A coisa é quase pavloviana: "espiritual" é bom, generoso, elevado; "materialismo" é feio, grosseiro, superficial
Uma nota recente sobre a busca de uma espiritualidade laica pelo Partido Verde, somada a um artigo publicado no meio do ano na revista Free Inquiry, intitulado “Repackaging Humanism as ‘Spirituality'” (“Reembalando o Humanismo como ‘Espiritualidade'”) acabou chamando minha atenção para (mais uma) das armadilhas semânticas armadas pelo condicionamento cultural religioso: o tabu em torno da palavra “materialismo”, e o senso de superioridade moral e estética umibilicalmente ligado a qualquer coisa “espiritual”.
A coisa é quase pavloviana: “espiritual” é bom, generoso, elevado, faz sorrir; “materialismo” é feio, grosseiro, superficial, traiçoeiro; dá um nó nas entranhas. Mas, como já dizia Carl Sagan, não deveríamos pensar com as entranhas. Daí: qual, exatamente, o problema com o materialismo?
Antes de mais nada, vamos limpar um pouco a atmosfera e distinguir entre o que poderíamos chamar de “materialismo moral” — a ideia de que a meta suprema da vida humana é juntar joias, terras, dinheiro — e o que chamarei de “materialismo ontológico”, a ideia de que matéria e energia (no sentido técnico usado pelos físicos, não no vago sentido místico) são a base fundamental de tudo o que existe.
Que o materialismo moral é uma aberração já se sabe desde, pelo menos, que Aristóteles definiu a distinção entre meios e fins: riqueza é um meio. Que muitas pessoas façam de sua acumulação um fim em si mesmo é uma distorção grave, mas que de modo algum afeta exclusivamente os materialistas ontológicos, muito pelo contrário — veja-se, por exemplo, o sucesso dos cultos da prosperidade que, bem, prosperam por aí.
O que acontece é que muita gente vê o materialismo moral como uma espécie de consequência lógica do materialismo ontológico: se fulano não vê nada no Universo além de matéria, vai o raciocínio, então fulano obviamente só dará valor a coisas materiais.
Sim. Claro. Óbvio. O que essa linha de pensamento deixa de lado, no entanto, é que ao destruir a distinção entre espiritual e material, o materialismo ontológico passa a incluir, entre as “coisas materiais”, itens como amor, amizade, prazer estético, cultura… Tudo isso passa a ser formas de manifestação da matéria. Amor provocado pela atividade de glândulas e neurônios não é menos amor do que o provocado pela comunhão de almas (de fato, “comunhão de almas” não passa de uma metáfora para “glândulas e neurônios”).
Restam as objeções de que a matéria é “bruta”, “grosseira”, e de que ver o próximo como um saco de moléculas ambulante é muito menos digno do que vê-lo como um espírito criado à imagem e semelhança de Deus.
Quanto à primeira objeção, ela é fruto de puro preconceito. Vem de se imaginar, quando se evoca a palavra “matéria”, uma pedra, um cocô, ou um tijolo. Mas rosas e beija-flores são matéria, também, assim como as delicadas nuvens de luz e gás fotografadas pelo Hubble no espaço entre as estrelas.
Quanto à segunda objeção (e pondo de lado a questão de qual descrição tem maior conteúdo de verdade objetiva), ela ignora o fato de que na visão materialista todos somos sacos de moléculas ambulantes, e de que só temos, para consolar nossas aflições, uns aos outros — e nada mais. Essa constatação, se feita de modo sincero, me parece mais capaz de conduzir a um estado genuíno de humildade e irmandade universal do que o mito de que somos todos “filhos do dono”, e me respeite senão papai te enche de porrada.
Enfim, não me parece que precisemos de uma “espiritualidade laica”, e sim de mais materialismo laico. Mas essa é só a minha opinião.
Carlos Orsi
Jornalista e escritor, com mais de dez livros publicados. Mantém o blog carlosorsi.blogspot.com.