PT: O que sobrou da bandeira?

Em seu livro, Lincoln Secco conta a história da formação de um partido social-democrata brasileiro.

- "História do PT", de Lincoln Secco -

O livro de Lincoln Secco começa com uma senhora chamada de responsabilidade para si, a célebre citação do Gramsci sobre como escrever a história de um partido é escrever a história geral de um país. Há algo disso no livro: estão lá os números sobre a industrialização do ABC, as discussões durante a redemocratização (a Constituinte não recebe a mesma atenção), a virada liberal pós-Collor, a queda da inflação com o Plano Real, as crises do governo FHC, a dramática queda de mobilização política dos anos noventa, as oscilações do governo Lula, a crise do Mensalão e as vitórias eleitorais do PT.

Mas não me pareceu que são esses temas que conduzem a narrativa: o livro é mais uma história do partido em um sentido um pouco mais estrito: as discussões das tendências, as decisivas controvérsias sobre a organização interna e os debates sobre estratégia eleitoral (em especial as alianças). Isso em nada desmerece a obra, até porque é urgente que os formadores de opinião brasileiros se informem mais a esse respeito. Independente da discussão sobre o viés da cobertura do PT pela mídia, salta aos olhos o quão pouco a mídia sabe sobre o partido. Em geral, discute-se o PT sobrepondo os velhos clichês anticomunistas a um certo cinismo “político é tudo igual” (duas linhas, a propósito, contraditórias entre si).

É também uma visão de dentro. Secco não esconde sua militância, e tira vantagem dela para registrar, em diversas oportunidades, o sentimento dos petistas em determinada conjuntura. Por exemplo, quando trata da Hora da Verdade, grupo petista que rachou com a Articulação, produzindo uma virada para a esquerda em momento crucial (um ano antes da eleição de 94), Secco não deixa de registrar que, anos depois, quando vários desses dissidentes se aliaram ao grupo dirigente, ficou na militância a sensação de que o racha tinha sido só uma disputa por espaço. Quando compara os ataques da mídia ao PT em 1989 e em 2005, bem nota que ser chamado de radical causa irritação, ser chamado de ladrão causa vergonha.

Mas as incursões pelas impressões do autor (que compartilho, em ambos os casos) são bem amarradas na narrativa geral, que é claramente o texto de um historiador, ainda que escrevendo livremente. O livro não foi escrito para participar da discussão acadêmica; não debate-se detalhadamente a bibliografia de ciência política sobre o PT (Keck, Meneghello, Hunter, etc.), por exemplo. Não há preocupação maior de discutir a tese de Chico de Oliveira sobre a hegemonia às avessas e os fundos de pensão, o artigo do Leôncio Rodrigues sobre a importância crescente dos sindicatos do setor público, e mesmo o artigo já clássico de André Singer sobre o Lulismo é citado apenas rapidamente. Os temas estão lá, e fica claro que Secco os conhece bem, mas não é o leitor acadêmico que ele quer impressionar.

Para quem não entende bem a especificidade do PT na história brasileira, vale a pena começar pela discussão de Secco sobre os grupos que fundaram o PT em diferentes cidades. O que salta aos olhos é a extraordinária elevação da temperatura democrática que aconteceu no Brasil da década de 80. Secco reconhece o papel das Comunidades de Base católicas e do Novo Sindicalismo na formação do partido, mas a análise dos municípios mostra a existência de diversos outros grupos se articulando pelo Brasil afora — em Santo André, por exemplo, além dos grupos de sempre, foram fundamentais para a formação do PT o Movimento de Defesa dos Direitos dos Favelados e o Movimento dos Usuários de Transportes Públicos (será que ainda existem?). O interessante não é que esses movimentos estivessem entrando em um partido; estavam fazendo um partido para eles. Não se pode entender o PT sem entender o que foi o renascimento da democracia no Brasil: quando voltou a ser permitido ser de esquerda em campo aberto, muita gente experimentou (nem todo mundo gostou, é certo). A convivência entre todos esses movimentos nem sempre deu muito certo: Secco destaca, por exemplo, os conflitos entre os militantes católicos e as tendências trotskistas que defendiam a causa da liberdade sexual. Sempre houve alguma desconfiança, da parte dos sindicalistas, com relação aos intelectuais, suspeitos de tentarem ensinar ao proletariado quais os seus verdadeiros interesses.

