WikiLeaks no vazio moral
Christian Caryl, na New York Review of Books / 7 de dezembro
O WikiLeaks muda tudo. Podemos agir como se os antigos padrões do jornalismo ainda se aplicassem à internet, mas o WikiLeaks mostra como isso é wishful thinking. No dia 28 de novembro – como qualquer pessoa capaz de ler isto já deve saber – a organização começou a postar amostras de um arquivo de 251.287 correspondências diplomáticas estadunidenses até então secretas. Os poucos milhares de jornalistas deste país que cobrem regularmente as ações do Departamento de Estado precisariam de um par de séculos para conseguirem esse volume de informações através de métodos tradicionais; a ligação entre várias redes de computadores governamentais (uma bem intencionada resposta à compartimentalização de dados pré-11 de Setembro) aparentemente permitiu a um descontente empregado do exército coletá-lo em um instante. Como o próprio WikiLeaks se vangloria, esse é o “maior conjunto de documentos confidenciais de todos os tempos a ser divulgado para o público”.
A escala é sem precedentes. E também o propósito – ou, mais precisamente, a falta dele. Raffi Khatchadourian, no site da New Yorker, especula que o objetivo do fundador do WikiLeaks, Julian Assange, “não é revelar um único ato de abuso …, mas expor o funcionamento interno de um sistema fechado e complexo, convocar o mundo para ajudar no julgamento de sua moralidade.” Essa pode de fato ser a visão de Assange, mas ele não parece capaz de articulá-la. O site do WikiLeaks sustenta que quer expor “as contradições entre a persona pública dos EUA e o que ela diz por baixo dos panos” (como se uma denúncia de hipocrisia fosse razão adequada para expor segredos oficiais) e nos informa que “toda criança estadunidense é ensinada que George Washington – o primeiro presidente do país – era incapaz de dizer uma mentira.” Satisfeitos?
Entre as correspondências divulgadas até agora estão revelações que fizeram manchetes por todo o mundo, mas há também informes sobre os resultados das eleições na Baviera e sobre as leis marítimas argentinas. Se o objetivo é atingir os projetos imperiais estadunidenses – como Assange sugeriu em alguns de seus escritos –, eu não sei como essas correspondências em particular o ajudam. Assange também já disse que deseja “tornar o mundo mais público” ao fazer com que organizações fechadas como o Departamento de Estado e o Departamento de Defesa sejam responsabilizadas por suas ações, ou mais precisamente, como ele disse à revista Time, forçá-las a “se encerrarem e se balcanizarem”, protegendo a si mesmas e tornando-se mais opacas e portanto mais “fechadas, conspiratórias e ineficientes.” Isso é, para dizer o mínimo, um programa patentemente contraditório; também não sei se precisamos dar-lhe algum sentido. Em termos práticos, ele parece resumir-se a uma política de revelações por revelações. Isso é o que a tecnologia permite, e Assange meramente seguiu no embalo. Não vejo nisso qualquer moralidade, ou sequer imoralidade; o que vejo é um vazio moral, tecnocrático.
Como Alan Cowell disse no New York Times, as carreiras de alguns oficiais – e não necessariamente de altos níveis – já foram destruídas por essas revelações. Em pelo menos um caso o nome da pessoa foi editado, mas sua identidade pode ser claramente identificada a partir do contexto. É legítimo perguntar: ocorrerão mortes? Não sabemos, e podemos não tomar conhecimento se ocorrerem. Mas é certo que resultarão danos em vários graus. (Assange parece notavelmente incapaz de discutir esses perigos reais; na entrevista à Time, ele alega que “esse tipo de nonsense sobre vidas postas em risco” é simplesmente uma desculpa.) Poderia o WikiLeaks pelo menos nos dizer se isso era necessário?
Nos velhos tempos, jornalistas teriam feito o que os parceiros do WikiLeaks na mídia impressa, como The Guardian e Der Spiegel, estão tentando fazer agora: julgar quais documentos revelar e se editar ou não os nomes mencionados neles, baseados no interesse público maior e no risco de infligir danos colaterais. Mas não se pode escapar do sentimento de que todo o exercício torna-se tragicomicamente irrelevante diante da montanha de material bruto constantemente surgindo. Khatchadourian argumenta que o WikiLeaks está evoluindo para algo mais parecido a uma organização jornalística tradicional, uma que fará julgamentos de valor acerca do que está fazendo ao invés de simplesmente amontoar documentos aleatoriamente no ciberespaço. Mas a própria escala do que o grupo faz sugere que esse é um projeto inútil. Assange diz que a organização tem divulgado as correspondências a uma taxa de cerca de 80 por dia. (Pelos meus cálculos, isso quer dizer que teremos pelo menos mais 3.162 dias de relevações a partir de hoje.)
A comparação que algumas pessoas têm feito entre os amontoados de documentos do WikiLeaks e o caso Pentagon Papers nos anos 1970 é esclarecedor precisamente porque mostra o quão pouco os dois eventos têm em comum. Conforme observado por Max Frankel, ex-editor do New York Times que foi um dos que supervisionaram a publicação dos Papers, o responsável pelo vazamento naquele caso, Daniel Ellsberg, “não estava quebrando sigilos apenas por quebrar, ao contrário do WikiLeaks hoje; ele buscava derrotar uma específica política governamental. Além disso, ele tinha inteira consciência dos riscos da revelação e não distribuiu documentos que traiam esforços diplomáticos em curso para a negociação de um fim do conflito. E ele levou anos para encontrar um meio de distribuição de confiança, que agora está disponível ao apertar de um botão.” Sim, eu sei que Daniel Ellsberg deu seu apoio a Julian Assange. É um direito seu. Mas acredito que ele possa estar negligenciando uns poucos pontos de vital importância.
