Nikolai Leskov, um escritor de muitas leituras

por Gustavo Melo Czekster (21/12/2012)

Leskov ingressa nas casas e nas vidas dos seus leitores

"A Fraude e outras histórias", de Nikolai Leskov

“A Fraude e outras histórias”, de Nikolai Leskov

Quem admira a arte da fotografia, sabe que existem fotógrafos capazes de retratar somente a superfície, o aparente, aquilo que está diante dos olhos. No entanto, existe uma categoria especial de fotógrafos: aqueles que conseguem colocar alma na transposição da imagem, agregar-lhe textura, sabor, imanência. Tais fotos atravessam os tempos sempre com o viço do recém-nascido; não se tornam datadas, mudam de sentido com o passar dos anos e tornam-se inesquecíveis para aqueles que a contemplam.

Da mesma forma, existem escritores que contam histórias e outros capazes de tirar um retrato fidedigno da sociedade e do tempo em que viveram. Quando conjugam as duas características, eles se tornam, ao mesmo tempo, cronistas e representantes de um estilo literário. É o caso de A Fraude e outras histórias, de Nikolai Leskov, cuja obra está sendo lançada no Brasil pela Editora 34 em alentadas traduções direto do russo e com o acréscimo precioso de ensaios e estudos críticos.

Leskov era muito conhecido no Brasil por ter sido usado como base para o famoso ensaio “O narrador”, de Walter Benjamin. Com o lançamento da sua obra, é possível entender o motivo que levou Benjamin a se fascinar por ele, assim como justificar a grande e declarada admiração que Tchekhov possuía pelo seu trabalho.

Em carta para Leskov, Leon Tolstoi afirmou: “A verdade pode realmente ser mais emocionante do que a ficção, e você com certeza é um mestre desta arte”. Esta declaração é uma pequena síntese dos contos revelados neste livro, que são seis: “Kótin, o provedor, e Platonida”, “Águia Branca”, “A voz da natureza”, “A fraude”, “Alexandrita” e “A propósito da Sonata a Kreutzer”. Em todos eles, se destaca o mesmo traço: as situações são instantâneos da vida russa, narradas com uma vivacidade repleta de cores e sons, sem que isto prejudique o andamento da história.

Leskov é um cronista da vida miúda. Ao contrário de outros autores da época, preocupados em retratar o universal em detrimento da sociedade em que viviam, Leskov ingressa nas casas e nas vidas dos seus leitores. Senta-se na sala e, com ouvidos indiscretos, relata confissões e medos. Invade os quartos e conta segredos e traições dos casais. Em um canto da cozinha, diverte-se com as tragédias em que as personagens encontram-se enredadas. Com um olhar cautelosamente distante, ele vê as lágrimas delas e chega a colocar a mão no ombro para apoiá-las, mas sem interferir na história, sem condescendência e sem piedade.

O escritor abre mão da correção e da fluência do texto em favor da verossimilhança de cada voz narrativa. Às vezes, seus diálogos parecem se prolongar sem nenhum motivo definido, mas a intensidade das personagens acaba dando substância para a história. Impressiona como o controle da cena descrita passa pela voz da personagem: percebe-se, em alguns contos baseados na área rural, que a narrativa flui com palavras mais simples, imagens mais concretas, situações mais claras e divisíveis, como se o narrador tivesse o léxico reduzido de um habitante das pradarias russas. No entanto, Leskov também vai para a cidade e, então, a sua narrativa ganha palavras duplas, situações ambíguas e um grande intelectualismo. Existem vários narradores, pois o autor russo adapta cada situação para a personagem nela envolvida e, assim, uma moça que tira a roupa diante do leitor tem a voz quase diáfana da pureza, enquanto o velho e conspícuo patriarca da família ansioso por vê-la despida e tirar vantagem sexual ganha características bruscas e selvagens. A unir todas estas vozes narrativas, está o ser humano, material do qual o autor se apropria e dá voz.

