurológico da palavra, que jura ver em Moro uma grande arma treinada pela CIA para roubar o nosso petróleo, vender a nossa Amazônia, ou mesmo entregar aos gringos um país que sequer o Suriname, em podendo, não quereria anexar ‒ nada tenha contra Moro fora da seara política e jurídica, nada também tenho a favor. Dele nada se sabe senão o que sua assessoria, inclusive a de marketing, projetou para o mundo. No mundo político da pós-verdade, onde é preferível o apelo emocional e o efeito do storytelling, é o candidato perfeito. Para quem tenha um pouco mais de bom-senso, contudo, a coisa não é assim.
Sabendo que o homem, enquanto político, foi pífio, como ainda podem confiar as esperanças do impossível em si? Como entregar novamente, depois do que foi feito, um cheque branco de novo a alguém? A candidatura de Moro, se concreta, tende a apresentar grande ameaça a Jair Bolsonaro. Quiçá poderá chegar, ademais, ao segundo turno. Mas, fá-lo-á não pelo seu plano de governo (ninguém liga), nem tampouco pelos dotes de oratória, nem por nada que não seja o desejo inconsciente de ser traído por si mesmo, intrínseco ao brasileiro. E é por isso que é possível suceder a comédia à farsa, com um sem-número de pessoas a ver suas expectativas projetadas e, repentinamente, não-atendidas. Uma comédia de traição, onde suposto traído desejava intimamente o par de chifres para voltar à sua cantilena de coitado. Uma comédia, aliás, digna de Nelson Rodrigues, que bem poderia ter por título “O negócio do otário com o malandro”.
Lucas Baqueiro
Bacharel em Humanidades pela UFBA. Editor de política e atualidades da Amálgama.
[email protected]