'A Casa dos Náufragos', do cubano Guillermo Rosales, é um pesadelo que conta muito da vida do autor
O enredo da novela do cubano Guillermo Rosales (1946-1993) é como um pesadelo, e pesadelo do pior tipo – aquele que começa sufocante e, quando a gente pensa que enfim a barra vai aliviar, ele volta a sufocar. A sombria capa da edição em espanhol pela editora Siruela dá uma boa noção da atmosfera.
O pesadelo conta um bocado da vida de seu arquiteto. O personagem escritor William Figueras, como foi Rosales, é um exilado cubano que, em Miami, passou bons pedaços de tempo em boarding homes, lugar de idosos e loucos abandonados. E nem tão loucos, como Figueras. Logo após poucos dias na casa, para onde fora levado por uma tia – que, a título de justificativa, apenas soltou um lacônico “Aqui você vai ficar bem. Você há de compreender que não se pode fazer mais nada” e fez umas poucas elaborações a partir daí –, ele escuta do leão de chácara da casa, Arsenio (!): “Já te observei bastante … você não está louco.” O quadro de Figueras é esquizofrenia. Mas, pelo menos enquanto dura a novela, é uma esquizofrenia light, com certeza menos séria que a que acometeu seu criador, Rosales.
Arsenio é um bêbado violento. Zé-Ninguém fora da casa, onde passou temporada na cadeia, dentro dela manda e desmanda, agredindo sexualmente uma interna já idosa e assediando uma pouco mais nova, além de surrar constantemente o louco com mania de mijar no meio da sala e de roubar os trocados ganhos por um interno que no turno da noite trabalha em uma pizzaria. Conta com a inteira confiança e conivência do proprietário do estabelecimento, o gordo Curbelo, que passa por lá apenas de vez em quando, para dar uma geral na administração. Arsenio custa pouco a Curbelo, que leva um excelente estilo de vida por economizar em tudo na casa, inclusive comida de qualidade e papel higiênico. Os cheques do governo, um para cada interno, chegam em dia.
Figueras, exilado, confessa no entanto ao leitor ser antes de mais nada um exilado por temperamento – “Não sou um exilado político, sou um exilado total. Às vezes penso que, se tivesse nascido no Brasil, na Espanha, na Venezuela ou na Escandinávia, também teria fugido de suas ruas, seus portos e campos.” Na casa dos náufragos, raramente se separa de seu livrinho com poemas de poetas românticos ingleses. Pois é – Wordsworth em pleno inferno.
A casa é dos náufragos por ser uma casa habitada por pessoas propositalmente perdidas pelas suas famílias. E também pela maior parte ser de fugidos de Cuba. Ida é uma delas, antiga burguesa na ilha, esposa de um empresário bem sucedido. A classe derrotada. Figueras, por sua vez, militou pela e na classe dos vencedores, participando das campanhas de alfabetização no princípio do regime de Fidel. Mas depois – quando a revolução começou a comer os revolucionários, nivelando por baixo –, Figueras também se viu derrotado. Que bela cena escreveu Rosales, pondo os dois na sala da casa de repouso em Miami conversando sobre os bons velhos dias – ela teve mais desses dias, que vieram pouco antes dos dele.
Guillermo Rosales estuda a natureza humana através das trajetórias inversas, mas ambas trágicas, do personagem Figueras. Sim, esse é um livro pessimista até o caroço. Nos dias de revolução, ele foi primeiro carrasco, depois testemunha, depois vítima. Na boarding home, ele chega como vítima da incompreensão e falta de dedicação dos familiares que tinha em Miami, passa naturalmente a ser testemunha dos descalabros de Arsenio e Curbelo, e, quando dá por si, está sendo carrasco junto com Arsenio, incontrolavelmente surrando o velho mijão (aliás, outro exilado cubano), fazendo vista grossa aos ataques sexuais do leão e extorquindo o louco empregado da pizzaria. Ou seja: como verá o leitor, Figueras não apenas está em um pesadelo, mas, por um grande período da novela, seu comportamento é um dos motivos pelos quais o que estamos lendo ser um pesadelo.
Pelo menos até a chegada de Francis, uma interna bem mais nova que todas da casa. Ela é mais uma ex-revolucionária atualmente exilada. Em sua fase cubana, trabalhou, assim como Figueras, com a alfabetização de camponeses. Figueras de início até que apalpa a moça de forma nada cavalheirosa, e começamos a temer pelo pior – que ele se transforme em um clone do estuprador Arsenio. Esse é realmente o ponto alto do pesadelo, aquele em que ficaremos eternamente gratos se alguém nos acordar.
Mas Figueras se apaixona por Francis. Ufa. Fazem amor em plena casa dos náufragos. Decidem pedir seus cheques assim que Curbelo os receber novamente e alugarem uma casa onde possam ser felizes em paz. Mas ficar desfalcado em dois polpudos cheques, sem aviso prévio, é demais para Curbelo. E lá se vai o pesadelo para novos picos de angústia.
O personagem de Rosales é mesmo interessante. Ele saiu de Cuba, mas Cuba não saiu dele. Ele tem traumas, e Fidel não lhe sai do inconsciente. Em um dos sonhos que tem na casa, o líder cubano está sozinho numa casa branca; Figueras manda diversas balas de canhão, reduz a casa a quase nada, mas o velho não sai de lá, dizendo desafiadoramente: “Não vai me tirar daqui! Não vai me tirar!”. Em outro sonho, Figueras está em uma funerária de Havana quando chega um caixão com um corpo, cercado de carpideiras; o corpo é de Fidel, que no entanto se levanta e pergunta: “Não tem café para mim?”. Pense num homem resistente.
Cuba também ficou em Figueras para além dos traumas. A revolução, ao que parece, moldou para sempre a forma como vê os homens e o mundo. Quando procura uma forma de descrever seu ódio pelo desprezível Curbelo, o melhor que consegue é isso: “Eu também vejo com ódio esse velho balofo, com cara e voz de grande burguês, que se alimenta do pouco sangue que corre em nossas veias.” Pobre Figueras, duplamente.
A casa dos náufragos, aparecido em 1987, é um dos dois livros de Rosales que sobreviveram. O outro, de 1967, é El juego de la viola, que chegou a ser finalista do prêmio Casa de las Americas, uma outorga do governo cubano – o escritor fugiria do regime castrista apenas em 1979. Até que ele produziu bastante, mas, antes de se suicidar em Miami aos 47 anos, destruiu quase tudo.
::: A casa dos náufragos ::: Guillermo Rosales (trad. Eduardo Brandão) :::
::: Companhia das Letras, 2011, 128 páginas :::
::: compre na Livraria Cultura :::
Daniel Lopes
Editor da Amálgama.
[email protected]