Resenha das biografias de Carlos Marighella, Luiz Carlos Prestes, Carlos de Freitas e Vlado Herzog
“Os brasileiros estão diante de uma alternativa.
Ou resistem à situação criada com o golpe de 1º de abril
ou se conformam com ela. O conformismo é a morte.”
Carlos Marighella, 1965
“Não tenho nada a esconder. Não sou um criminoso.”
Vlado Herzog, 1975
1.
Na única vez que Carlos Marighella foi à casa de Vlado Herzog, quando este estava em Londres, no final de 1968, o guerrilheiro encontrou apenas a mulher de Vlado, Clarice. Marighella e sua companheira, Clara Charf, passaram um curto período na residência, sem que Clarice soubesse suas identidades verdadeiras. Poucos anos depois, Vlado ficou sabendo que sua casa servira de ponto de encontros clandestinos de integrantes da luta armada, e não ficou encantado. Esse episódio é narrado no livro de Audálio Dantas, As duas guerras de Vlado Herzog. O jornalista da TV Cultura ficaria ainda mais arrepiado, escreve Audálio, se soubesse que fora Marighella, o “inimigo número um” da ditadura, quem estivera em sua casa. Os danos para sua esposa, caso o regime tivesse estourado o ponto, teriam sido com certeza bem graves.
Vlado e Marighella representam duas faces distintas da resistência à ditadura militar brasileira. Não apenas por suas próprias pessoas e atos, mas pelo tipo de movimento que inspirariam – Marighella, antes de ser assassinado em 1969; Vlado, após ser assassinado em 1975. Um representou como poucos a resistência civil, liberal, ao regime ilegítimo de 64; outro representou melhor que ninguém a resistência armada. A história deste está contada no imprescindível livro do jornalista Mário Magalhães, Marighella: O guerrilheiro que incendiou o mundo. Ao contrário das obras antes mais famosas abordando o guerrilheiro, escritas por Frei Betto e por Emiliano José, a biografia de Magalhães não foca quase que exclusivamente no período da ditadura militar – a sua é uma história que vai, sempre com fôlego, dos primeiros anos de Marighella, na Bahia, até a emboscada que enfim custou sua vida, em São Paulo. Também ao contrário dos dois autores citados, Magalhães em nenhum momento resvala para a mistificação – nem de Marighella, nem do PCB, nem da esquerda em geral. Assim, o meu maior temor em relação ao livro felizmente não se concretizou. (Nem preciso dizer que não temia que Mário Magalhães aparecesse com racionalizações para os crimes da ditadura.)
É necessário atentar para a trajetória pré-64 de Marighella para entender melhor sua atuação pós-golpe. Por exemplo: para ter a real dimensão do significado de sua ruptura com Luiz Carlos Prestes e o PCB, importa saber o quanto ele havia se dedicado e mesmo sacrificado no passado por ambos. Mário Magalhães conta que, no período da Constituinte de 1946, onde Marighella era parlamentar, este repassava grande parte de seu salário para o Partido Comunista – que na verdade era quem sacava o dinheiro e lhe dava alguma sobra. Aos 34 anos, Marighella preferia não gastar dinheiro em coisas como cinto para as calças e moradia própria – dividia um apartamento de quatro quartos no Catete com cinco pessoas. Isso sem falar nas torturas que havia sofrido da ditadura varguista.
As sérias discordâncias entre Marighella e Prestes começaram antes do golpe militar. Logo quando da renúncia de Jânio Quadros, o revolucionário baiano convenceu-se de que o Partido definitivamente não entendia de “fazer avançar a revolução”. Na conferência nacional do PCB em 1962, ele partiu para o ataque: Prestes existia para os comunistas como um totem, era autoritário no combate a quem pensava diferente e, talvez pior de tudo, defendia àquela altura uma acomodação com João Goulart – que Marighella via como um presidente não suficientemente comprometido com a revolução social.
Essas críticas de Marighella a Prestes tinham alguma procedência. Mas também é preciso perguntar se ele não estaria sendo irrealista em suas expectativas de tolerância ao dissenso vinda de um dirigente partidário, ainda mais de um partido que glorificava o “centralismo democrático” de inspiração soviética. A resposta é sim, Marighella estava sendo irrealista. Mas esse estava longe de ser o maior exemplo de sua ingenuidade e de seu choque com o bom-senso e com a realidade. Choque com o bom-senso já manifesto em sua descabida eleição do governo Jango como um alvo prioritário, no momento em que o presidente recebia a toda hora tiros de canhão da direita. A exceção era sua admiração pelo ministro da Casa Civil, Darcy Ribeiro, que Prestes, por outro lado, via como radical demais.