Um dos mais óbvios é que o WikiLeaks está postando esses documentos brutos na web, o mais permissivo meio de informação já inventado. Como resultado, experimentamos agora mais um pulo do penosamente análogo para o explosivamente digital. Da mesma forma que o conceito de “privacidade” fica obscurecido quando um adolescente de dezesseis anos pode apresentar seus pensamentos mais íntimos a uma audiência de bilhões, a distribuição na internet de segredos oficiais muda as regras do jogo. Quando todos os documentos estiverem online, eles estarão sujeitos não apenas às frequentemente rudes análises de jornalistas e historiadores, mas também aos muito mais eficientes programas de busca de dados e softwares de análises de padrão de governos estrangeiros e companhias privadas (cuja extensão, no caso do tratamento da China ao Google, as próprias correspondências deixam claro). As implicações para a conduta de políticas governamentais (pra não falar de indivíduos) são monumentais. Eu gostaria muito de prever quais poderiam ser, mas não posso. Não sei se alguém pode. A internet trouxe incontáveis benefícios para a humanidade, mas, como agora vemos, ela também cria um incalculável potencial para causar danos: ela amplifica as ameaças de trotes escolares, fortalece terroristas e facções e abre novos espaços para criminosos versados em tecnologia. Agora que dados podem ser compartilhados, lincados e explorados com facilidade quase instantânea, crescem rapidamente os riscos contidos na publicação de informações; simplesmente não há como qualquer editor, por mais bem intencionado que seja, fazer um julgamento informado acerca das potenciais repercussões contidas no vazamento de vastas quantidades de dados oficiais como esses. Mas é aqui que estamos, e me pergunto se pregar prudência pode ter muito resultado. A tecnologia deixou a ética para trás, e me pergunto se a ética algum dia poderá alcançá-la novamente.
Advogados da liberdade total de informação podem objetar que estou negligenciando o fato de que a batalha entre jornalistas e governos permanece desigual. Eles podem observar que as burocracias governamentais, com seus enormes recursos e culturas fechadas, ainda possuem muito mais poder para controlar a informação do que qualquer Julian Assange; a guerrilha dos vazadores da internet está apenas tornando a coisa menos desigual. Tenho alguma simpatia por esse argumento. A revelação do WikiLeaks de que o Departamento de Estado ordenou a seus empregados que coletassem dados biométricos de diplomatas estrangeiros servindo nas Nações Unidas, ainda que deprimente, revela o que já sabíamos: que o estado de segurança nacional moderno tem à sua disposição tecnologias de informação e recursos que o permitem mapear nossas vidas com precisão e poder que serão muito difíceis de se restringir apenas via Estado de Direito. (De fato, posso ser particularmente sensível a esse fato, já que sou um dos poucos cidadãos estadunidenses que tem seus dados biométricos registrados pelo governo dos EUA; essa foi uma precondição para receber um passe de imprensa durante minha última visita ao Iraque. Posso me permitir ser cético, acho, sobre se o Departamento de Defesa apagou essas informações quando minha credencial venceu.)
Então, sim, jornalistas certamente devem lutar para prevenir os abusos da cultura de sigilo. E, claro, os Estados Unidos ainda oferecem bastante espaço para isso, ao permitir a possibilidade de competição política e responsabilidade pública – incluindo a abertura de documentos secretos via Freedom of Information Act. Mas os jornalistas (ou seja lá como decidamos chamá-los) que praticam essa justificada supervisão podem apenas fazê-lo se exercerem eles mesmos a transparência – em relação a seus motivos, métodos e intenções. (Uma das tristes ironias desse último capítulo da saga WikiLeaks é a revelação de que Assange resolveu punir o New York Times negando-lhe acesso direto às correspondências, porque o jornal havia antes publicado uma reportagem examinando seu estilo de conduta e as controvérsias cercando sua pessoa; presumivelmente Assange denunciaria isso como censura, se um de seus alvos adotassem tal comportamento. O Guardian acabou compartilhando suas próprias cópias com o Times, assim, de fato, vazando o vazamento.)
Quais são, precisamente, os critérios pelos quais o WikiLeaks está decidindo revelar as correspondências que escolhe publicar? Como o WikiLeaks e seus parceiros na mídia impressa as estão editando? De acordo com o processo de avaliação descrito pelo Guardian e pelo New York Times, eles estão apagando os nomes de algumas pessoas mencionadas – mas não os de outras. Por que, precisamente? Se o objetivo é mesmo “expor o funcionamento interno de um sistema fechado e complexo”, então eles não deveriam estar publicando tudo? E agora sabemos que Assange está enviando um grande arquivo com outros documentos confidenciais para vários colegas no mundo todo, como uma “garantia”, a ser publicado na eventualidade de governos hostis conseguirem silenciá-lo. (Enquanto isso, em outra guinada, Assange foi preso esta manhã em Londres sob acusações de estupro e pode ser extraditado para a Suécia.) Os alvos desse megavazamento parecem incluir o Bank of America e a BP. As revelações nesses arquivos incluirão dados comerciais dos clientes dessas empresas? Talvez os números de suas contas e informações de cartão de crédito? Claro que o vazamento de tais informações pessoais poderiam causar enormes danos, mas se é abertura total que queremos, por que não? (Desculpa o sarcasmo, mas não dá pra não perguntar.) E por que essa informação não foi publicada antes?
O que realmente está em jogo aqui é se a tecnologia, com todo seu poder e instantaneidade intrínsecos, deixará espaço para a introspecção necessária em um empreendimento como esse. Até agora, no entanto, não vi nenhuma resposta convincente. E essa é uma questão muito maior do que o destino do WikiLeaks ou de Julian Assange.
* tradução de Daniel Lopes. original, aqui
foto: Dan Kitwood/Getty Images
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