Os contos morais de Coetzee

por Lúcio Carvalho (07/11/2021)

Sua literatura impõe o pensamento reflexivo onde se praticaria regularmente apenas o mais pragmático.

“Contos morais”, de J.M. Coetzee (Companhia das Letras, 2021, 152 páginas)

Leitores brasileiros que estavam privados há vários anos de edições brasileiras da obra de J. M. Coetzee desde a continuação da estranha história de David, em A vida escolar de Jesus (2018), ganham um alento de fim de ano com a publicação das sete narrativas curtas de Contos Morais.

Publicado por primeiro em espanhol, em Barcelona, o livro reúne contos escritos em tempos diversos e que têm em comum uma coleção de dramas éticos que Coetzee trata quase que fabularmente. É sua especialidade, aliás, abordar temas complexos de forma direta e franca. Mesmo quando ele retoma assuntos merecedores de uma conferência, como a bioética da vida animal, Coetzee veicula em literatura de alto quilate preocupações filosóficas e morais que, nestes tempos, podem até soar incompreensíveis, dado que o embotamento do tempo presente é própria condição da falta de reflexão acerca da vida contemporânea.

A sua literatura, todavia, abre uma gaveta nesse ordenamento e impõe o pensamento reflexivo onde se praticaria regularmente apenas o mais pragmático. Os parágrafos de Coetzee, afinal, nunca são em vão ou mera condução do tempo ou de personagens, mas intervalos no qual o narrador vai descortinando seus pensamentos para os leitores. Apesar disso, sua engenhosidade é tanta que, mesmo ao assumir um tom de parábola, ele mantém-se em busca do efeito de promover a crise da convicção prévia e o desmantelamento da descrença. E o melhor de tudo é que sem que se precise diferenciar na sua forma o que é narração, efeito, pensamento ou, então, a dicção de seus personagens. A clareza de Coetzee nestes sete contos é ainda mais evidente e até se vê melhor do que em seus romances, em alguns momentos, a sua presença a tocar os elementos escolhidos para aqueles instantes dos contos.

Seja ao tratar do estranhamento interposto entre mundo animal (natureza) e uma pessoa que não se crê uma sua antagonista, seja ao intervir em enredos que abordam as ancestrais mentira e vaidade, Coetzee coloca seus personagens em maus lençóis morais como um enxadrista que está menos preocupado em poupar peças do que arriscá-las ao destino. Talvez algo daquela espécie de fatalismo resignado do professor David Lurie, de Desonra, a procurar nas situações de crise formas de contornar a angústia da mera revolta. É daí que seus sete Contos morais investem na tentativa de restaurar ao ego pensante e propositivo a capacidade reflexiva permanentemente quitada pelo devir natural e temporal. É o ponto limite das alegorias que ele força em suas pouco usuais e esparsas narrativas curtas, agora reunidas em livro.

Como ensaísta que transpôs em livros o universo literário para o filosófico, muitas vezes é por meio de sua alter ego, Elizabeth Costello, que Coetzee se entrega a digressões mais demoradas a respeito do conflito permanente que se trava entre seres humanos e mundo natural. Tanto quanto em A vida dos animais (1999) como em Elizabeth Costello (2003), é ela quem assume a radicalidade de quem toma parte dos dilemas bioéticos que afligem ao escritor e, desde um momento periclitante de sua vida, discorre em seu lugar a respeito da escrita, do envelhecimento e das escolhas morais mais banais e cotidianas, dadas pelas relações humanas. No último dos contos do livro, O matadouro de vidro, quase se vê a personagem atalhando o espaço no qual apenas se costuma observar o mundo para outro em que nele se intervém (ou deveria, já que se trata de Contos morais).

Ainda que literariamente, e a abordagem semi-ensaística do conflito homem contra natureza é presente na literatura pelo menos desde o Melville de Moby Dick, Coetzee dá a ver uma natureza complacente, bem menos onipotente daquela que massacra Ahab, mas a quem ele acaba por se aliar por meio dos personagens que habilmente engendra. É quando ele parte do sentimento ético mais particular para uma discussão moral universal que trata do respeito à existência e dignidades de todos os seres. Elizabetth Costello é a personagem que continua a chamar à razão o que seria da razão e não do puramente instintivo no homem, e isso sem lançar um juízo sequer em sua direção.

Coetzee, autor que não costuma abstrair-se dos impasses políticos contemporâneos, oferece de si em suas personagens tão perfeitamente que mal se nota. Indisfarçavelmente e mesmo que por meio de suas anti-fábulas morais, é o mesmo e inconfundível Coetzee, com a lucidez e precisão de sempre. Já fazia falta.

Lúcio Carvalho

Editor da revista digital Inclusive. Lançou em 2015 os livros Inclusão em pauta e A aposta (contos).

Avatar
Colabore com um Pix para:
[email protected]