Em linhas gerais, o governo vem fazendo diagnósticos corretos da realidade do país e de seus desafios macroeconômicos.
O ano ainda não acabou, mas acho que já é possível tentar uma análise da primeira metade do mandato de Dilma Rousseff na presidência do Brasil. Em primeiro lugar, gostaria de remeter a alguns textos que podem balizar o que vai ser esta reflexão. Logo no início do governo Dilma eu apontei para dois fatores em análises aqui para o Amálgama. Um deles era a necessidade de Dilma se afastar do governo Lula, mais ou menos no sentido de deixar claro que “quem manda” no governo é ela, e não o ex-presidente e seu principal mentor político. Isso está no artigo “Dilma jogando Lula para escanteio“, que escrevi em 12 de janeiro de 2011, prevendo a “fritura” de Palocci, que viria a se concretizar em 7 de junho.
Outro fator é a nova marca que o governo Dilma iria tentar imprimir: o de ser um governo que consolidaria um país de classe média. Lula foi o presidente que governou para os pobres, Dilma tentaria se posicionar como a presidenta que transformou o Brasil num país majoritariamente médio-classista. Isso eu escrevi no artigo “Um governo mais para a classe média“, de março de 2011, para uma série do Amálgama que avaliava os primeiros meses do novo governo. (Os outros textos da série foram “O governo Dilma visto pela esquerda“, de Rafael Garcia, “Sob Dilma, pragmatismo econômico dá lugar à ideologia“, de Felipe Salto, e “Ana aos leões“, de Guilherme Scalzilli.)
No meu artigo, eu apostava que a virada em direção à classe média, setor econômico meio abandonado no governo Lula, iria se consolidar no governo Dilma. Àquela época, isso era mais uma esperança do que uma constatação. De lá pra cá, o governo se consolidou de maneira bastante convincente. A ponto de o marqueteiro que fez a campanha vitoriosa de Lula em 2006, Dilma em 2010 e Haddad em 2012 apostar numa reeleição da presidenta em primeiro turno em 2014. Esta tudo nesta interessante entrevista dada ao jornal Folha de São Paulo. Hoje dá pra dizer o tal governo para a classe média é mesmo a estratégia e a principal marca da gestão de Dilma Rousseff.
O que demonstra visão estratégia e inteligência política. O principal risco que ameaçava o PT ao final do governo Lula era ver o sucesso do combate à miséria cavar a sepultura eleitoral do próprio PT. A imagem seria mais ou menos a seguinte. O governo Lula se empenhou em amainar a dura vida dos pobres, que eram a grossa maioria da população brasileira desde tempos imemoriais. Políticas de transferência de renda, aumento real do salário mínimo e manutenção da estabilidade de preços garantiam o sucesso em tirar amplos contingentes da miséria extrema e lançá-los à tal “nova Classe C”, que é na verdade uma mudança de país extremamente pobre para país pobre simplesmente.
Ao mesmo tempo, o governo Lula não descuidava de manter satisfeita a elite econômica (industrial, financeira e do agronegócio). Ao contrário do medo atávico que foi sempre cultivado pela imprensa oligárquica, o governo Lula não arriscou nenhuma medida que prejudicasse o lucro da grande indústria, dos bancos ou do setor agroexportador. Quem se sentia abandonado politicamente nos tempos de Lula era a classe média das capitais e dos grandes centros, o que explica em grande parte a sanha oposicionista de grandes setores da imprensa. A revista Veja e assemelhados não têm posição política, têm necessidades comerciais, e adotam a linha editorial que agrada seu público comprador. O risco que corria o PT era o de ver o país virar classe média e o eleitor cair nos braços do PSDB, o partido de representação política médio-classista por excelência.
É provável que Lula já contasse com todos estes fatores ao sustentar a candidatura de Dilma para sua sucessão. A genialidade política do ex-operário incluiu enfraquecer as instâncias do partido, que quase foi dizimado quando veio à tona o caso do valerioduto petista, e jogar aos leões os dois principais candidatos à sua sucessão: Palocci e Dirceu. Houve um tempo em que se dizia que Lula era meio que um boboca, enquanto Palocci era o inteligente que garantia o sucesso econômico do governo, e Dirceu o articulador que garantia apoio político. Ficou provado que Lula podia sobreviver politicamente sem os dois, e um dos fatores que levou o metalúrgico a terminar o mandato em alta (uma coisa meio sem precedentes na política brasileira desde, digamos, Getúlio Vargas) foi o fato de não ter candidatos à sua sombra.
O outro aspecto desta genialidade foi escolher para a sucessão uma candidatura sem vida própria, que dependeria totalmente dele, Lula, para se eleger. Mas que teria todas as condições de desenvolver um ótimo mandato, e virar a nau petista para o tal país de classe média, impedindo que o sucesso político de Lula jogasse o Brasil nas mãos do PSDB.
