É preciso enxergar as minúcias narrativas como índices menores de todo um paradigma do romance
1.
Poucos romances no Brasil nos últimos anos alcançaram o nível de divulgação dado ao novo livro de Daniel Galera, Barba ensopada de sangue. Os poucos que atingiram repercussão semelhante foram beneficiados por polêmicas extraliterárias, como as já tradicionais controvérsias da premiação do Jabuti, ou pelo prestígio do autor para além de sua atuação como romancista. Não foi à toa: grande aposta da Companhia das Letras, a obra foi anunciada e distribuída aos quatro ventos, gerando resenhas o mais das vezes favoráveis – que serão aqui comentadas em seu devido tempo.
Se por um lado o sucesso de Galera é prova de que a diligência de uma editora pode render resultados midiáticos mesmo para um gênero considerado em decadência por muitos, por outro é índice da rarefação do debate estético nacional, muito fraco se compararmos, por exemplo, com o de nossos vizinhos do Cone Sul. Parece que se esperava muito um “grande romance” que viesse redimir a mal disfarçada insipidez da maior parte dos títulos lançados no Brasil nas últimas décadas – que servisse de baliza inevitável, definidor de uma geração.
Diante desse quadro, a aposta em Galera não era nada injustificada – eu mesmo alimento muitas expectativas em relação à sua carreira, como já havia apontado na resenha da Granta. Muito embora seu romance anterior, Cordilheira, seja eivado de más escolhas e clichês, Mãos de cavalo havia sido uma obra promissora, especialmente devido às habilidades estilísticas do autor. Capaz de escrever belos períodos sem enfeitá-los demais, Galera escreveu então um romance que apreendia justamente as dificuldades dos narradores contemporâneos brasileiros, presos entre a nostalgia de um tempo em que as coisas pareciam ter um sentido, ainda que difícil de precisar, e um presente que falhou em entregar mesmo a pequena esperança de realização de outrora.
A pergunta que se pode fazer é se Barba ensopada de sangue (doravante Barba) entrega, de fato, a maturação final dessa e de outras questões. Para poupar o leitor desinteressado das questões críticas de fundo mais acadêmico, começo respondendo que o romance representa ao mesmo tempo um passo além e um passo atrás: se temos aqui um domínio do gênero ainda não visto na obra de Galera, capaz inclusive de criar momentos de bela gratuidade narrativa (mais sobre isso adiante) sem comprometer o todo da obra, as questões levantadas em Mãos de cavalo, em especial as concernentes à situação do narrador brasileiro contemporâneo, permanecem indefinidas e, em certo sentido, sofreram uma inflexão.
Resumindo o que será exposto abaixo em maior detalhe, Barba retoma a temática da falta de lugar no mundo, presente em Mãos de cavalo, mas o que neste era retorno a momentos definidores da formação do personagem (no caso, a infância e a adolescência, servindo de contraponto ao rotineiro e entediante da vida adulta), aqui se dilui em um atavismo herdado a partir de um trauma familiar. As pequenas aventuras do romance anterior, fontes de significado ainda que rarefeito, aqui se transmutam em uma busca descontínua e frustrada pela própria identidade, para a qual mesmo a confrontação física não oferece heroísmo possível. Recomenda-se entusiasticamente a leitura deste e de outros livros de Galera, mas com a consciência de não podermos esperar dele um “grande romance”, porque seus romances são índices de uma época impossibilitada de grandeza.
2.
O livro se divide em três partes, cada uma com um sentimento característico mais acentuado, encimadas por um pequeno prólogo cuja interpretação varia à medida que se avança na leitura. O enredo, já anunciado no primeiro capítulo, publicado na Granta com o título de “Apneia”, envolve a investigação que o personagem principal, não nomeado o romance inteiro, realiza sobre o assassinato de seu avô, passado quarenta anos antes na pequena cidade de Garopaba, no litoral catarinense. A maior parte do romance se passa aí, e o primeiro mérito de Galera deve ser assinalado: a cidade se apresenta de modo muito real. À diferença de boa parte dos romances contemporâneos, que parecem procurar de toda forma a falta de referências e construir cidades genéricas como cenário, Barba nos permite conhecer toda uma “fauna local”, mais ou menos integrada ao seu meio.
O rapaz em busca da verdade sobre o avô é percebido e tratado como estrangeiro por inúmeros motivos: é gaúcho, suas perguntas sobre o assassinato longínquo causam visível desconforto aos habitantes, é circunspecto e, por fim, tem uma doença rara que o impede de reconhecer rostos, inclusive o seu e o de familiares. Isto poderia ser interpretado facilmente como uma muleta narrativa – e de fato o é – para situar um personagem com dificuldades de se relacionar e ter empatia pelos outros ao seu redor, mas Galera tira bons resultados do inusitado, especialmente em passagens tragicômicas de falta de reconhecimento.