O lado ruim dessa multiplicidade de discursos, movimentos e tendências foi o baixo nível de elaboração teórica do PT durante a maior parte de sua história. Secco narra vários momentos em que o PT resolveu adiar a discussão sobre o que exatamente seria o socialismo, por saber que ninguém ia concordar sobre nada. Não tenho dúvida de que isso funcionou: o partido conseguiu se construir, e, aliás, como veremos abaixo, teve uma trajetória semelhante a partidos de extraordinária tradição teórica, como a social-democracia alemã.

O mapeamento das tendências inclui um gráfico no final do livro indicando que grupo deu origem a que outro grupo, mas talvez tivesse sido melhor dedicar mais tempo a explicar o que, exatamente, defendia cada tendência, e, em especial, seus antecedentes históricos. Certo, só o mapeamento das sei lá quantas quase-Internacionais Trotskistas (várias delas representadas no PT) ocuparia um livro duas vezes maior, e, provavelmente, enlouquecedor, mas a falta de qualquer informação sobre elas torna algumas passagens misteriosas. Por exemplo, a certa altura somos informados que, nos anos 80, o grupo “O Trabalho” (do Markus Sokol, até hoje no PT) rompeu com a Articulação (tendência majoritária durante a maior parte da história do PT, liderada pelo Lula) por determinação da quase-Internacional a que pertencia. Por que houve essa ordem? O leitor fica sem saber, e provavelmente seria impossível explicar sem contar mais sobre as discussões entre os trotskistas mundo afora. Como esses grupos discutiram as ideias que atravessavam as discussões na esquerda mundial da época? Como, a título de exemplo, o eurocomunismo chegou dentro do PT? Que eu me lembre, o PC italiano era o único PC (aliás, o único partido estrangeiro) que era frequentemente elogiado em reuniões do PT que eu tenha participado.

Aliás, senti falta no livro de Secco de uma história do diálogo das ideias petistas com os movimentos intelectuais pós-68. Além dos debate citados da turma mais bolchevicosa, há vários temas que mereciam ser mais explorados, como a influência do pensamento da esquerda heterodoxa francesa sobre o PT — aquela turma, Foucault, Deleuze, Castoriadis, Lefort, etc. O Guattari veio ao Brasil entrevistar o Lula (deviam reeditar isso, aliás). Me lembro de uma professora da faculdade falando de como o Castoriadis ficou impressionado com os Conselhos Populares de Porto Alegre. Por outro lado, creio que houve todo um contrabando (no melhor sentido) de pós-estruturalismo para dentro das tendências bolchevicosas após 1968. Secco lembra de como algumas tendências trotskistas encampavam teses sobre a liberdade sexual que muitas vezes chocavam a turma da Teologia da Libertação. É difícil acreditar que aqueles estudantes trotskos que foram trabalhar como operários não fossem influenciados de alguma forma pelos operaísmos variados dos anos 60/70. E o PT logo abraçou temas da chamada “Nova Esquerda”: feminismo, direitos dos homossexuais, questão racial. Houve muito de Partido Verde no PT, e acho que isso ajuda a entender porque o PV brasileiro, quando não estava concorrendo à presidência tendo ex-petistas como candidatos (talvez especialmente no caso carioca), tenha sido a nulidade que foi.

Agora, reconheço que Secco não era obrigado a tratar de nada disso. Ele tem todo o direito de me responder, Ô palhaço, se queria ler um livro diferente, que o escrevesse. E ele teria razão.

Voltando, portanto, ao que o livro trata, é importante notar que a obra não é, de forma nenhuma, uma coleção de monografias apropriadamente resenhada. Por trás das discussões sobre a vida interna do partido, creio que há dois temas que cortam a História do PT de Secco, dando-lhe certo senso de unidade: em primeiro lugar, as dificuldades de constituição de um partido social-democrata na realidade brasileira; e, em segundo lugar, o problema do que fazer com o ideal socialista.

Percebe-se claramente ao longo do livro uma certa insatisfação do autor com a falta de coragem do partido (ou, ao menos, de sua tendência majoritária) para assumir o caráter cada vez mais social-democrata da estratégia que o PT adotou nas últimas décadas. Há a excelente citação de um militante da esquerda do partido que, quando começou a ouvir o pessoal falando em Gramsci, vaticinou “Essa coisa vai dar em reformismo” (p. 251); há a bela sacada de que a fórmula usada pelo partido para tentar evitar se posicionar no debate sobre Revolução vs. Reformismo era ela mesmo de Bersntein (“a democracia para nós é meio e fim”); há a declaração de Hobsbawm sobre o PT ser o último grande partido social-democrata semelhante aos organizados na Europa antes da primeira guerra mundial (p. 256). A história do PT é claramente contada como formação de um partido social-democrata brasileiro, através da progressiva — mas não linear, com idas e voltas — moderação do discurso e da sua adequação ao sistema político nacional.