A Fraude e outras histórias é um bom modelo da versatilidade narrativa de Nikolai Leskov. Ele consegue alternar histórias que se assemelham a um melodrama, pois misturam tragédia e comédia (caso de “Kótin, o provedor, e Platonida”) com um conto de natureza fantástica entremeado com as regras insondáveis do funcionalismo público, ao estilo de Guy de Maupassant (como ocorre com “Águia Branca”), relata uma história popular que se passa na zona rural (“A voz da natureza”) e encerrando com um inquietante conto em que se toca a questão feminina na Rússia da época (“A propósito de A Sonata a Kreutzer”). Graças a tamanha habilidade no trato com as personagens, a leitura de Leskov gera as mais diferentes emoções. Não é nada difícil que um mesmo conto conduza o leitor às lágrimas em determinado momento e, menos de duas páginas depois, o faça rir sem parar. Da mesma forma, uma história pode soar fria como a neve e, em seguida, revestir-se de inusitado calor humano.

Leskov também possui uma visão social. Por lidar de forma direta com as mais diferentes camadas do povo russo, os contos revelam a hipocrisia das instituições sociais. A família não é uma entidade pura, e sim um organismo em que as piores mazelas e defeitos de caráter encontram ressonância. Aqueles que se dizem os mais religiosos são os mesmos que, no oculto dos seus lares, praticam atos iníquos e vergonhosos. O funcionalismo público está repleto de problemas de corrupção, assim como os políticos existem para defender somente seus interesses. Perante a sociedade, as mulheres são tratadas como damas de respeito, mas, longe dos olhos dos outros, ela se tornam objeto de violência doméstica. Tais situações são atemporais, e ocorrem até os dias de hoje. Atrás de um verniz leve propiciado pela voz das suas personagens, Leskov bate de forma geral na sociedade russa, não envidando esforços para denunciar o seu cinismo.

Um outro fator de interesse é descobrir as inúmeras referências intertextuais feitas por Leskov, tanto a autores russos que admirava como a escritores de outros países, caso de William Shakespeare, Louvet de Couvrai e Adam Mickiewicz. Diante da facilidade com que escreve, o escritor russo elenca frases partidas de outras histórias, dramas vividos por personagens alheias e nomes de escritores que abordaram o mesmo assunto, gerando uma colcha de retalhos ficcional que concede ainda mais relevância para a sua narrativa, como se estivesse inserindo o drama das personagens em um universo ficcional mais vasto.

Como moldura ideal para as paisagens e situações retratadas por Nikolai Leskov, o livro contém uma explicação sobre o momento da produção dos contos e dois breves ensaios, um por Denise Sales e outro por Elena Vássina. Normalmente, ensaios no final de livros flertam de forma exagerada com o academicismo e constituem algo que só atrai o olhar mais teórico do leitor interessado nesta nuance. No entanto, no caso de A Fraude e outras histórias, eles são excelentes e abrem novas possibilidades de leitura e interpretação dos contos pelos quais o leitor acabou de passar. São escritos com muita fluidez e cuidado, contextualizando a obra do autor e a forma com que se articula com outras obras do período e com as situações históricas vivenciadas pela Rússia de então. A fruição completa das narrativas de Leskov passa necessariamente pela leitura dos ensaios que encerram o livro.

Retornando à frase de Tolstoi, pode-se dizer que Nikolai Leskov é um mestre na arte de criar vida dentro do texto literário. Sua prosa atrai desde o leitor que deseja uma história descompromissada e rápida até aquele que exige maior desafio e qualidade do fazer literário, transformando a obra de Leskov em uma experiência sem igual, pois o leitor interage com a história como se estivesse vendo o drama se desenrolar na sua frente. Sem se importar com a estrutura do texto, atentando somente para a voz das personagens e para a sua verossimilhança interna, o escritor alterna os estilos e temas literários, concedendo às histórias um caráter pícaro e universal. Graças à capacidade de fotografar o universal que mora no interior das casas russas e transformá-lo em palavras, Nikolai Leskov é um escritor capaz de povoar um mundo.

::: A Fraude e outras histórias :::
::: Nikolai Leskov (trad. Denise Sales) :::
::: Editora 34, 2012, 224 páginas :::
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Gustavo Melo Czekster

Autor dos livros de contos Não há amanhã (2017) e O homem despedaçado (2011). Doutorando em Letras pela PUCRS.

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