Para a Veja, Hitchens foi "o Reinaldo Azevedo deles". Saiba por que isso não tem cabimento
Eu estava aqui arrumando as malas e os últimos posts do Amálgama – porque entraremos de férias nos próximos dias (voltamos na segunda metade de janeiro) – quando o Lelec, nosso flamenguista em Paris e generoso agente da rota de tráfico de livros França-Piauí, me chamou a atenção para uma notícia de merda no site da Veja. É notável a dedicação com que o Lelec acompanha as atualizações da Veja. Mas tudo bem, ele está em uma cidade de belos horizontes, onde sempre é fácil limpar a vista. A notícia, arquivada na categoria Celebridades, é essa: “Christopher Hitchens: o Reinaldo Azevedo deles”. OK, as malas e os posts podem esperar mais alguns minutos.
Primeiro, se esse é o tipo de notícia que levará alguns leitores da Veja a enfim lerem o Hitchens, louvada seja; antes de virar a segunda página de qualquer dos livros do Hitch, os vejanos terão chegado à conclusão sobre a qualidade do jornalismo da revista a que nós outros já chegamos há algum tempo.
Segundo, sem dúvida há esquerdistas que concordam com a Veja. É aquele tipo de gente para quem todos que enxergam as forças armadas estadunidenses como um mal menor que os diversos extremismos dos séculos 20 e 21 são igualmente desprezíveis, seja o argumentador um Reinaldo ou um Christopher. Mas isso prova apenas que esses esquerdistas são cabeças-duras, e não que a pequena notícia da Veja esteja aquém da paródia.
O autor fantasma dessa segunda morte de Hitchens não apenas coloca o dito cujo junto ao Reinaldo, como coloca o Reinaldo junto a Mark Twain. Quer dizer, “como o Reinaldo aqui do site, Hitchens era prolífico, polêmico, temível no combate”, mas “também é possível descrever Hitchens como um herdeiro de Mark Twain”. Porque, claro, se eu quero um escritor para substituir o Reinaldo numa analogia, Mark Twain é o nome que naturalmente me vem à cabeça. Twain, o Carlos Lacerda deles.
Hitchens nunca virou um conservador, embora tivesse há alguns anos já se desprendido do rótulo de “esquerdista”. Mas isso apenas para ter mais liberdade de ação e forçar os oponentes a encararem os pontos de cada questão e os méritos de cada argumento, independente de esquemas totalizantes e de posicionamentos políticos a atacado – porque, se você está na ponta da luta contra o racismo, como é capaz de apoiar uma guerra contra Saddam? Como eu escrevi na resenha de Hitch-22, o autor naturalizado estadunidense tinha isso em comum com Orwell: “nenhum dos dois jamais se conformou que fossem aqueles ‘progressistas’ mais ortodoxos e intolerantes os que deveriam ditar o que é realmente ser ou não ser de esquerda, ao mesmo tempo que ambos tentaram encarar cada situação de crise internacional com base nos próprios conhecimentos e julgamentos, se lixando para a prática comum de encaixar uma opinião nos moldes do que é comumente tido como progressista.”
Mas mesmo desconsiderando os campos políticos não exatamente coincidentes de Hitchens e Reinaldo, a comparação não fica de pé. Quando, anos atrás, eu resolvi me livrar de quase todas minhas revistas, para abrir precioso espaço na estante, guardei de lembrança três exemplares da Primeira Leitura. Embora não um fã de carteirinha, fui uma espécie de entusiasta do projeto encabeçado pelo Reinaldo Azevedo – embora ele estivesse longe de ser meu autor preferido, que era o Hugo Estenssoro. Eu acreditava que, quando a PL se tornasse semanal, enfim o Brasil teria uma semanal de direita de razoável qualidade, sem capa sobre o eletrizante enredo da Novela das 8 e sem resenhas de quatro parágrafos, uma genuína colaboração para elevar o nível do debate. Mas infelizmente a revista faliu e o Reinaldo acabou na Veja, no processo perdendo em qualidade. A própria ideia de pensar em comparar o produto final da prolificidade de Hitchens (a qualidade do texto, o nível da polêmica) com o produto final da prolificidade do Reinaldo é como cuspir no cadáver insepulto do primeiro. O produto final do Reinaldo nem parece final, parece que ele é um especialista na arte de publicar esboços.
Quanto aos combates, o Youtube está repleto de vídeos de Hitchens em companhia de personalidades de ponta nos debates sobre as intervenções militares estadunidenses, o islamismo e a religião de uma forma geral. Já o Reinaldo, que eu saiba, só conversa com quem pensa como ele, limitando-se a debater com os comentaristas cuidadosamente moderados de seu blog. Eu não tenho nada contra moderação.
Uma das resenhas de Arguably, coletânea de Hitchens saída este ano, é sobre o livro A history of the English-speaking peoples since 1900, do historiador conservador britânico Andrew Roberts. Contra Roberts, Hitchens argumenta que muito das ações que levaram a uma maior proximidade entre os povos de língua inglesa foi obra de gente da esquerda, e não apenas de visionários imperialistas, e que o antiamericanismo entre eleitores britânicos é hoje bastante explorado por políticos conservadores. Arguably contém essa e muitas outras defesas da tradição esquerdista, contrapontos a tentativas conservadoras de reescrever a história. A resenha citada é de 2007, quando a violência niilista no Iraque estava no pico, Hitchens continuava defendendo ferrenhamente a intervenção e seus opositores à esquerda já o tinham colocado firmemente no campo neoconservador. Então, isso também a gente pode dizer de Hitchens: era um sujeito com discernimento, detachment. Quem, em sã consciência, pode dizer o mesmo de Reinaldo?
Portanto, você, amigo direitista que nunca leu um livro de Christopher Hitchens na vida e se animou com o título da notícia da Veja, por favor siga seus instintos e vá à livraria mais próxima. E você, amigo esquerdista que nunca leu um livro de Hitchens e pensa em usar a notícia da Veja como a última desculpa para nunca ler, não siga seus instintos e compre alguns tomos do Hitchens; você se reconhecerá em diversas momentos, mas não vou soltar spoilers.
Daniel Lopes
Editor da Amálgama.
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