Hoje está claro que o plano deu certo. O governo Dilma é uma continuidade profunda do governo Lula, mas também apresenta pontos claros de ruptura. Eu não consigo descobrir se a tal ruptura que eu cantava lá no meu texto de janeiro de 2011 é efetiva ou é jogo de cena político. De uma coisa tenho certeza: as tensões internas são fortes entre Dilma e a turma de José Dirceu. Eu quase diria que o tal caderninho que Dirceu tinha com uma lista quase infinita de nomeados para todos os escalões do governo é bastante coincidente com a lista de gente que a imprensa está investigando e a Dilma está demitindo em suas inúmeras “faxinas”.
Essa ideia de um governo que não tolera a corrupção, que é uma mudança de imagem bem forte em relação ao governo Lula, faz parte do tal trânsito para uma política mais do agrado da classe média. A gente podia saber que o governo Dilma ia enveredar por esta linha quando ela foi visitar o pessoal da Folha de São Paulo, marcando uma aproximação do governo com a mídia tradicional com a qual o Lula nunca se deu minimamente bem. Ou quando ela deu declarações que indicavam que a política externa do Brasil ia se afastar do Irã.
Estas grandes linhas de mudança (política externa, relação com a imprensa e tratamento da corrupção entre os aliados políticos) são, digamos assim, uma mudança mais de discurso ou de imagem – sem implicações muito diretas na vida dos brasileiros.
As mudanças mais diretas estão sendo empreendidas na política econômica, na qual o governo Dilma vem provocando uma verdadeira revolução surda. Costuma se dizer que um país como o Brasil é um “transatlântico” econômico, no qual não é possível “dar cavalinho de pau”. (Se não estou enganado, a frase era de Delfim Neto.) Com dois anos em perspectiva, já podemos dizer que o governo Dilma colocou o Brasil no caminho de mudanças econômicas tão profundas quanto a abertura comercial da era Collor, ou a estabilização da moeda da era FHC, ou a retomada do crescimento e a distribuição de renda da era Lula.
Entre as grandes mudanças, podemos elencar:
* a redução dos juros básicos, de níveis em que o patrimônio se multiplicava rapidamente em aplicações financeiras de baixo risco (aplicações de renda fixa), para níveis em que se terá de arranjar jeitos de ganhar dinheiro novamente em atividades produtivas, como em países normais;
* a migração do financiamento da previdência de impostos sobre o salário para impostos sobre o faturamento, coisa que o governo teve a sabedoria de fazer aos poucos, de modo que todo mundo pode se adaptar com calma. A medida beneficia setores mais intensivos em mão de obra, e colabora para reduzir o tal custo Brasil e mitigar a transferência de produção industrial para a China;
* a retomada dos investimentos em infra-estrutura: não apenas o Minha Casa Minha Vida, mas os ambiciosos programas de investimento em hidrelétricas, portos, rodovias, ferrovias e aeroportos. Coisa que está parada no Brasil há quase 40 anos, e que causa boa parte dos transtornos que aperreiam a vida da classe média nas grandes cidades.
* o novo regime automotivo, que está ampliando e aprofundando os investimentos da indústria automobilística no Brasil, com profundos impactos em toda a cadeia produtiva;
* os embates na renovação das concessões de usinas elétricas que visam baixar a tarifa de energia, às custas das margens das empresas do setor e em benefício de todo o conjunto da economia;
A lista poderia aumentar um bocado mais.
Em linhas gerais, o governo Dilma vem fazendo diagnósticos corretos da realidade do país e de seus desafios macroeconômicos. E vem tendo grande capacidade gerencial de implantar mudanças significativas que apontam para um novo rumo. O novo rumo é de aumento geral do bem-estar da população, pequeno mas constante e, principalmente, consistente numa perspectiva de longo prazo.
Inúmeras armadilhas aparecem no caminho, com o desenvolvimento empreendido causando sérias ameaças aos direitos humanos e às minorias, e com a transformação econômica não sendo acompanhada de uma modernização política e de democratização institucional à altura. Também não está afastado o risco de que o país seja tragado por um aprofundamento da crise no hemisfério norte, ou ainda que o fantasma da inflação seja despertado por um erro na definição da taxa de juros (como na brilhante imagem que aparece em segundo neste post).
Mas temos avanços consistentes em relação às estruturas históricas que fizeram do Brasil o país do latifúndio e das oligarquias. Transformar nosso arcabouço cultural, econômico e institucional para uma configuração que seja mais funcional com um país em que a maioria viva em condições decentes de bem-estar é uma tarefa hercúlea: implica desmontar toda a estrutura que foi cuidadosamente montada para que pouquíssimos vivessem muito bem à custa do terrível desfavor da maioria absoluta.
É devagar (não sei se seria possível ser muito mais rápido), mas os dois anos de governo Dilma vão apontando um caminho consistente. Interessante que esse novo caminho seja tentado por alguém que na juventude acreditou que só era possível colocar o Brasil no rumo certo por uma via revolucionária. Décadas de derrotas políticas foram transformados num duro aprendizado.
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