O movimento de moderação é complexo. Começa, se entendi bem, ou se bem me lembro, com uma parte importante do partido que se torna cada vez mais moderada após 1989 (ano em que o Lula quase ganhou, e o socialismo real finalmente percebeu que tinha morrido). Aqui os nomes importantes são: Genoíno, Genro, Eduardo Jorge (na minha opinião, um cara injustiçado pela memória do partido) e, creio eu, Marco Aurélio Garcia (que aparece pouco no livro, mas é o autor de um artigo importante, “O PT e a Social-Democracia”). Essa tendência tende a se aliar à Articulação, sempre vaga em sua autodefinição (na formulação feliz de Secco, era quase uma anti-tendência). Essa aliança perde o controle do partido no oitavo encontro, em 1993, bem na hora em que a eleição do Plano Real estava chegando.

As sucessivas derrotas eleitorais, entretanto, voltam a fortalecer os moderados, e agora entram em cena dois outros personagens fundamentais: Zé Dirceu, que articula sucessivas vitórias dos moderados em momentos cruciais, ganhando, assim, sua reputação de grande organizador político (infelizmente, não foi a única reputação que adquiriu, mas ninguém duvida que Dirceu sabe muito fazer política). E, é claro, Lula, que, como bem nota Secco, constrói um espaço de atuação individual que muitas vezes dribla a política interna do partido, como na realização das caravanas da cidadania e na fundação do Instituto da Cidadania. Leiam o livro para conhecerem as outras idas e voltas que levaram até a “Carta ao Povo Brasileiro”.

-- O autor --

É isso, então, o PT seguiu o destino dos partidos operários e se tornou social-democrata? É isso, mas não só. Nas últimas páginas, sem sombra de dúvida as melhores, há dois insights realmente muito bons sobre a relação do PT com a social-democracia que, na minha opinião, valem o livro. São eles:

1) O PT cresceu em um ambiente político mundial amplamente favorável à direita, o que o forçou a fazer o trajeto do radicalismo à moderação em muito menos tempo que as social-democracias europeias; o que, sem dúvida, ajuda a explicar o clima de confusão ideológica que impera entre os militantes mesmo depois de três vigorosas vitórias eleitorais.

2) Visto que o Brasil era um país periférico, grande parte do processo de moderação do movimento operário se deu mais em direção aos grandes setores excluídos do que às classes médias. Essa é, creio, uma grande maneira de se apropriar do trabalho do Singer sobre o lulismo. Ajuda a explicar, por exemplo, a existência de todo um segmento de membros da classe média que se decepcionaram com Lula por ele não ter atendido suas preocupações, fossem elas o combate à corrupção ou a causa ecológica (essa última interpretação é minha, não de Secco, mas não creio que contradiga seus resultados).

Secco também merece elogios por não cair na velha armadilha de descartar a comparação com a social-democracia europeia porque o PT nunca foi marcadamente marxista como foi a socialdemocracia alemã; como bem lembra o autor, sempre houve diversas tradições social-democratas, várias delas menos próximas do marxismo desde sempre, como a inglesa. O fato de o PT ter tido que dialogar, por exemplo, com a tradição da esquerda nacionalista (um diálogo que nem sempre terminou bem) não desqualifica a experiência petista como construção social-democrata.

Mas, vale dizer, Secco não parece muito entusiasmado com a virada social-democrata, e não só porque ela é envergonhada e incompleta. Prevalece no livro um saudável realismo gramsciano na linha pessimismo do raciocínio/otimismo da ação, mas há também uma certa melancolia do que “poderia ter sido”, uma nostalgia do passado alternativo em que o PT teria sido o partido que resolveria os dilemas do movimento socialista internacional.

