"O Passeador", romance de Luciana Hidalgo, não evoca o grande autor carioca com sucesso
Transformar uma personalidade histórica no protagonista de uma obra de ficção deve ser uma das atividades que mais exigem do escritor. Quando essa personalidade é um escritor, então, o cuidado e dedicação de seu par devem ser ainda maiores. Presumindo-se, claro, que ele não queira cair na total irrelevância. Primeiro é preciso ter em mente, o tempo todo, de que não se está escrevendo uma biografia. Segundo, mais do que o personagem tirado da cartola, o personagem figura histórica deve ser tratado com zelo, porque nós que tivemos interesse de ir atrás do livro já sabemos mais que o básico de sua história e, se decidimos encarar a obra em que ele é evocado, é pelo prazer de vê-lo interpretado pelos olhos de um colega escritor, quase sempre um admirador, que pode até se deter em eventos-chave da vida da figura, mas apenas para deixar claro o que enxerga em sua personalidade e multiplicar no leitor aquela empatia por quem no final das contas não passa de um ser humano, colega de espécie, com grandezas e baixezas.
É preciso, em outras palavras, que o texto contenha sutileza. Bastante sutileza. Se pudermos usar uma analogia cinematográfica, é preciso que o livro tenha bastante daquela câmera de certos documentários que apenas acompanha o personagem principal de lado, ora por trás, às vezes a partir de uma considerável distância, o deixando à vontade para topar e interagir com outros personagens. A câmera de vez em quando foca nas mãos, nos olhos ou na boca do personagem, e o que vai captar traduzirá muito das emoções e da personalidade do retratado. Não há necessidade de se usar aquela câmera do Caldeirão do Huck, com a qual o personagem chorão, entrando na casa reformada, constantemente colide. Voltando do vídeo para os livros, a câmera do Huck só ocorre nas piores biografias; quando ela teima em aparecer num romance com figura histórica, então, você já pode começar a pensar em se livrar do livro.
À primeira vista, Luciana Hidalgo era a pessoa ideal para evocar Lima Barreto em uma obra de ficção. Crítica (com passagem pela redação d’O Globo, entre outras) e acadêmica (Sorbonne) consagrada, Luciana já estudara Lima em Literatura da urgência (2008). Mas seu O passeador, que traz o nosso (meu e dela) querido Lima para o primeiro plano, é apenas a prova mais recente de que nem sempre bons críticos e acadêmicos dão bons ficcionistas. Longe de ser sutil, os personagens de Luciana discursam mais do que o aceitável, e o livro é didático demais.
A estória transcorre em 1904. Como sabe-se, este foi um ano marcante para Lima, quando foi obrigado a abandonar a Escola Politécnica para cuidar do sustento dos irmãos, em risco após a internação do pai em um sanatório. Mas não pense que há muito disso em O passeador. O interesse de Luciana pelo ano é que ele está bem no meio da gestão de Pereira Passos na prefeitura do Rio, com as reformas urbanas em vapor total. Em alguns momentos, o texto com o impacto das reformas nas opiniões de Lima é de composição bastante feliz. Como aqui:
(…) Derrubam-se portas e portões, desfazem-se torreões. Há um prazer coletivo quase lascivo nos espectadores, nesse culto à ruína, que escapa a Afonso. Se fosse preciso pagar ingresso para assistir ao triste funeral de todo um legado colonial, eles ainda pagariam! Alguns vão aos canteiros de obras como ao circo, pensa ele, entre pasmo e irritado. (p.56)
Aqui, por outro lado, a autora discursa pela boca do personagem Tiago:
(…) Claro que uma das intenções é também tirar os miseráveis do raio de visão burguês. Tem todo um lado positivo nisso, é óbvio, eu também quero viver numa cidade saudável, mas essa higiene, do jeito que está sendo feita, é social, isso sim! (p. 25)
Se estivéssemos lendo isso numa crônica do início do século, ótimo. Num romance do ano 2011, soa meio tolo. Ainda assim, seria um trecho totalmente digerível, se fosse o único do tipo, ou um dos poucos. O que não é o caso. Passagens desse quilate saltam com mais frequência diante de nossos olhos do que aquelas como a do impacto das construções em Lima.