Como resultado das manobras de Prestes, no final de 1962 o papel de Marighella no Comando Central e na Executiva do PCB passou a ser apenas simbólico. Em 1963, após se encantar em uma viagem à China maoista, ele escreveria em Novos Rumos, veículo comunista, que a chave para a revolução brasileira estava nas massas camponesas. Marighella respeitava o espírito radical de Francisco Julião e suas Ligas Camponesas, utilizadas, desde 1961, como um dos braços da ditadura cubana na região – Havana patrocinou a compra de fazendas para a Liga treinar possíveis guerrilheiros; na teoria diversionista de Fidel, “os Estados Unidos não poderão nos atacar se o resto da América Latina estiver em chamas”. (Além dos quatro livros analisados aqui, minhas outras fontes de informação para esta resenha são basicamente os dois primeiros volumes da série de Elio Gaspari sobre a ditadura brasileira.)
Enquanto Prestes se deixava utilizar como um veículo dos interesses da União Soviética para a América Latina, Marighella preferiu se ligar ao projeto mais inflamatório de Cuba. Na batalha constitucional pela posse de Jango, Preste anotou que Marighella, “ao invés de colocar como questão central as reformas de estrutura [colocava] o problema de luta por um novo poder”, socialista.
Após o golpe militar, como se podia esperar, a aversão de Marighella por meros trabalhos de conscientização e oposição política apenas aumentou. “Para fazer a política convencional”, disse ele, “distribuir material e se reunir às escondidas, prefiro vender gravatas”. Em seu livro de 1966, A crise brasileira, defendeu sem meios termos a insurreição armada: “Trata-se do caminho não pacífico, violento – até mesmo da guerra civil. Sem o recurso à violência por parte das massas, a ditadura será institucionalizada por um período de maior ou menor duração”. Um artigo de sua autoria, no final daquele ano, mostrava que sua relação com o PCB estava por um fio: “Desejo tornar público que minha disposição é lutar revolucionariamente junto com as massas e jamais ficar à espera das regras do jogo político burocrático e convencional que impera na liderança [do Partido]”.
Marighella e a ditadura iam radicalizando suas posições com o passar do tempo. Em 1965, quando ainda havia esperança de que a ditadura fosse durar no máximo dois ou três anos, Marighella chegou a colocar como ponto central da oposição “o problema das liberdades democráticas”. Com a posse de Costa e Silva em 1967, a solução passou a ser “conquistar o poder pela violência e destruir o aparelho burocrático militar do Estado, substituindo-o pelo povo armado”. O revolucionário desancava o projeto de “redemocratização” (ele sempre colocava o termo entre aspas) dos “políticos burgueses”. Em julho de 1967, participou em Havana da Conferência da Organização Latino-Americana de Solidariedade a Cuba (Olas), mas não estava representando o PCB, que aliás não havia sido convidado por Fidel – o ditador, após ter se desiludido com o “nacional-revolucionarismo” brizolista, estava apostando no potencial revolucionário de gente como Marighella. Em meados de agosto daquele mesmo ano, o PCB resolveu puni-lo com a “pena de suspensão do exercício de todos os cargos partidários em que estava investido”.
Sua tese da “guerra revolucionária” almejava tornar inevitável a luta armada. A tese foi aproveitada pela ditadura, para quem, como frisou Elio Gaspari, “o regime constitucional deixava de ser um constrangimento, tornando-se um estorvo”. Com o AI-5 implantado no final de 1968, o regime passou para a ditadura escancarada e Marighella passou de uma vez para as armas. No ápice da criminalidade estatal contra a guerrilha urbana (a vez da guerrilha rural chegaria pouco depois), Marighella perdeu a vida, junto com vários dos que haviam aderido ao projeto de luta armada. As “massas” nunca apareceram para lutar com eles. E, no final das contas, foram “políticos burgueses”, setores liberais, a execrada esquerda reformista (inclusive comunistas, que se desentenderiam com Prestes) e mesmo alguns intelectuais conservadores que agiram decisivamente para derrubar a ditadura, que também derrubou a si mesma.