O livro conta uma história que, antes de mais nada, parece ser a trajetória do autor, ou de sua opinião sobre o PT. Um pessimismo perpassa o texto, uma certa perplexidade do militante socialista que até agora não entendeu como, exatamente, um dia ele acordou e o PT era aliado do Sarney. Não há nada de vulgar na análise de Secco. Ele reconhece os avanços do governo Lula (epigrafando um capítulo com uma ótima citação de Marx, na Crítica ao Programa de Gotha, dizendo que um progresso prático real vale uma dúzia de programas) e as circunstâncias que favoreceram sua adaptação ao sistema político brasileiro — a dramática queda do nível de participação política após o fim da Nova República, a vitória do neoliberalismo em momentos decisivos do debate público, a redução do tamanho do proletariado industrial (uma das principais locomotivas do PT nos primeiros anos), a fraqueza do PT na formulação de um programa de combate à inflação, e, é claro, os reflexos do fracasso do socialismo real em toda a esquerda mundial, mesmo a não comprometida com a URSS.

Secco evidentemente tinha esperanças maiores para o PT do que a social-democracia meio avacalhada que ele se tornou. (Para mim, que tenho “Todo o poder à social-democracia meio avacalhada!” como lema, o saldo é mais positivo.) Secco bem nota que desde muito cedo há uma visão mística da origem do PT, que afeta sobretudo a esquerda do partido, e enfatiza a pureza e a espontaneidade dos ideais de origem. Seria injusto dizer que o autor sucumbe à mesma tentação, mas também está claro que a visão de uma imensa onda de mobilização política popular espontânea que desemboca em um moderadíssimo partido social-democrata não é suficiente para ele. Quando Secco diz que o PT é como a estrela que o simboliza, com uma luz que vemos hoje mas vem de uma fonte há muito extinta, não há dúvida de que reflete uma preocupação real da militância. Essa preocupação é legítima e merece discussão.

Em primeiro lugar, há toda uma dimensão estrutural da crise da esquerda que eu, pelo menos, não sei resolver — como os sindicatos devem atuar na economia internacionalizada, por exemplo, ou, ainda mais importante, como sindicalizar (ou organizar de alguma outra maneira) a massa de trabalhadores desorganizados do lulismo. O PT vai ter que ouvir o que esses setores querem. Quais as possibilidades de se aumentar a participação política no Brasil hoje em dia? Esses são os problemas mais difíceis, e, suspeito, os principais.

Secco tem razão em que boa parte da energia do PT atual ainda é sobrevivente da efervescência de outras eras. Mas não foi o PT (nem, aliás, nenhum agente político) que criou as condições daquela efervescência. Esperemos que não seja o plano do PT ressuscitar a militância mergulhando o Brasil em uma crise social como a que marcou o fim do regime militar. Também não dá para fazer a democracia nascer de novo todo dia. Mas talvez sejam possíveis novas discussões nacionais que mobilizem, não só por serem importantes, mas por serem levadas adiantes por setores em ascensão, como era o operariado industrial no Brasil dos anos 70. Restaria descobrir essas novas pautas, e os setores sociais que por ela se mobilizariam.

Finalmente, há uma outra dimensão que alguém precisa ter coragem de levantar: quantas das ideias que o PT perdeu ao longo do caminho eram realmente boas? Algumas, como o esforço de organizar o partido pela base, sem dúvida eram (eu, pelo menos, delas não duvido). Mas, indo direto à questão central, e o socialismo?

O PT sempre foi socialista nos termos mais vagos possíveis, e isso teve um lado bom. Secco nos conta a história inacreditável dos militantes comunistas dos anos oitenta que vestiam camisetas com a foto do general Jaruzelsky (dirigente stalinista da Polônia) na mesma época em que os petistas apoiavam o Solidariedade (por influência dos Troskistas e dos Católicos). Mas a crítica do PT ao socialismo real sempre foi insuficiente. É claro que é importantíssimo defender que não haverá socialismo sem democracia, mas ninguém vai discutir se o planejamento centralizado favorecia o totalitarismo? Aliás, não era uma boa alguém aí estudar mais como, exatamente, funcionava o planejamento socialista? Aquilo era tudo, menos a condução consciente da economia pela coletividade e – isso é crucial – há fortes sinais de que não houve só distorções stalinistas; a ideia mesmo de condução consciente da economia pela coletividade é vaga e, no estágio atual de nossos conhecimentos, difícil de ser concebida como arranjo institucional.