De todo modo, cada vez mais se percebe na narrativa brasileira um problema quando se faz uso do método de centralizar toda uma obra em um único personagem. Não é uma regra, mas quando se faz uso do vocabulário realista para compor um romance é esperado que os personagens sejam apresentados de modo mais interativo do que solipsista. Com frequência, muitas obras têm investido na criação de fortes “pontos de vista”, com maior ou menor apelo e/ou originalidade, transformando a experiência narrativa em uma versão menos interessante de Quero ser John Malkovich: tudo a que o leitor tem acesso são os pensamentos, as ações e as visões de um único personagem, e carecemos então do “outro lado”, ou seja, o que outros personagens têm a dizer, literalmente ou não, sobre o “herói” desses romances. Talvez isso seja um traço de época, talvez apenas uma implicância minha, mas divago.
Barba apresenta uma espécie de consciência desse exagero, ao colocar em notas de rodapé as visões e as falas de outros personagens sobre o protagonista, mesmo que em poucos momentos. Nesses casos há um esforço (em algum sentido até desnecessário) de impedir a contaminação do discurso alheio pelo forte compasso do narrador, presente em cada passo da obra; cada personagem fala de uma forma nessas notas: revelações, enganos, esperanças e exageros ajudam a compor um quadro imperfeito sobre a pessoa que temos acompanhado e que não nos oferece muito para cogitarmos sobre sua profundidade.
Não é à toa que a grande tópica do romance está na descontinuidade: suicídio, impossibilidade de reconhecer rostos, namoros interrompidos, promessas não cumpridas, etc., confluem para um cenário de aspecto pouco alentador. A sugestão forte que emerge desse quadro de interrupções é a incapacidade de o protagonista reconstruir sua ligação com o passado, agora que seu pai morreu e sua tarefa, autoimposta e não compreendida até mesmo por ele, se afigura até mesmo indesejável.
3.
É raro ver, quando se vê, um comentário favorável que não se assemelhe a press releases, feitos metade por educação, metade por falta de crítica. Das três principais resenhas que li de Barba, duas foram favoráveis e, via de regra, dizem pouco sobre o livro. Ubiratan Brasil apresenta o enredo e comenta de modo acertado a qualidade estilística presente no romance de Galera, embora não vá mais fundo em seus detalhes. Beatriz Resende, por sua vez, investe em falar do “vazio” e do “horror” que o romance evoca – embora estejam presentes, não parecem ser suficientes para tratar da especificidade do livro. Ou seja, as resenhas são genéricas por não tratar do que o livro tem de diferente, como lê-lo representaria um ganho ao leitor que nenhum outro livro que tratasse dos mesmos temas poderia – e os temas do problema de identidade e da busca por uma verdade oculta há muito tempo não são pouco presentes na literatura de todos os tempos.
Curiosamente, o texto sobre o livro que mais me inspirou em comentar uma grande qualidade do livro, quase um princípio narrativo, foi a resenha negativa de Alfredo Monte. Vamos ao principal trecho:
De repente, percebe-se uma exasperação crescente com o relato, (…) porque cada personagem é descrita com minúcias inúteis, a aparência, o que veste, mesmo que depois desapareça sem deixar rastros na narrativa, assim como cada cenário, cada vale, cada morro.
Mas, principalmente, nos damos conta de que estamos lendo, a todo momento, afirmações como: “Compra uma cocada na banca da APAE, onde a renda é revertida para a instituição” (!?) ou “Carrega a mochila de acampamento com duas mudas de roupa, toalha, um sabonete, escova de dente” etc., “tudo dentro de sacolas plásticas” (!?).
Em suma, Monte reclama de coisas que não teriam função narrativa, o que constituiria parte fulcral para considerar Barba uma “caricatura de romance de fôlego”. Comentei acima sobre o que esperamos do estilo realista. É possível fazer uma história do romance do século XX a partir de como o autor contornou esse estilo que se tornou regra no século anterior. Procedimentos de vanguarda, pendor ao romance filosófico (em Thomas Mann, principalmente), apoio em formas anteriores (como a fábula e a parábola em Kafka ou a epopeia profundamente modificada em Joyce), dissolução das vozes narrativas (como em Faulkner), etc.