2.
Quando ainda estava em Cuba participando da Olas, Marighella já deixara claro que, se estava se distanciando do PCB, não via com bons olhos a criação de mais um partido político. “Não saí de um Partidão para entrar num partidinho”, disse. Era uma indireta bastante direta ao Partido Comunista Brasileiro Revolucionário (PCBR), criado a partir de uma dissidência do PCB. Marighella e seus simpatizantes no Partidão, ao saírem, fundaram o Agrupamento Comunista, que tinha uma ideia de revolução descentralizada, com diversos núcleos planejando e executando ações com autonomia, sem o grupo dirigente central ter necessariamente que estar a par de tudo. No primeiro semestre de 1969, o Agrupamento enfim viraria a célebre Aliança Libertadora Nacional (ALN). No final do mesmo ano, como se sabe, Marighella viria a ser executado e a ALN, praticamente extinta.
Apesar das diversas mutações e reorganizações do grupo de Marighella, nem o Agrupamento nem a ALN jamais conseguiram ser organizações de massa. Com seu discurso radical, que sequer cogitava coalizão com setores mais moderados, com sua afobação e amadorismo, a Aliança mais derrotou a si mesmo do que efetivamente foi derrotada pela ditadura.
Para começar, a ALN não possuía contraespionagem, e estava infestada de espiões. Mário Magalhães relata que, “logo que o primeiro treinamento [do grupo] terminou, um relatório minucioso aterrissou numa mesa do Dops.” Ainda no começo de 1969, todo o núcleo brasiliense da ALN foi para o xilindró após a denúncia de um dedo-duro, o que praticamente zerou as chances de sucesso em médio prazo de uma guerrilha em Goiás. Em maio de 1969, o SNI já sabia todos os detalhes da ligação de Marighella com Cuba, tendo contado com as informações de um esquerdista que virou a casaca.
Contra as tradicionais pregações marxistas-leninistas do PCB, Marighella gostava de dizer que “ortodoxia é coisa de religião”. Mas ele tinha a sua própria. “A ação faz a vanguarda”, defendia o documento de fundação do Agrupamento Comunista, sublinhando que “a mesa das discussões hoje em dia já não une mais os revolucionários”. Na sua teorização sobre guerrilhas, mandou às favas as peculiaridades da situação brasileira e adaptou para cá pedaços de manuais maoístas e vietnamitas. Falando em Vietnã, um dos objetivos explicitados por Marighella era “atrair as forças militares norte-americanas” para destroçá-las. Empáfia demais para quem não aguentaria sequer a repressão de um pequeno contingente das forças de segurança brasileiras.
Imediatamente após o início da luta armada, já havia seríssima controvérsia no interior da esquerda. Se é verdade que o AI-5 empurrou mais gente para os braços da guerrilha, no mesmo período Marighella já era repreendido por companheiros como Rolando Farti e Agonalto Pacheco, que criticavam o excesso de assaltos praticado pelo Agrupamento. Cícero Vianna, outro militante, contou a Mário Magalhães que havia queixas de que Marighella “era um caudilho, que estava autoritário demais”. Os assaltos, que começaram com bancos como alvos, para arrecadar fundos para preparar a guerrilha rural, depois passaram a ter o mero objetivo de manter a ALN viva e, enfim, degeneraram até chegar a absurdos como o assalto de uma fábrica de sorvetes em Belém – chamando a atenção da repressão logo para uma área onde Marighella esperava desencadear em breve a guerrilha rural.
Meses antes de morrer, Marighella já era muito mais um mito, inspiração para certa esquerda e fantasma a assombrar a ditadura, do que verdadeiramente uma ameaça existencial para a dita cuja – se é que um dia o fora. “Em meados de setembro [de 1969]”, escreve Magalhães, “a ALN vivia o seu apogeu.” 15 dias depois, ela seria enterrada. O choque de seu líder com a realidade saltava aos olhos. Ainda em setembro, diagnosticou que o país vivia “um clima semelhante ao de Cuba, nos meses finais da ditadura de Fulgencio Batista”. Um mês antes: “O ambiente na área urbana é de rebelião social”. Ninguém precisa ser um adepto da teoria da ditabranda para notar o delírio de uma análise como: “Poucas famílias brasileiras existem que não tenham a lamentar a prisão ou o assassinato de um de seus filhos”.