Vale perguntar às duas grande heterodoxias marxistas que formaram o PT – a Igreja Progressista e os Trotskistas: a crítica que vocês fizeram do stalinismo até agora foi suficiente? Se não houvesse necessidade de moderação, se vocês pudessem implementar qualquer coisa como governo, o quão seguros vocês estão de que saberiam o que fazer? Eu não acho que a evidência histórica lhes dá o direito de ter qualquer segurança desse tipo. Seria bem melhor, creio eu, se vocês mandassem um “de volta ao museu britânico” para dentro de suas (ricas, não discuto) tradições intelectuais e pensassem, no que se refere à vitória do liberalismo nos anos noventa, em que, exatamente, os liberais estavam certos e no que nós estávamos errados. Não estou dizendo que estejam certos em tudo, ou na maior parte do que diziam, não estou nem mesmo excluindo de início a possibilidade de que estivessem completamente errados, mas vocês querem convencer quem de que já lidaram com a crise ideológica dos anos noventa de maneira satisfatória?

O pior é que, com a crise da globalização iniciada em 2008, tem gente na esquerda achando seriamente que bastará voltar ao que a gente dizia antes. Pelamordedeus. Nossa deficiência intelectual nos anos noventa só quer dizer que não temos sequer os instrumentos para lidar com a crise passada.

Certo, nada disso é fácil. Por exemplo, os intelectuais de esquerda do PSDB e do PPS, que eram muito bons, perderam a batalha pela reconstrução da esquerda brasileira por WO: no dia do jogo, ficaram em casa. Os programas dos partidos de extrema esquerda são uma tentativa de adaptar a esquerda dos anos sessenta fazendo com que a realidade nunca deixe de ser os anos sessenta. Nesse quadro, a perplexidade meio com cara de abobalhado que define a postura teórica do PT ao longo de boa parte de sua história está longe de ser a pior solução. Mas precisamos avançar.

Nesse sentido, o exercício de auto-reflexão proporcionado aos petistas pela leitura do livro de Lincoln Secco não poderia ser mais oportuno. Ele começa seu texto manifestando perplexidade com o fato de que, até hoje, não existia uma História do PT, nem mesmo uma oficial. Isso não é coincidência: essa falta de ajuste com o passado é uma falta de disposição para repensar a própria identidade. Sejamos gratos ao autor por não deixar ficar assim.

——
PS: o livro, vale dizer, seria beneficiado por uma revisão mais cuidadosa. Há algumas frases meio confusas.

::: História do PT ::: Lincoln Secco :::
::: Ateliê, 2011, 320 páginas :::
::: compre no Submarino ou na Livraria Cultura :::

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Celso Barros

Mestre em Sociologia pela Unicamp e doutor por Oxford.


  • http://relances.wordpress.com Vinícius de Melo Justo

    “Mas talvez sejam possíveis novas discussões nacionais que mobilizem, não só por serem importantes, mas por serem levadas adiantes por setores em ascensão, como era o operariado industrial no Brasil dos anos 70. Restaria descobrir essas novas pautas, e os setores sociais que por ela se mobilizariam.”

    Pois é, Celso. O grande lance da esquerda para mim sempre foi o ponto de envolver todos os setores sociais nas decisões de rumos para a sociedade e coisa e tal. Mas é possível dizer que o PT tanto não fez isso em seus governos de modo afirmativo – ou seja, defender novas pautas após conversa com a sociedade, agindo tão tecnocraticamente quanto o PSDB em quase todas as ocasiões. Se as decisões tomadas foram melhores que as sob FHC, isso nem chega a ser importante diante do real problema da participação política dentro do partido; fica a impressão, para quem é de fora, que a cúpula do PT só precisa da militância para fazer o trabalho sujo: campanhas, defesa do mensalão e das alianças condenáveis, etc.

    Por outro lado, é visível neste ano de Dilma que diversos movimentos sociais que têm se organizado à parte do PT reclamam ora da ausência completa de diálogo e sua interrupção (vide o movimento gay, por exemplo), ora da postura intransigente e regressiva de medidas do governo (o mais recente caso é o possível fim do programa das cisternas no Nordeste, o caso mais emblemático é Belo Monte). Parece-me que os interesses dos diversos setores sociais que buscariam no PT um articulador têm sido substancialmente negligenciados pela cúpula do partido, criando uma situação interessante: para onde eles vão? É possível que já tenham votado em Dilma para evitar Serra, como eu fiz.

    Em suma, mais do que não ter reais respostas às crises do passado e do presente, pode ser que os atuais líderes do PT careçam até mesmo do ponto mais importante para qualquer partido de esquerda, ao meu ver: a inclusão dos setores sociais com menos voz. Quando a Andrade Gutierrez tem mais chance de fazer valer sua visão de mundo do que o movimento contra Belo Monte junto a um governo que deveria ser de esquerda, bem, eu me pergunto aonde essa esquerda quer chegar.

