A PEC dos precatórios é um dos maiores estelionatos eleitorais da história recente.
A PEC dos precatórios foi aprovada em primeiro turno do plenário da Câmara dos Deputados, por 312 a 144 votos. Foi aprovada com aperto de quatro votos, uma vez que uma proposta de alteração da Constituição necessita de, ao menos, 308 votos.
O presidente da sessão, Arthur Lira, inovou em sua leitura do Regimento Interno da Câmara dos Deputados. Determinou que a aglutinação das emendas acordadas por deputados da base configurasse uma “emenda aglutinativa”, substituindo o texto principal, à moda de Eduardo Cunha. Junto à edição de ato da mesa que permitiu que deputados em viagens oficiais votassem na sessão, os atos proferidos nada mais foram do que tentativas de assegurar que a PEC passasse o mais rapidamente possível pelo plenário.
A estratégia, que configura um tratoramento do Regimento Interno da casa – já que são casos em que atos da mesa ferem dispositivos no Regimento -, é bastante comum em casos nos quais presidentes do parlamento visam passar propostas controversas do governo. A Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), em reação, está estudando possíveis ações legais a serem tomadas contra a violação de artigos do Regimento Interno.
Um “precatório” é uma decisão transitada em julgado que determina que entes federados paguem dívidas junto a pessoas físicas e jurídicas. A Proposta de Emenda Constitucional 23/2021 altera artigos da Constituição Federal para permitir o parcelamento do pagamento de precatórios por parte da União.
Para esse fim, concede um gatilho-limite para que somente possam ser parcelados precatórios bilionários. Somado a uma disposição em prol da correção monetária pelos juros da Selic, este dispositivo adiciona razoabilidade no que é, essencialmente, um calote: o não-pagamento de dívidas juridicamente executadas. Por isso, tanto o gatilho-limite quanto a correção monetária tem sido objeto de repetido apego na retórica de Paulo Guedes, em justificativa apresentada em prol da razoabilidade e da proporcionalidade da proposição.
A PEC permite, ainda, o pagamento das dívidas por meio da alienação de imóveis pertencentes à União e da venda de ações de empresas estatais a que a União tenha posse. Composto por esses recursos, a PEC institui um Fundo de Liquidação de Passivos da União, que pode ser utilizado para a antecipação do pagamento dos precatórios. São propostas interessantes, porquanto seguem uma tendência de desestatização da economia brasileira. Esse interesse é imediatamente mitigado pelo fim vexatório a que se destinam os recursos: o adiantamento no pagamento de recursos renegados no que é – doutra vez – um calote.
A proposta acaba com os chamados precatórios “superpreferenciais” – decisões transitadas em julgado nas quais o pagamento de um precatório inclui-se no exercício vigente, escapando à Lei Orçamentária Anual e às formas previstas em lei para o pagamento de precatórios. Um dispositivo fiscalmente responsável, já que a determinação de precatórios “superpreferenciais” é origem de tremenda instabilidade orçamentária e tem tido sua constitucionalidade questionada. Por esse motivo, foi o mais enfatizado na justificativa escrita por Paulo Guedes, que – novamente – insiste na “absoluta proporcionalidade e razoabilidade da proposição”.
Não é necessário aos conhecedores do mercado financeiro informar que a notícia foi acompanhada de alvoroço na Bolsa. O índice Ibovespa, que vinha crescendo na última semana, fechou o dia seguinte à aprovação em queda. Analistas afirmam que, caso a PEC não seja aprovada em segundo turno – o que é provável, dado o aperto na votação -, o mercado financeiro receberá a notícia positivamente. Para além da perda de credibilidade causada pelo calote, a PEC dos precatórios assinala, principalmente, um furo no Teto de Gastos (Emenda Constitucional 95), que estabelece um limite para as despesas primárias da União.
O mercado financeiro valoriza a estabilidade. De acordo com um relatório do Banco Mundial em 2017, o Teto de Gastos serviu aos propósitos imediatos de estabilizar a dívida pública e estabelecer uma transição do Estado brasileiro ao que se conhece como estrutura de gastos a médio prazo (medium-term expenditure framework, ou MTEF).
