por Daniel Lopes – O Papa Bento XVI recebeu no sábado bispos do Rio Grande do Sul e de Santa Catarina. O encontro girou em torno do tema Educação. Referindo-se à “escola católica”, o Pontífice disse que ela “não pode ser pensada nem vive separada das outras instituições educativas”. Vá lá. Acontece que o lead da […]
por Daniel Lopes – O Papa Bento XVI recebeu no sábado bispos do Rio Grande do Sul e de Santa Catarina. O encontro girou em torno do tema Educação. Referindo-se à “escola católica”, o Pontífice disse que ela “não pode ser pensada nem vive separada das outras instituições educativas”. Vá lá.
Acontece que o lead da notícia no site Zenit, braço do Vaticano, dá contornos mais globais à escola que o Papa quer moldar: “Bento XVI esclareceu que a laicidade não significa renunciar ou desterrar todo elemento transcendente na educação, em particular nas escolas públicas.”
Só me restou então ficar preocupado com a notícia.
Diz o Papa (os destaques são meus):
1) “Uma sadia laicidade da escola não implica na negação da transcendência, nem uma mera neutralidade face àqueles requisitos e valores morais que se encontram na base de uma autêntica formação da pessoa, incluindo a educação religiosa.”
2) Ele baseou sua proposta [diz o Zenit] no artigo 26 da Declaração Universal dos Direitos Humanos, quando diz: “Os pais têm prioridade de direito na escolha do gênero de instrução que será ministrada a seus filhos.”
Houaiss. Página 2.749, “transcendente“:
2. que transcende a natureza física das coisas; metafísico; 5. que emana diretamente da razão; 7. FIL na metafísica, esp. a neoplatônica e a escolástica, diz-se do ser ou princípio divino que, em sua perfeição e poder absolutos, está situado além da realidade sensível
Se é o sentido 2 que se quer adotar, nada mais justo. A escola lida com literatura, artes plásticas, música, filosofia – tudo isso, ao menos em parte, “transcende a natureza física das coisas”. Se vamos usar o sentido 5, nenhum dogma, religioso ou de outro tipo, deveria ser ministrado na escola como algo louvável. Mas o sentido preferido do Papa é o 7, ninguém duvida.
Houaiss. “Laicidade”, página 1.714: “1. qualidade do que é laico ou leigo”. Mesma página, “laico“:
1. que ou aquele que não pertence ao clero nem a uma ordem religiosa; leigo; 2. que ou aquele que é hostil à influência, ao controle da Igreja e do clero sobre a vida intelectual e moral, sobre as instituições e os serviços públicos; 3. que é independente em face do clero e da Igreja, e, em sentido mais amplo, de toda confissão religiosa
Como o Papa defende a presença do transcendente no sentido que evoca o divino nas escolas, “em particular” nas públicas, não há qualquer sentido de “laico” em que ele possa inseri-lo. A laicidade implica a negação da transcendência religiosa.
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E se não negasse, ainda restaria uma dúvida: em que divina transcendência os pupilos deveriam ser instruídos? Naquela presente nos ensinamentos católicos? Nos calvinistas? Presbiterianos? Muçulmanos? Judaicos? Como a conversa do Papa foi com autoridades do maiorpaíscatólicodomundo, e como o proselitismo vem sempre antes do ecumenismo, não é muito difícil adivinhar a resposta pretendida pelo Vaticano. Seria interessante alguém perguntar ao Papa se um professor que ensinasse a transcendência de um Jesus filho de Deus mas também de uma Maria não-virgem seria bem-vindo na banca. É exatamente para não privilegiar qualquer “confissão religiosa” que a laicidade entra em cena e, para ser sadia, não abre espaço para qualquer transcendência religiosa.
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Sobra a questão dos filhos, dos pais e do direito dos pais doutrinarem seus filhos na denominação de que eles mesmos são parte. Ainda que essa ideia fosse justa – nunca apontaram pra você na rua uma criança marxista-leninista ou uma criança existencialista, por que aceitar que uma criança é católica ou muçulmana xiita meramente porque seus pais comungam dessa fé? -, fica a questão: Por que os pais não “instruem” religiosamente seus filhos apenas em casa ou em grupos de sua igreja? A “instrução” deve acontecer em casa, nas igrejas e na escola? Não, não deve. (Em tempo: a Declaração Universal não fala em instrução religiosa e muito menos que ela deva ser ministrada nas escolas, quanto mais públicas. Esse é só mais um exemplo do estilo Vaticano de interpretação de texto, que reprovaria o primeiro que tentasse empregá-lo no Enem.)
Eu acho que as escolas deveriam sim abrir espaço para o ensino religioso, muito mais do que o existente hoje em dia. Mas não de forma estúpida. Religião é algo que influencia a vida de todos. Sua história e presente deveriam ser do conhecimento de todos os estudantes, trabalhados com as disciplinas de história e filosofia. Os alunos deveriam ser expostos aos politeísmos, aos monoteísmos, ao agnosticismo e ao ateísmo. Deveriam sim estudar bastante ética e moral, mas aprendendo ao mesmo tempo que elas nunca foram privilégio de pessoas religiosas, que é possível ser ateu e moral – a última coisa que as crianças escutariam nas aulas de “Ensino Religioso”. Lembro de uma ilustração no meu livro de “Religião”: um menino escondido no fundo do mar, querendo se enfiar debaixo de uma pedra, para fugir dos olhos de Deus, aparentemente porque teria cometido um pecado. A ideia era mostrar que, não importa onde você se esconda, Deus vai te achar (e te punir). Que grande perda de tempo…
[ este post foi publicado inicialmente no Index, meu novo blog,
que abordará fatos e obras relacionadas a ateísmo, ceticismo, ciência e religião. conheça ]
[ imagem na abertura do post: crucifixo em escola italiana (crédito: Reuters) ]
Daniel Lopes
Editor da Amálgama.
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