    • http://napraticaateoriaeoutra.org NPTO

      Fala Vinicius!

      O diálogo entre movimento social e governo sempre será difícil, porque são duas perspectivas muito diferentes. Eu ainda não consegui me decidir sobre Belo Monte, porque minha tentativa de descobrir se, afinal, a usina vai reduzir a vazão do rio o tanto que os críticos dizem esbarrou na minha incompetência técnica. Achei mais plausível a acusação de que não se deu a devida atenção à opinião dos índios, o que é muito grave. Também parece, pelo pouco que li, que o PT não alterou as condições em que costuma ser realizados esses grandes projetos em termos de condições trabalhistas, o que é também muito grave. Mas, repito, tem gente mais inteligente e bem informada do que eu contra e a favor, certamente é melhor ler outra pessoa a esse respeito.

      Agora, não acho que os defensores de Belo Monte deixam de ser de esquerda por serem defensores de Belo Monte. Vamos supor (o que não é de maneira nenhuma óbvio) que eles não tenham chegado à conclusão de que Belo Monte é uma boa idéia depois de avaliar bem seu impacto ambiental. O mais provável é que eles tenham concordado com a Andrade Gutierrez não por serem defensores de empreiteira mas por serem desenvolvimentistas, e por acreditarem que a esquerda deve patrocinar iniciativas estatais na área de infra-estrutura. E arrisco dizer que a base social do PT provavelmente sempre foi mais ou menos desenvolvimentista em algum sentido: o pleno emprego sempre foi bandeira da esquerda, até porque o pleno emprego fortalece a posição do trabalho nas negociações salariais.

      É claro que hoje em dia precisamos rever muita coisa em nossa noção de desenvolvimento, mas não me parece que o PT (para não falar dos outros partidos, ou da esquerda mundial em geral) já tenha tido uma noção mais avançada e que a tenha abandonado. A Marina e o Chico Mendes eram casos muito especiais, ligados à luta de trabalhadores muito diretamente afetados pela questão da preservação ambiental. E, por mais que simpatize com a Marina, não me parece óbvio que ela tenha uma solução pronta para o problema do desenvolvimento nacional (somos dois, aliás).

      Ando meio afastado da discussão, não sei bem qual o problema atualmente da relação com o movimento gay.

  • http://drunkeynesian.blogspot.com Drunkeynesian

    Tem um typo (dois, na verdade) no nome do Markus Sokol (creio que esta é a grafia correta). No mais, obrigado por mais uma aula sobre a esquerda brasileira, é sempre bom ver que você continua escrevendo.

    • http://napraticaateoriaeoutra.org NPTO

      É mesmo, o Sokol saiu errado, vou avisar o Daniel. Parabéns aí, rapaz, seu blog é um dos que eu mais gosto de ler atualmente, show de bola, coisa muito fina.

    • http://www.amalgama.blog.br/ – amálgama –

      Obrigado pelo toque, cara. Já corrigimos.

  • paulosk partizan

    Celso,
    Quando o NPTO vai ressucitar?

    • http://napraticaateoriaeoutra.org NPTO

      Paulo, continuo meio sem tempo para voltar ao blog, vamos ver como a coisa anda.

  • Alfredo Rossi

    Afemaria. Meu caro Vinicius de Melo. Justo você?
    Acho que vivemos em Brasil diferente. Logo da inclusão social você
    comenta negativamente. Tenha a santa paciência. Não é facil arrumar os desgovernos de 500 anos em pouco mais de 8, certo?
    Viva Bolsa Família, o Brasil sem Miséria, o Minha Casa Minha Vida e o PAC, e…viva o Brasl atual..

    • http://relances.wordpress.com Vinícius de Melo Justo

      Caro Alfredo, eu disse o seguinte:

      “Mas é possível dizer que o PT tanto não fez isso em seus governos de modo afirmativo – ou seja, defender novas pautas após conversa com a sociedade, agindo tão tecnocraticamente quanto o PSDB em quase todas as ocasiões. Se as decisões tomadas foram melhores que as sob FHC, isso nem chega a ser importante diante do real problema da participação política dentro do partido (…).”