Os crimes praticados pelo Estado brasileiro colaboraram para acabar com a ALN. O fato diabólico sobre as torturas de militantes caídos em emboscadas é que muitas vezes elas efetivamente levaram a novos desbaratamentos, prisões e assassinatos. Mas o que isolou e definitivamente tirou a esquerda armada do tabuleiro foi mais seu modus operandi e projeto de país do que a violência da repressão. Como escreveu Elio Gaspari, “a violência do aparelho do Estado pode destroçar seus adversários, mas não destroça necessariamente seus objetivos.” E continua: “a luta armada fracassou porque o objetivo final das organizações que a promoveram era transformar o Brasil numa ditadura, talvez socialista, certamente revolucionária”.
A inspiração dos grupos armados não deixava dúvida. O PCdoB elogiava o execrável regime albanês como “destacamento avançado do socialismo na Europa”, e também tecia loas ao maoismo. A ALN se inspirou quase até o último minuto no fidelismo. O PCBR pregava: “Ao lutarmos contra a ditadura devemos colocar como objetivo a conquista de um Governo Popular Revolucionário e não a chamada ‘redemocratização’”. Isso simplesmente não tinha muito eco na sociedade como um todo, sequer entre a oposição à ditadura. Ao contrário, por exemplo, da Polônia nazista, nós não tivemos um movimento de contestação armado e democrático. Nossos militantes armados pareciam mais com os revolucionários ovomaltine de Itália e Alemanha Ocidental – que, por seu lado, foram competentemente combatidos por um Estado de direito, não por um Estado ele mesmo fora da lei.
Se Carlos Marighela nunca atraiu as massas, por outro lado ele arregimentou um bocado de intelectuais mundo afora, inclusive Jean-Paul Sartre – que lhe abriu as portas da prestigiosa Les Temps Modernes.
3.
Sobre os posicionamentos de Prestes durante a ditadura militar, o leitor pode consultar o novo livro de sua filha, a historiadora Anita Leocadia Prestes – Luiz Carlos Prestes: O combate por um partido revolucionário (1958-1990). Há uma boa exposição da crítica feita pelo histórico comunista à esquerda pré-64, que não teria se esforçado o bastante para construir uma ampla base de suporte popular para reformas sociais radicais, e da esquerda armada pós-64, que teria apostado em um caminho sem condições de sucesso.
Para ficar claro, o livro da senhorita Preste é bastante parcial. O Prestes incapaz de reconhecer culpas não aparece em suas páginas, nem o Prestes de golpes baixíssimos como o que permitiu a revelação por um veículo do PCB, em 1967, dos nomes civis de comunistas expurgados do Comitê Central, deixando claro que aderiam à luta armada – informação devidamente anotada pelos agentes da repressão. Além disso, o relato das contendas envolvendo Prestes tanto com militantes à sua esquerda (como Carlos Marighella) quanto à sua direita (como Armênio Guedes) é muitas vezes extremamente mesquinho, quase como se tivesse sido escrito pelo velho Prestes.
Apesar de tudo, a leitura é indicada. No geral, Prestes tinha razão em suas críticas à luta armada. Após o golpe, ele elencou a “derrota da ditadura reacionária” como objetivo natural e central dos comunistas, mas sem que, para tanto, fosse preciso pegar em armas. Pelo contrário, o que seria necessário era uma “luta por eleições livres”. Diretriz do Comitê Central do PCB, de meados de 1966, defendia a “conquista das liberdades democráticas”, dizendo que “o isolamento e derrota da ditadura é o desenvolvimento da luta de massas e da unidade de ação das forças antiditatoriais”. Marighella e demais inimigos dessa moderação diziam que a política do PCB não diferia muito da tática da esquerda liberal e do centro, e eles estavam certos, como reforçaria a orientação de Prestes para os comunistas participarem dos pleitos convocados pela ditadura, votando no MDB e desmoralizando o regime por meio de seus próprios processos.
Prestes tinha muitos defeitos, mas a ingenuidade não era o mais saliente de todos. Após vitórias eleitorais do MDB terem levado a ditadura a acertadamente apontar o trabalho às escondidas ou nem tanto do PCB como um dos responsáveis pelo fato, o subsequente aperto das regras eleitorais para favorecer a ARENA e fortalecer o regime dificilmente surpreenderam o quilometrado comunista. Que ainda assim acreditava na desmoralização gradual do regime.
