Sua literatura impõe o pensamento reflexivo onde se praticaria regularmente apenas o mais pragmático.
Leitores brasileiros que estavam privados há vários anos de edições brasileiras da obra de J. M. Coetzee desde a continuação da estranha história de David, em A vida escolar de Jesus (2018), ganham um alento de fim de ano com a publicação das sete narrativas curtas de Contos Morais.
Publicado por primeiro em espanhol, em Barcelona, o livro reúne contos escritos em tempos diversos e que têm em comum uma coleção de dramas éticos que Coetzee trata quase que fabularmente. É sua especialidade, aliás, abordar temas complexos de forma direta e franca. Mesmo quando ele retoma assuntos merecedores de uma conferência, como a bioética da vida animal, Coetzee veicula em literatura de alto quilate preocupações filosóficas e morais que, nestes tempos, podem até soar incompreensíveis, dado que o embotamento do tempo presente é própria condição da falta de reflexão acerca da vida contemporânea.
A sua literatura, todavia, abre uma gaveta nesse ordenamento e impõe o pensamento reflexivo onde se praticaria regularmente apenas o mais pragmático. Os parágrafos de Coetzee, afinal, nunca são em vão ou mera condução do tempo ou de personagens, mas intervalos no qual o narrador vai descortinando seus pensamentos para os leitores. Apesar disso, sua engenhosidade é tanta que, mesmo ao assumir um tom de parábola, ele mantém-se em busca do efeito de promover a crise da convicção prévia e o desmantelamento da descrença. E o melhor de tudo é que sem que se precise diferenciar na sua forma o que é narração, efeito, pensamento ou, então, a dicção de seus personagens. A clareza de Coetzee nestes sete contos é ainda mais evidente e até se vê melhor do que em seus romances, em alguns momentos, a sua presença a tocar os elementos escolhidos para aqueles instantes dos contos.
Seja ao tratar do estranhamento interposto entre mundo animal (natureza) e uma pessoa que não se crê uma sua antagonista, seja ao intervir em enredos que abordam as ancestrais mentira e vaidade, Coetzee coloca seus personagens em maus lençóis morais como um enxadrista que está menos preocupado em poupar peças do que arriscá-las ao destino. Talvez algo daquela espécie de fatalismo resignado do professor David Lurie, de Desonra, a procurar nas situações de crise formas de contornar a angústia da mera revolta. É daí que seus sete Contos morais investem na tentativa de restaurar ao ego pensante e propositivo a capacidade reflexiva permanentemente quitada pelo devir natural e temporal. É o ponto limite das alegorias que ele força em suas pouco usuais e esparsas narrativas curtas, agora reunidas em livro.
Como ensaísta que transpôs em livros o universo literário para o filosófico, muitas vezes é por meio de sua alter ego, Elizabeth Costello, que Coetzee se entrega a digressões mais demoradas a respeito do conflito permanente que se trava entre seres humanos e mundo natural. Tanto quanto em A vida dos animais (1999) como em Elizabeth Costello (2003), é ela quem assume a radicalidade de quem toma parte dos dilemas bioéticos que afligem ao escritor e, desde um momento periclitante de sua vida, discorre em seu lugar a respeito da escrita, do envelhecimento e das escolhas morais mais banais e cotidianas, dadas pelas relações humanas. No último dos contos do livro, O matadouro de vidro, quase se vê a personagem atalhando o espaço no qual apenas se costuma observar o mundo para outro em que nele se intervém (ou deveria, já que se trata de Contos morais).
Ainda que literariamente, e a abordagem semi-ensaística do conflito homem contra natureza é presente na literatura pelo menos desde o Melville de Moby Dick, Coetzee dá a ver uma natureza complacente, bem menos onipotente daquela que massacra Ahab, mas a quem ele acaba por se aliar por meio dos personagens que habilmente engendra. É quando ele parte do sentimento ético mais particular para uma discussão moral universal que trata do respeito à existência e dignidades de todos os seres. Elizabetth Costello é a personagem que continua a chamar à razão o que seria da razão e não do puramente instintivo no homem, e isso sem lançar um juízo sequer em sua direção.
Coetzee, autor que não costuma abstrair-se dos impasses políticos contemporâneos, oferece de si em suas personagens tão perfeitamente que mal se nota. Indisfarçavelmente e mesmo que por meio de suas anti-fábulas morais, é o mesmo e inconfundível Coetzee, com a lucidez e precisão de sempre. Já fazia falta.
Lúcio Carvalho
Editor da revista digital Inclusive. Lançou em 2015 os livros Inclusão em pauta e A aposta (contos).
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