      Enfim, os planos citados por você só corroboram meu ponto, pois nenhum deles nasceu exatamente de debates públicos envolvendo todos os setores, em especial os beneficiados. Como eu disse, o ponto não é se é melhor fazer Bolsa Família sem consultar ninguém em contraposição a privatizar sem consultar ninguém (eu acho que é melhor o primeiro, você também acha), mas que mesmo nestas conquistas sociais não se percebeu envolvimento da militância, exceto para defendê-las a posteriori.

      O PAC está fazendo Belo Monte, por exemplo, à revelia dos movimentos sociais da região, muitos deles historicamente ligados ao PT. Você errou quando disse que comentei negativamente sobre a inclusão social. O negativo que apontei é a falta de participação popular e militante real na agenda atual do partido, que se verifica até mesmo nos mais meritórios atos do governo Lula.

      Do atual governo Dilma nem falo tanto, visto que houve retrocessos mil em campos em que apoio a esquerda. Se os petistas estão confusos, imagine como eu estou, hehe.

  • lincoln secco

    Caro Celso, que resenha!!! Ela apanhou o essencial da história do PT. Sinto-me honrado por seus comentários e críticas respeitosas e honestas. Nem todas, de fato, eu poderia satisfazer, dado o tamanho do meu livro e da minha capacidade. Um grande abraço. Lincoln

    • http://napraticaateoriaeoutra.org NPTO

      Opa, valeu, Lincoln, e parabéns pelo belo livro, li com muito prazer.

  • http://www.descurvo.blogspot.com Hugo Albuquerque

    Celso,

    Acho que a grande chave do problema é o seguinte: o PT sempre foi muitas coisas, multitudinário pelas contingências, e não por esforço próprio, o que sempre marcou uma relação tensa entre suas correntes e, ao mesmo tempo, determinou a hegemonia dos sindicalistas. Explico-me: a tradição marxista, presente em muitas da correntes petistas, sempre lidou com a diferença enquanto entrave ao desenvolvimento – e isso está no próprio Marx como parte do legado hegeliano que ele não conseguiu se livrar -, mas, simultaneamente, ter uma multiplicidade de correntes e grupos, e está aberto a receber mais e mais setores, sempre lhes pareceu, por cálculo político, mais vantajoso pela possibilidade de algum dia agregar esses grupos para seu próprio projeto, sua própria perspectiva de transformação social.

    Quem conseguiu dar liga para isso? Os católicos militantes, que trabalhavam mais do que discursavam, construíram organismos que realmente agregavam pessoas comuns (como as pastorais), mas, sobretudo, os sindicalistas, que eram intelectualizados à sua maneira, e sabiam (como sabem) lidar intuitivamente com a diferença e funcionam melhor num ambiente heterogêneo e sob pressão – daí ao controle da máquina partidária por eles foi um passo, eles conseguiam conceber um tecido conjuntivo. A intelectualidade marxista dentro do PT não era, em toda sua diversidade, capaz de lidar em termos práticos com a diferença – porque não conseguiam fazer isso sequer na teoria -, enquanto os sindicalistas já tinham, inclusive, uma práxis bem sedimentada para lidar com isso.

    Daí, a importância do diálogo de Lula com Guattari que você citou – e eu publiquei há uns meses n’O Descurvo -, mais do que um encontro do maior expoente sindical do PT com um expoente da nova esquerda europeia, foi a confluência entre dois tipos de gênios que chegaram, por vias absurdamente diferentes, a conclusões parecidas; é provável que Lula nunca tenha se debruçado nas conclusões teóricas de Guattari (junto com Deleuze ou separadamente), mas certamente ele teria concordado com elas, uma vez que o ex-presidente via na multiplicidade e na diferença algo positivo, a despeito dos marxistas, embora não se interessasse de modo algum em polemizar com eles a respeito disso – ou melhor, Lula polemizou, mas não pela oratória ou pela gramática, mas pela política mesmo.