Para Prestes, o papel do PCB dentro da “unidade de ação das forças antiditatoriais” seria organizar grupos operários, camponeses e a pequena burguesia urbana, adicionando como ideal que, após a derrubada da ditadura, essas classes estivessem “em condições de fazer prosseguir o processo e aprofundá-lo até que ele adquira um caráter revolucionário”.
Com a entrada em vigor do AI-5, alguém pôde ter esperado que Prestes fosse reavaliar profundamente sua posição, mas tal não foi o caso. Apesar do Comitê Central do Partido reconhecer que o Ato Institucional reduzia “a faixa das possibilidades de luta dentro da legalidade” – e, sendo assim, “as formas de ação clandestina ganharam maior importância” –, a aposta ainda era em formas não violentas, “novas formas de luta [que] brotarão da experiência das próprias massas”. Como exemplo dessas novas formas, citava greves desencadeadas “por cima das leis da ditadura”. Preste e o PCB, naquele momento, estavam sendo bastante prescientes, na antecipação de greves em massa que colaborariam para a desmoralização da ditadura. E estavam sendo ainda mais prescientes ao defender uma espécie de governo de transição (“governo das forças antiditatoriais”) que garantisse anistia geral, democracia, organização partidária e uma Constituinte.
A decisão do PCB de apoiar a participação de sua militância nas eleições parlamentares de novembro de 1974 se mostrou acertada. Para a oposição, o pleito foi um êxito: o MDB esmagou a ARENA nas urnas. Antes das eleições, o PCB havia advertido que, apesar de haver rachas internos no centro do regime brasileiro, não se podia no entanto imaginar que isso levaria o governo a uma crise profunda. Na verdade, levaria sim, mas não se pode culpar o Partido (ou qualquer outsider da época) por não ter a dimensão exata das divisões internas da ditadura.
A obra de Anita Leocadia mostra como, após vencer no seio do PCB a dissidência à esquerda, Prestes passou para o combate à “direita”, no que inicialmente teria sucesso. Estudar o quanto Prestes lutou contra essa segunda onda de dissidência é importante para compreender a maior parte de seus equívocos nos últimos anos de vida, além do seu amargo afastamento do Partido que encarnava como ninguém.
O cerne da nova disputa foi a defesa que alguns filiados ao PCB faziam de uma fase democrática após a ditadura; apenas após esta fase viria a fase socialista. Prestes achava que isso iria esmorecer os espíritos e jogar por terra todo o projeto revolucionário. Em suas palavras, tudo não passava de uma “tendência oportunista de direita”. O dirigente queria que o Comitê Central se decidisse de uma vez por todas se, em sua agitação e propaganda, o Partido iria apenas defender uma frente única antiditatorial, ou se, além disso, iria também levar às massas seu “programa revolucionário, anti-imperialista e antifeudal” e a necessidade da “conquista de um governo revolucionário”.
Isso não era perder completamente a noção de prioridade? Afinal de contas, o PCB poderia levar seu programa revolucionário às massas (e ser por elas julgado) em um ambiente mais propício, de regime com liberdade de expressão e eleições livres. Atrelar à defesa do fim da ditadura a defesa de um regime revolucionário seria apenas duas coisas: pregar aos já convertidos e afastar a esquerda moderada e o centro.
É provável que Prestes estivesse comprando briga apenas para eliminar um grupo ascendente no PCB, em um período em que sua liderança no partido começava a ser ameaçada para valer. Tivesse, ao invés desse grupo de “direita”, aparecido mais uma vez uma forte dissidência de extrema-esquerda, Prestes teria sem problema se aliado aos “direitistas” para eliminá-la, com fizera anos antes. Desta vez, no entanto, ele acabaria perdendo as rédeas do partido. Criticou o “oportunismo” daqueles comunistas que acreditavam numa abertura “sem participação das massas, por obra e graça dos próprios generais gorilas ou de seus patrões” – o que, até certo ponto, foi o que realmente aconteceu, ao tempo em que Prestes criticava o eurocomunismo antitotalitário e sua influência na esquerda brasileira.
