por Daniel Lopes – Aqui está a tese de Luís Augusto Fischer: o Nelson Rodrigues não-ficcionista, ao contrário do que muita gente pensa, foi muito mais que um cronista – foi um verdadeiro ensaísta, honrando a tradição de craques do gênero iniciada por Montaigne. Este, segundo Fischer, tinha “perfeito descompromisso para com a hierarquia formal […]
por Daniel Lopes – Aqui está a tese de Luís Augusto Fischer: o Nelson Rodrigues não-ficcionista, ao contrário do que muita gente pensa, foi muito mais que um cronista – foi um verdadeiro ensaísta, honrando a tradição de craques do gênero iniciada por Montaigne. Este, segundo Fischer, tinha “perfeito descompromisso para com a hierarquia formal do pensamento de tipo acadêmico”, descompromisso “que submetia a tradição clássica a seu jugo, conforme sua vontade e sua régua”. Sim, Nelson sem dúvida comungava de tal procedimento.
Para o inglês Leigh Hunt, outro grande ensaísta, Montaigne “foi o primeiro homem a ter coragem de dizer, com a voz de autor – isto é, com a forma da arte literária –, o que sentiu como homem, como cidadão real, que não tem voz literária.” Sim, o mesmo podemos inferir da coloquialidade de Nelson.
Fischer vai explorando os aspectos técnicos e históricos do ensaio (e da crônica) durante todo o livro. Apenas o último dos 6 capítulos trata mais especificamente de Nelson Rodrigues, que no entanto está presente em todos os anteriores, se aproveitando das explorações do autor e tendo sua obra situada histórica, ideológica e estilisticamente, paralelo a outros escritores.
Não sei. Eu teria preferido que Inteligência com dor fosse um livro mais fluente, com menos toneladas de citações. Como um inimigo da cabala pós-moderna, sabemos que Fischer é partidário da clareza e da fluência, mas no livro faltaram mais passos nessa direção – ainda que o que tenhamos à disposição agora seja uma versão revisada da tese de doutorado do autor, defendida em 1998.
Mas as mensagens principais não se perdem pelo caminho. Os textos de Nelson para os jornais, quase sempre polêmicos, vão além das crônicas de autores seus contemporâneos. Não só pela escolha dos temas. Cronistas também escolhem temas espinhosos para trabalhar, mas na crônica
quase nunca vemos o depoimento de uma alma a assumir riscos, e pelo contrário: na crônica, a alma não está em ação, mas em atitude de observação, confortável, vendo passar diante de si assuntos que não mudarão nada, que não exigirão qualquer mudança na própria alma ou na do leitor.
A definição pode parecer meio poética, mas o que ela quer dizer, em suma, é que o cronista é passivo e o ensaísta, ativo. O cronista contempla situações, mesmo que de forte cunho social, e ainda que ele se indigne, propostas reais só ocorrem no ensaio, onde, mais que contemplação, há comparações e, através delas, caminhos mais abrangentes são trilhados.
No Brasil, a crônica derivou de uma das vertentes do ensaio inglês – por aqui, “ensaio” passou a designar o texto no campo dos estudos críticos. A crônica brasileira, explica Fischer, se estabilizou após Rubem Braga, um dos grandes do gênero, mas que não conta com muito da estima de Fischer. Por sinal, após lembrar o nome de Braga, Fischer passa para um conceito de crônica que pode ser mais útil, para efeitos de contraste com o ensaio, do que o trecho citado acima. Eis:
(…) a crônica vive de uma recusa radical do mundo presente, descrito como absurdo ou cruel, e de uma subsequente fuga em direção aos páramos da ingenuidade, que pode ser a infância, a natureza primitiva, a inconsciência, sempre mediante um andamento que faz o que pode para trazer o leitor para o campo das amenidades, não para o do debate adulto.
Você dirá: Mas esse é um juízo muito severo sobre a crônica, até mesmo injusto. Eu concordo. E é principalmente por isso que a defesa do “Nelson ensaísta” – que, para ter sucesso, depende da imposição desse conceito de crônica – ao final não vai convencer todo mundo. (O próprio Marcelo Coelho, autor da orelha do livro, tem lá suas dúvidas.)
Por outro lado, as características dos artigos (vou contornar o problema, não sem alguma barbeiragem) de Nelson Rodrigues arroladas por Fischer, que as compara com o histórico do ensaio, puxam a corda para o lado da tese proposta. Nota-se sempre em Nelson o tom confessional, o humor, a profundidade na exposição dos temas (mesmo em espaços exíguos) apesar da aparente despretensão inicial (na crônica, por contraste, no geral a despretensão vai de cabo a rabo), o diagnóstico sem rodeios do tempo presente. Ora, essas são algumas das características chave do ensaio, desde o século 16.
Vale a pena o leitor percorrer as trezentas e tantas páginas de Inteligência com dor para tomar conhecimento na íntegra da defesa de Fischer e, comparando com suas próprias ideias, decidir que partido tomar. Ou de repente ficar em cima do muro, como este resenhista.
::: Inteligência com dor: Nelson Rodrigues ensaísta ::: Luís Augusto Fischer :::
::: Arquipélago Editorial, 2009, 336 páginas ::: encontre pelo melhor preço :::
Daniel Lopes
Editor da Amálgama.
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