O Teto de Gastos é controverso. Muitos comentadores argumentam que as altas dívidas públicas de diversos países no estrangeiro – notadamente os Estados Unidos e o Japão – são evidência de que um país pode desenvolver-se sem a necessidade de preocupar-se com a dívida pública. Esse argumento conta somente metade da história. É verdade que o volume de dívida total – que, no Japão, chega a atingir o patamar do dobro da proporção do PIB – pode ser alto em países com boas taxas de crescimento autossustentado. Mas o que importa, a partir de uma perspectiva macroeconômica, não é tanto o tamanho – embora este também importe -, mas a estabilidade da dívida. Uma dívida em brusco aumento desestabiliza a capacidade de pagamento do Estado. É mais difícil aos governos pagarem uma dívida que aumenta bruscamente a cada ano, o que incrementa o risco de inadimplência e espanta os investidores.
Em 2017, a dívida pública encontrava-se em uma trajetória de aumento. Esse aumento mostrou-se assustador: entre 2012 e 2017, a dívida pública mais que dobrou como proporção do PIB. A desestabilidade resultava, estruturalmente, da tendência de aumento nos gastos primários, como os vinculados constitucionalmente, folhas de pagamento e repasses à seguridade social. O regime fiscal vigente forçava o Estado a fazer repasses a determinados setores do orçamento tendo como base uma proporção fixa da receita, mas proibia que se diminuíssem os repasses. Isso significa que se, em um dado ano, o Estado gastasse uma percentagem das suas receitas em algum setor, tinha de gastar a mesma percentagem no próximo ano – ou uma percentagem maior.
Estava em curso uma bomba-relógio fiscal. Uma vez que as receitas se encontravam em brusca diminuição entre 2014 e 2017 – devido à crise econômica -, os pagamentos determinados constitucionalmente só seriam possíveis se a dívida aumentasse mais a cada ano. O Teto de Gastos mudou as imposições constitucionais, exigindo que os gastos primários de determinado ano fossem os mesmos do ano anterior, sendo somente ajustados pela inflação. Isso assegurou que a dívida se estabilizasse. Se não fizesse ajustes, o Estado brasileiro teria de fazer jus à música de Raul Seixas, revisitando a década de 1980 e dando um calote aos emprestadores.
Com a PEC dos Precatórios, o Estado brasileiro cumpre a tragédia anunciada de um calote enquanto simultaneamente fura o instrumento fiscal que sinalizava estabilidade aos mercados. Ainda que o Teto de Gastos seja alvo de discussão por especialistas, é inequívoco que o seu não-cumprimento – quando atingido dessa forma – não beneficia o ambiente econômico brasileiro. Estamos no início de uma tempestade perfeita de instabilidade macroeconômica: maiores taxas de juros, maiores cotações do dólar, maiores taxas de inflação e maiores taxas de desemprego.
O governo argumenta ter proposto a PEC dos precatórios para pagar o Auxílio Brasil, proposta de renda básica que visa substituir o Bolsa Família. Enquanto o Bolsa Família já se encontra extinto pelo governo por medida provisória, a proposta do novo Auxílio Brasil ainda não foi acatada pelo parlamento. Isso significa que o Brasil se encontra, hoje, desprovido de programas sociais.
A PEC dos precatórios é um dos maiores estelionatos eleitorais da história recente. Temos um Presidente e um Ministro da Economia que visavam granjear a simpatia dos mercados financeiros são, a partir de agora, os seus principais inimigos. Um governo que se comprometeu com a responsabilidade fiscal tornou-se caloteiro, legando tempos de má reputação ao Estado brasileiro. Uma proposta aprovada de forma atropelada, que deixa espaço para que emendas parlamentares sejam expandidas e que ressurja um mensalão, desmente um governo eleito sob promessa de acabar com a corrupção. Um governo que não queria que o Brasil se tornasse uma Venezuela, mas que, em prol de um projeto de poder tacanho, faz de tudo para torná-lo ainda pior.
Lucas Franceschi
Formado em Economia pela Universidade Federal do Paraná. Empreendedor social e coordenador da Setorial McCloskey do Livres.
[email protected]