Com a visão turvada, Prestes passou a adotar diversas posições pequenas, muito pequenas. Criticar os comunistas que elogiaram a “descompressão gradativa” de Geisel era uma coisa, mas daí a não ver mérito em nada que pudesse dar razão aos membros do PCB que o haviam posto de lado era um passo desnecessário – pelo menos se se tratasse de um indivíduo com o mínimo de humildade.
Não que ele estivesse sempre errado. Quando Anita Leocadia lamenta, como seu pai, que a ausência de empenho radical “descaracterizava o PCB como partido revolucionário, contribuindo para que se dissolvesse no meio da oposição liberal-burguesa à ditadura”, ela tem um bocado de razão. Da mesma forma, não se nega que termos como “compromisso nacional com a democracia” e “pacto nacional pela democracia”, empregados por Armênio Guedes, um adversário cada vez mais forte de Prestes no PCB, eram e continuam sendo expressões muito pouco comunistas. Guedes, aliás, chegaria ao cúmulo de escrever em 1979, no Voz Operária, a favor de “uma democracia política na qual convivam e floresçam correntes e partidos políticos diferentes”, um verdadeiro insulto ao ideário comunista, sem dúvida (no mesmo ano e no mesmo veículo, Anita Leocadia respondia a tal absurda defesa da “democracia burguesa”, defendendo por seu lado a “democracia socialista – a democracia mais completa e avançada que conhecemos”).
Mas o ponto é a cegueira autoinduzida de Prestes. A campanha das Diretas Já? Com certeza agradava aos “comunistas de direita”, mas Prestes criticava sua falta de organização (acho que ele estava pensando em instrumentalização) – “o povo sai dos comícios, vai para casa e acabou tudo”. Pura manipulação popular empreendida pela elite liberal. Em 1985, criticou o “pacto social” de Tancredo, dizendo não ver qualquer diferença entre este político e Paulo Maluf. A Nova República? Nada muito diferente em relação à ditadura. A emenda das eleições diretas passou por unanimidade? “Essa emenda por ora nos dá apenas a garantia do voto direto para a presidência, mas não diz quando. Sem dizer a data, não acrescenta muito”. Em 1986, apostou que a Constituinte iria ser mais reacionária que a de 1946. Tal previsão não se concretizando, Prestes se limitou a observar que o artigo 142 da constituição aprovada resguardava às Forças Armadas o direito de garantir a lei e a ordem. Chega a eleição de 1989. Prestes apoiará Lula de cara? Não, porque o dito cujo abrandara suas posições, se tornando bastante parecido com os infelizes comunistas que se sentiriam bem com um governo “capitalista democrático”. Apesar de ter apoiado Lula no segundo turno (“por falta de outra alternativa”), é bastante compreensível que Prestes tenha no final das contas se juntado mesmo a Leonel Brizola, o político de maior expressão a esbravejar contra os Estados Unidos e a defender a nacionalização de “empresas imperialistas”.
Devo dizer que a leitura do livro de Anita Leocadia Prestes é indicada ainda para as novas gerações verem como funciona uma mente comunista, uma mente respeitada e em atividade em pleno século 21. Uma autora comunista mesmo, não esses pretensos que, à mera indicação para um cargo de almoxarifado no ministério dos Esportes, já deixam de lado os planos de revolução. Há no texto da senhorita Prestes uma forte divisão entre “nacionalistas” e “entreguistas” – ou você está com os “interesses nacionais”, ou está com os gringos. A autora adota automaticamente termos como “atividades fracionistas”, para designar os atos daqueles que pensam diferente (no caso, diferente de seu pai), e “centralismo-democrático”.
E sua política de colocar a palavra democracia entre aspas não é das melhores. Ela coloca o termo entre aspas quando se refere ao Brasil pré-64 (com alguma razão, porque os comunistas não tinham liberdade de organização), mas quando fala do regime castrista ela é bem menos exigente. Aliás, não apenas isso. Como remédio para nossos problemas atuais, ela prescreve em sua conclusão que “cada vez é mais evidente que o socialismo será a única solução para os males do Brasil e da América Latina. Cuba socialista o comprova”.