Tendo isso como pano de fundo, devemos considerar a seguinte hipótese interpretativa: haveria função narrativa nas “minúcias inúteis” e nas afirmações esquisitas como a da banca de cocadas da APAE? Ora, por um lado o excesso de minúcias pode ser um reflexo, dentro da narração, da forma pela qual o protagonista reconhece o mundo ao seu redor: incapaz de perceber identidades diretas e expressivas a partir das faces, recorre-se à miríade de possibilidades de distinção, transformando o evento de reconhecer em uma experiência ao mesmo tempo reveladora e estafante. Não seria difícil associar essa visão à nossa contemporânea dificuldade de construir identidades alheias, centrados que estamos em nossos respectivos cubículos virtuais de comunicação precária.
Por outro lado, ao meu ver até mais interessante, é preciso enxergar as minúcias como índices menores de todo um paradigma do romance: a presença constante de certa gratuidade narrativa, uma preferência por introduzir episódios desconectados do andamento do enredo, mas dotados de certa beleza e que passariam despercebidos em um relato objetivo sobre as ações do personagem. Boa parte do valor estilístico de Galera (já apontado por Ubiratan) está nessa liberdade de inúmeros trechos quanto à “finalidade do romance”. A citação é longa e se encontra na página 168, mas acredito funcionar para demonstrar o que penso aqui:
Quando está se aproximando do catamarã escuta gritos de alerta. Esbaforido e com os óculos embaçados, estica a cabeça para fora d’água e vê dois tripulantes na popa gritando e agitando os braços. Tira os óculos e olha ao redor tentando ver ou ouvir alguma embarcação vindo em sua direção ou talvez um boto ou sabe lá o quê. Um dos homens no catamarã gesticula para que ele se aproxime e aponta para alguma coisa na traseira do barco. Ele nada com cautela e ao chegar um pouco mais perto enxerga por cima das ondas um animal reluzente na plataforma de popa. É uma foca corpulenta, cor de grafite, com algumas manchinhas claras e escuras. Os homens estão rindo encantados com o mamífero desengonçado e bigodudo que troca de apoio sem parar nas nadadeiras. Chega a poucos metros do barco. Um dos homens diz que a foca estava ali quando eles acordaram e não dá sinais de querer ir embora. Eles acham que ela está com fome e o outro homem entra na cabine por um instante e retorna com um peixe pequeno. A foca dá uma olhada no peixe que o homem chacoalha sobre a sua cabeça, solta dois berros altos, fanhos e curtos que parecem ser de puro escárnio e após uma pausa dramática salta no mar com destreza e mergulha sem espirrar uma gota. Os três homens se olham sem saber o que dizer. Pergunta de quem é o catamarã e os dois começam a explicar que estão apenas cuidando do barco. O dono, um paulista que está dando a volta ao mundo, parou para resolver algo na cidade. A foca sai da água e crava a mesma posição de antes na plataforma de popa, dando um salto digno de uma ginasta. Trouxe um peixe grande na boca, pelo menos três vezes maior que o oferecido pelos anfitriões. O peixe se debate até que ela cansa de se exibir e o devora.
O episódio poderia ter sido pulado sem qualquer prejuízo à história ou mesmo à composição dos personagens. No entanto, há algo de fascinante em sua presença ali – ao mesmo tempo uma recepção imediata da natureza, seja dos bichos ou dos homens, e um exemplo vivo da incompreensão ou mesmo da frustração de não compreender. Não se sabe por que e como a foca foi parar no barco, não se sabe o que será que ocorrerá com o bicho depois da cena, não se sabe o que o dono do barco está fazendo, em última instância não se sabe por que a cena é descrita ali.
Essa gratuidade não é, forçando o trocadilho, gratuita. Na verdade, explicita um princípio de composição forte, no qual as passagens do protagonista pela cidade e seus pequenos eventos carecem de sentido último e não se explicam por sua própria necessidade. Barba ensopada de sangue é um livro que desiste de explicar o mundo, as motivações das pessoas e o que há (há?) de mais profundo no ser/estar na vida. Na impossibilidade de colocar lógica nos fatos e estabelecer prioridades (a criação de um enredo com começo, meio e fim tem por objetivo isso mesmo: dizer qual é a finalidade de algo), o que resta é prestar atenção e reconstruir a narrativa para além das ilusões realistas.
::: Barba ensopada de sangue :::
::: Daniel Galera :::
::: Companhia das Letras, 2012, 424 páginas :::
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P.S.: Também recém-lançado, o livro de ensaios de David Foster Wallace, traduzido por Galera e seu amigo Daniel Pellizzari, apresenta muito bem a obra do americano, que tem muitos pontos de contato com os princípios que orientam o autor de Barba. Recomenda-se a leitura conjunta.
Vinícius Justo
Mestre em Teoria Literária pela USP.
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