DANIEL LOPES - Ratzinger está apto a comparecer à Corte Penal Internacional
por Daniel Lopes – Daqui a alguns anos, quando o alemão Joseph Ratzinger for promovido de defunto a santo, faremos bem em tirar da estante este livro de Geoffrey Robertson, só para nos mantermos atualizados sobre a qualidade da Igreja Católica. A obra não é uma simples exposição das provas de que Ratzinger se inteirou por anos dos atos de pedofilia na Igreja Católica, e por anos agiu para livrar criminosos da justiça. O autor, um advogado de direitos humanos com larga experiência, cuida de enquadrar a cúpula do Vaticano, particularmente seu cabeça, nas leis internacionais que versam sobre crimes contra a humanidade.
É uma tarefa séria, essa de Robertson, e tem que ser executada com cuidado, para não deixar brechas para a defesa do Papa. Embora o autor admita que as chances deste ir parar atrás da grades não sejam maiores que as de um Henry Kissinger, ainda assim o esforço para enquadrá-lo e perseguir a justiça é útil, porque “a ideia de que esse ou qualquer futuro Papa possa acabar no banco dos réus devido a sua responsabilidade no comando de graves quebras das convenções internacionais que protegem a criança, é uma ideia que serve como uma afirmação do Estado de Direito, do qual ninguém está acima”.
Estabelecido o papel do Papa em uma rede global de proteção a pedófilos, o principal obstáculo a seu encarceramento seria sua condição de chefe de Estado. Mas a comunidade internacional não tem por que encarar o Vaticano como um Estado. O que é o Vaticano? Um palácio e seus jardins, dentro de Roma.
Mas dimensões irrisórias é o quesito menos constrangedor na busca da igreja universal, esposa de Cristo na Terra, em se afirmar como proprietária de um Estado. O Vaticano falha nos quatro pré-requisitos para a constituição de um Estado, estabelecidos em 1933 pela Convenção de Montevidéo Sobre os Direitos e Deveres do Estado:
1)População permanente (o hino do Vaticano chama-se “O Bispo de Roma”);
2)Território definido (“há no mundo”, escreve Robertson, “alguns inusitados ‘microestados’ que possuem soberania internacional – Nauru e Tuvalu. Mas estes são territórios que compartilham de uma nacionalidade, para a qual proveem serviços públicos. O Palácio do Vaticano não tem nacionais, e seus serviços básicos, como eletricidade, gás, água e saneamento são providos pela Itália e pelos italianos);
3)Governo (a Comissão Pontifícia, nominal governo da Cidade do Vaticano, não tem sequer autonomia para travar relações internacionais; estas são realizadas pela Cúria, que fica em Roma e se ocupa das funções de uma igreja);
4)Capacidade de empreender relações com outros Estados (até devido ao não-papel da Comissão Pontifícia e ao papel da Cúria, diversos corpos diplomáticos não tratam a Santa Sé como um Estado normal, mas como o quartel general das operações da Igreja Católica, sediada na Itália. O Vaticano não faz parte da União Europeia. E se ele não é considerado um Estado na Europa, pergunta Robertoson, por que o deveria ser no resto do mundo?).
Deveria, você responde, porque a ONU assim o considera. É verdade que o Vaticano é um “Estado não-membro” das Nações Unidas. Mas lá também (lá antes de qualquer outro lugar) ele não defende os interesses de seu povo (qual é o “povo vaticano”?), mas os dogmas e a agenda de interesses de uma igreja. Isso é ilegal. Trata-se de um privilégio que nenhuma outra igreja tem. E se a Líbia resolver transformar alguns quarteirões de Trípoli no Estado de um dos ramos radicais do islamismo, a ONU terá que aceitar esse fato? Terá que abrir suas agências de educação e de direitos da mulher para a influência desse pseudo-Estado?