Há discursos sobre as reformas de “higiene social”, há discursos sobre o imperialismo cultural francês que acomete as classes mais abastadas do Rio… e há discursos de denúncia do racismo, claro. Considere essa passagem impressionante. Lima está andando pelas ruas certa noite quando topa com um certo C., branco, de quem vagamente se lembra. Após um contato inicial, C., que está acompanhado de uma bela mulher, encosta no pé de seu ouvido e diz:
– É, seu negro, vê só? Você pode me vencer nos concursos, mas nas mulheres não. Pode até arranjar uma qualquer, mesmo branca como a minha, mas não com esse talhe aristocrático, olha só que beleza. (p. 41)
Em seguida se afasta. Linhas abaixo, a narradora diz que “a sobrevivência na selva dos brancos bem-educados exige táticas de guerra às quais Afonso se acha habituado, mas algumas investidas até hoje o surpreendem”. Alguém acredita que o lado de vítima do racismo de Lima não poderia ter sido relembrado de forma mais competente? Após ler tal trecho, não fica no leitor uma compreensão maior do impacto do preconceito em um indivíduo. Fica a consciência de que trechos assim não passam de tirania da penitência branca a serviço da péssima literatura. Isso é especialmente triste porque o racismo é um dos fatores que deveriam ter sido abordados com sucesso em um livro com Lima como protagonista.
Na verdade, a personagem Sofia foi uma criação mais bem sucedida de Luciana Hidalgo do que o próprio Lima. A jovem trabalha em um sebo frequentado pelo escritor, e frequentemente o segue pelas ruas, sonhando talvez com uma abordagem, que não ocorre devido à extrema timidez de Lima. Timidez que irrompe na repartição em que trabalha como burocrata, ao esbarrar na mesa de uma secretária e virar motivo de risada, e é especialmente acentuada (como geralmente ocorre) quando sob os olhares de uma pretendente. No sebo, Sofia fica espreitando o rapaz por entre os espaços nas prateleiras, enquanto ele lê atentamente um livro qualquer, ou finge ler. Sofia observa-lhe as feições e reações diante das páginas que folheia, e quando Lima aparece conforme traduzido por ela, O passeador ganha da sutileza de que grandemente carece. (Sofia é aqui como a câmera lateral com tendência ao foco.)
Chega a ser até uma felicidade o fato de Lima passar boa parte do livro ausente, dando espaço para Sofia e sua vida (com dramas próprios, embora não tão sérios quanto os de Lima). Mas deixa logo eu contar uma coisa pra vocês: Sofia pode ser simplesmente mais uma invenção de Lima, tão material quanto Clara dos Anjos. Antes de me acusarem de soltar spoilers, saibam que esse imenso estraga-prazer está na orelha de O passeador, a qual você com certeza leria se pegasse o livro.
Sutileza não demanda, muito menos é sinônimo de, “prosa poética”. De fato, o romance de Luciana está cheio desse troço, o que não diminui em nada a aspereza do conjunto. Pelo contrário: a qualidade de sua prosa poética está bastante aberta à discussão. Lá pelas tantas, por exemplo, o leitor tem que sofrer o seguinte início de capítulo:
A cada amanhecer a lua perde o seu sentido. Quando o dia afasta a noite, o sol passa a reinar soberano, em toda a sua vaidade. (p. 155)
Se me fosse concedido o direito de realizar um único desejo, este seria o de ressuscitar Graciliano Ramos apenas para ouvir sua opinião sobre a poesia na prosa da literatura brasileira contemporânea.
Não bastasse, passamos o livro acompanhando as andanças de “Afonso” – sem em nenhum momento deixar de saber tratar-se de Lima (até porque os livros têm contracapa e orelhas) –, e no entanto, a cinco páginas do ponto final, lemos que talvez nosso protagonista tenha dado vida a personagens como Isaías Caminha e Policarpo Quaresma “justamente para este fim, um pelotão de resistência hábil em sustentar os ideais do jovem Afonso, hoje conhecido como Lima Barreto, autor de romances, contos, crônicas.” Eis aí uma informação que não surpreende.
E quem achou que eu fosse terminar sem citar Coetzee levanta a mão. O mestre de Petersburgo é, pelo menos na minha estante, o exemplo máximo de como colocar um gigante literário em uma obra de ficção e deixar o leitor babando. Acompanhem lá o velho Dostoiévski na São Petersburgo de 1869, investigando a morte do enteado em meio a revolucionários niilistas, e depois me digam.
::: O passeador ::: Luciana Hidalgo :::
::: Rocco, 2011, 192 páginas :::
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Daniel Lopes
Editor da Amálgama.
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