    Eu não consigo ver, no entanto, nos católicos da TL uma “heterodoxia marxista”, mas sim um cristianismo místico com lá seus enxertos marxistas, cuja importância sequer pode ser nivelada aos trotskystas, seja pela sua superioridade em tamanho relativo ou importância no desenho do PT. Acho que o que deveria ser perguntado a eles não é se sua crítica ao Stalinismo era suficiente – acho que a própria raíz do catolicismo romano e sua diferença profunda em relação à ortodoxia já é uma resposta suficiente da incompatibilidade prática entre ambos -, mas sim qual a funcionalidade real da sua pretensão de aplicar modelos morais à prática política. Aos trotskos valeria a pena questionar a efetividade prática de sua atuação – coisa que parte deles percebeu da pior maneira, quando largaram mão do PT e foram para o PSTU ou para o PSOL.
    .
    Outra vertigem da história fez do PT um partido mais de nova esquerda, operaísta tropical, do que preso ao debate social-democracia (socialismo ocidental) x comunismo (bolshevismo, socialismo oriental): é a virada do capitalismo mundial e como ele consegue captar isso. O Capitalismo mudou, ninguém mais está fora da máquina, todos – mesmo os pobres não proletarizados – produzem de alguma maneira no pós-industrialismo; todos são incluídos, nem que seja como excluídos. Quando Lula assume de vez os rumos da campanha presidencial de 2002 é isso que ele pauta com a Carta ao Povo Brasileiro – e esse é o núcleo duro do projeto petista, aqui e acolá, inclusão efetiva dos pobres e geração de uma renda como o bolsa família (embora seja preciso ponderar os desvios trabalhistas de Dilma).

    Discutir a social-democratização do PT é perda de tempo. Os rumos de partidos social-democratas não são diferentes e apontam sempre para uma terceira via – e isso, veja, é um problema do PSDB -, enquanto os partidos comunistas – bolsheviks – caminharam inevitavelmente para o nacional-populismo – vide PC do B, o Partido chinês ou o Partido russo atual etc. Nada disso se aplica ao PT, goste a intelectualidade do partido ou não, mas não é ela que em termos práticos – políticos e não de ciência política – que deram ou dão a linha no partido da estrela, do contrário seria essa briga que estaríamos vendo dentro dele…

    Os problemas do PT atual, o déficit de democracia em Dilma e a incapacidade do próprio Lula em infiltrar a democracia, expõe, na verdade, as limitações do modelo sindical, como a sua relação diferença se dá, ainda, pela mediação – se não pela contradição, pela aplicação da semelhança. Não creio que exista um debate real entre ou “isto” ou a “economia planificada”, uma vez que o próprio plano, em termos bolsheviks, jamais seria referendado pelos próprios petistas – que podem ter uma leitura errada e romântica desse fenômeno, mas que certamente estão longe de terem planejado algo parecido isso em nível nacional, estadual ou municipal -, mas que o “isto” é problemático e precisa ser repensado, ele não é uma realidade objetiva (se é que ela exista…) e é isso que está em xeque quando Dilma não consegue lidar com as mudanças que ela própria ajudou a produzir.

    abraços
    Hugo

  • http://napraticaateoriaeoutra.org NPTO

    Fala, Hugo!

    O PT sempre teve esse lado de sobreposição de projetos, mil platôs, corpo sem órgãos, ê Lelê!, e a tentativa de acomodá-los sem forçá-los a convergir sempre me parece positiva. Mas o fato é que na política sempre tem a hora da decisão, e aí alguma convergência sempre se força, a decisão é sempre um corte.

    Por exemplo, suspeito que esteja nos sindicatos a origem do desenvolvimentismo do PT, que venceu a batalha contra os setores ambientalistas. Por isso não acho que haja déficit de democracia no governo Dilma – que, aliás, nisso em nada é diferente do governo Lula – mas que ela ouviu alguns movimentos em detrimento de outros. Não por acaso, ouviu o movimento com mais peso dentro do partido.

    E há, é claro, a questão dos pobres desorganizados que levaram seu voto para o PT recentemente. Ali, sim, a batalha pelo ambientalismo é muito difícil. Não estou dizendo que é impossível, mas é difícil. Talvez só o pessoal da TL tenha já conseguido fazer esse trabalho de articulação pobres/causa ambiental em alguns momentos. Quem gosta do ambientalismo da Marina “apesar” de sua religiosidade talvez não esteja prestando a devida atenção.

  • http://vilarnovo.wordpress.com Pablo Vilarnovo

    Celso sempre brilhante. Abraços liberais.

  • Ticão

    Continua sendo um prazer.

    Muito esporádico, infelizmente.

  • http://www.opiniaosingela.blogspot.com.br César Bento

    Excelente resenha. Resume o livro e faz com que tenhamos vontade de lê-lo. O PT precisa encarar seu passado, presente e futuro com mais rigor, para não iludir a si próprio sobre suas características. Eu sou petista (apesar de tudo), mas acho que os petistas, em geral, precisam parar de brincar de partido socialista, embora haja sinceros socialistas no PT.