Você dirá que esse hipotético caso é forçado. Que seria ilegal Muammar al-Gaddafi criar de sua inteira vontade um Estado, por isso a comunidade internacional não aceitaria, enquanto que a realidade do Vaticano é totalmente diferente. Mas não é não. É similar. A fundação do Vaticano não foi acordada com a comunidade internacional. Não serviu aos interesses da cultura e do “povo vaticano” (que não existia e não existe). Foi um mero acordo de conveniência entre Mussolini e a Igreja Católica. Pode-se até dizer que o Tratado de Latrão não foi sequer um ato bilateral; como a Igreja e o fascismo eram parte de uma mesma onda, o mais acertado é dizer que a criação do Vaticano foi uma medida unilateral, pura e simplesmente. É como se Gaddafi combinasse com alguma facção islâmica a posse por parte desta de uma área desprezível dentro da capital da Líbia, a ser servida por este país, mas com os privilégios de um Estado independente.
O interessante é que Geoffrey Robertson mostra que, pela letra do Tratado de Latrão, a Igreja fica impedida de se engajar em “disputas temporais entre Estados e em congressos internacionais estabelecidos para tais fins” (Artigo 24). A não interferência em assuntos internos de outros Estados é um quesito fundamental para a convivência entre Estados normais. Estaria aí uma boa oportunidade do Vaticano se mostrar verdadeiramente maduro para o papel de Estado. O que não ocorre. Ainda este ano, Ratzinger pediu para os católicos britânicos agirem com “zelo missionário” contra o Equality Act, por então tramitando no congresso britânico, e que tornaria ilegal a discriminação de igrejas na hora de preencher cargos não-religiosos. Ratzinger tem direito a interferir nos processos democráticos do Reino Unido? Como líder de uma igreja, sim. Como líder de um Estado, não. E as máscaras não podem ser mudadas convenientemente: se for apenas um líder religioso tentando interferir nas decisões dos parlamentares de um país democrático, que seja apenas como um líder religioso quando viajar pelo mundo, passível a processos como qualquer líder religioso (e qualquer cidadão comum) está sujeito. Se, por outro lado, esse que viaja mundo afora é um chefe de Estado fora do alcance da justiça comum, então que suas ações de interferência em outros Estados sejam tidas como sabotagens de uma teocracia a nações democráticas.
É claro que a interferência papal para solapar o Equality Act não é nada diante da gigantesca rede de subversão de justiças nacionais, que retira das garras destas criminosos (pedófilos) e os colocam para “julgamento” diante do Direito Canônico – a lei católica, vista pelo Vaticano como mais adequada que as legislações nacionais para lidar com os funcionários da Igreja. O Direito Canônico põe a violação de menores ao lado de outras infrações clericais, como concubinato, masturbação e apostasia. Apenas de posse dessa informação já é possível prever toda a impunidade que ele está fadado a gerar. Mesmo que, digamos, um padre pedófilo no Brasil seja um indivíduo de cidadania brasileira (e não “vaticana”) quebrando leis brasileiras ao violentar cidadãos brasileiros, se as estruturas locais da Igreja (os bispos) tomarem conhecimento de sua transgressão antes das autoridades civis, elas estão obrigadas pelo Direito Canônico a manterem voto de silêncio e, ao invés de entregar o “irmão”, o “filho” à justiça, meramente encaminharem a denúncia para as autoridades do Vaticano, que a engavetarão ou transferirão o transgressor para outra diocese (onde ele pode voltar a cometer crimes) ou o colocarão de molho, ou, em caso de reincidência, o poderão finalmente pôr em julgamento sob o Direito Canônico. Neste julgamento, o transgressor pode ser inocentado (“perdoado”) ou, no máximo, ser expulso da Igreja, mas jamais entregue às autoridades civis do paíse onde a lei foi quebrada.
Passar por cima das leis nacionais por meio de uma estrutura paralela de justiça é o que fazem as máfias. Portanto, se se considerar o Vaticano como um Estado, o Papa não pode mesmo ser processado a partir de ações civis, mas o pode pela Corte Penal Internacional. O Vaticano não é signatário da CPI, mas Ratzinger é alemão, e a Alemanha é signatária – a Corte julga indivíduos e não Estados, incumbência do Tribunal Internacional de Justiça. Ao ter seu caso levado a julgamento e ao ser condenado, o alemão poderia não ser preso – se permanecesse no Vaticano; se saísse para se tratar em Roma, poderia ser detido. O mesmo valeria para seus auxiliares diretos com cidadania de países signatários.
E por que Joseph Ratzinger seria enquadrado pela CPI? Por “crimes contra a humanidade”, Robertson explica. O Artigo 7 do Estatuto daquela Corte inclui nessa categoria os crimes de “estupro”, “escravidão sexual” e “qualquer outra forma de violência sexual de comparável gravidade”, bem como “outros atos desumanos de caráter similar que cause intencionalmente grande sofrimento ou sério dano ao corpo ou à saúde mental ou física”. Abusos sexuais por parte do clero se encaixam aí, especialmente aqueles cometidos em orfanatos para crianças surdas, cegas ou com alguma outra deficiência.
Tais crimes sexuais, ainda segundo a CPI, são “uma ofensa particularmente odiosa na medida em que constituem um sério ataque à dignidade humana ou a grave humilhação ou degradação de um ou mais seres humanos. Eles não são eventos isolados, mas parte de uma ampla prática de atrocidades toleradas ou perdoadas por um governo ou autoridade de facto”. Que os atos de pedofilia na Igreja Católica não são eventos isolados já é um fato estabelecido desde que os porcentuais de padres envolvidos nos EUA foi colocado bem acima do “menos de 1%” defendido pelo cardeal Ratzinger em 2002 – a conferência de bispos católicos dos EUA solicitou neste mesmo ano a um grupo de respeitados criminologistas um relatório sobre as alegações plausíveis contra padres desde 1950 naquele país, e o grupo chegou a um porcentual de 4,3%; a Igreja dos EUA hoje encara esse número como uma subestimação, e aceita 5,3% como mais realista, enquanto fontes de fora da Igreja o colocam entre 6 e 9%. Na Irlanda, a Murphy Commission classificou os crimes em escolas de garotos católicos como “endêmicos”. (Em agosto, em meio a essa revelação, e como um gesto simbólico de desprezo pela justiça mundana, Ratzinger não aceitou os pedidos de demissão de dois bispos irlandeses.) Estima-se que em países subdesenvolvidos, como os latino-americanos, africanos e asiáticos, a pedofilia na Igreja seja ainda mais séria – pela falta de poder judiciário e imprensa fortes, e por serem palco das “segundas chances” de vários pedófilos evadidos às pressas de países desenvolvidos.
Os defensores do Papa podem alegar que, mesmo que tudo isso seja verdade e que matemática não seja o forte do teólogo Ratzinger, ele não teve responsabilidade direta pelas violações de menores, e jamais teve a intenção de que elas ocorressem como uma política da Igreja. Mas o Artigo 28(b)(iii) do Estatuto da CPI informa que “um superior deverá ser criminalmente responsabilizado (…) se falhou em tomar todas as medidas necessárias e razoáveis no âmbito de seu poder para prevenir ou reprimir sua [do crime] execução ou para submeter a matéria às autoridades competentes para investigação e instauração de processo.” Aqui as coisas ficam mais complicadas para o santo padre, que não apenas faz apologia de um Código Canônico que por sua própria natureza não permite que criminosos não sejam entregues à justiça, como ele próprio, como chefe da Congregação para a Doutrina da Fé e como Papa, esteve em posição privilegiada durante o processo de acobertamento de violadores e obstrução da justiça.
Essas são as vias para fazer Joseph Ratzinger encontrar a justiça. Ou ele é um mero líder religioso que pode ser processado por leis civis, ou é um chefe de Estado (dos mais desrespeitosos com o princípio de não intervenção) passível de ser julgado por crimes contra a humanidade na Corte Penal Internacional. Provavelmente não percorrerá nenhum dos caminhos, porque o arrivismo político e a capacidade de bajulação não é menor em países de maioria católica, e, pelo menos por enquanto, ainda há mais eleitores católicos que crianças molestadas por padres. Mas quando Ratzinger enfim virar santo, será bom lembrarmos todos que no fundo ele não foi mais do que um criminoso de alto calibre que escapou ileso. Uma espécie de Kissinger de batina.
::: The case of the Pope: Vatican accountability for human rights abuse :::
::: Geoffrey Robertson ::: Penguin, 2010, 240 páginas :::
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Daniel Lopes
Editor da Amálgama.
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