Quando, à página 49, Anita Leocadia fala elogiosamente da campanha do PCB contra a invasão de Cuba, eu rabisquei do lado: “Vai falar da Tchecoslováquia?”. Escrevi por escrever. Ela não tinha por que fazê-lo, como não escreveu sobre a ajuda financeira que o PCB recebeu de Adhemar “Rouba Mas Faz” de Barros. Mas o fez. A página 151 menciona os “graves acontecimentos na Tchecoslováquia, que provocaram a intervenção soviética”. O leitor nem de longe imaginaria se tratar das medidas de liberalização que poderiam levar à democracia sem aspas. Na página seguinte, somos lembrados de que, na ocasião, o PCB “concedeu amplo apoio à União Soviética, apesar dos protestos de muitos setores da esquerda e do clima de intensa provocação anticomunista desenvolvido pela reação mundial”. Como diria Ivan Lessa, isso sim é que é folclore. Que coragem do PCB! Como se, em casos com o tcheco e o da gerontocracia cubana de hoje, a única postura razoável não fosse ficar do lado da esquerda antitotalitária e da direita.
4.
Carlos Marighella só teria sua organização de luta armada após o golpe militar e o rompimento com o PCB, mas um dos grupos que se mobilizaram antes foi a Organização Revolucionária Marxista – Política Operária (ORM-Polop). Formada basicamente por jovens intelectuais, a Polop também era crítica do PCB e propunha um movimento de massas que criasse o mais rápido possível um regime socialista no Brasil. O grupo combatia o que via como excessiva moderação de João Goulart. Logo após a revolução cubana, seus militantes foram à ilha e de lá voltaram convencidos de que o caminho brasileiro igualmente levaria ao socialismo. Após o golpe, pegar em armas foi natural.
Um dos líderes da Polop foi Carlos Alberto Soares de Freitas, codinome Breno. Ele seria um dos “desaparecidos” pela ditadura, tendo sumido em 1971 na infame Casa da Morte do Rio de Janeiro. Sua história foi pesquisada pela jornalista Cristina Chacel, que entrevistou diversas pessoas que tiveram contato com Carlos (entre as quais, a presidente Dilma Rousseff) e publicou o resultado em Seu amigo esteve aqui.
Apesar da oposição da Polop a Goulart, Beto, como era conhecido entre pessoas próximas, faria uma análise do golpe de 64 com um olhar mais generoso ao presidente. Tarde demais. Além do que, a análise de Beto era muito diferente mas não menos equivocada que a da Polop. Escreveu ele durante uma de suas prisões: “O golpe de 1º de abril veio obstar a revolução brasileira em franco processo de desenvolvimento”.
Não havia revolução em curso no início de 1964. Mesmo autores simpáticos a João Goulart confessariam em anos seguintes que o presidente era na melhor das hipóteses um trapalhão bem-intencionado, e na pior, um bravateiro com gosto pelo poder e sem capacidade para governar. Certo é que Jango via nos trabalhadores do campo e das cidades uma parte importante de sua base de apoio e, se não ele, pelo menos membros de seu governo, como Darcy Ribeiro, realmente almejavam tocar adiante alterações nas históricas estruturas socioeconômicas brasileiras. Mas o que estava em desenvolvimento era reformismo, não revolução.
Beto devia estar com um pouco de arrependimento quando escreveu essa nota, por não ter apoiado Jango antes do golpe. Neste sentido, foi uma nota representativa do comportamento da esquerda pós-64. O Jango revolucionário foi uma mistificação que ajudou a aquecer os espíritos da esquerda para o combate ao regime cruel que o havia derrubado. Ironicamente, o Jango revolucionário também foi uma mistificação que serviu à direita golpista, desde antes de sua posse. Estavam todos errados.
Havia um temor entre os opositores de Jango de que ele tentasse mudar as regras do jogo para poder ser candidato de novo na eleição de 1965. Medidas populistas como a reforma agrária “na marra” serviriam para arregimentar o apoio das massas para as investidas presidenciais contra a ordem constitucional. Não acredito que Jango almejasse tal coisa, mas o comportamento de alguns membros do governo, que às vezes ditavam o rumo das coisas mais do que o próprio presidente, ajudou a acender a luz vermelha. Em sua biografia do pai, Anita Leocadia Prestes escreve com naturalidade que “cogitava-se ainda [durante o governo Jango] de uma reforma constitucional, mesmo que para tal fosse necessário passar por cima do Congresso Nacional”.
Os militares exacerbaram o medo, não pagaram para ver o final do governo Jango e deram eles mesmos o golpe – tornando-se os bandidos da história. Tivesse o processo seguido seu curso, de duas, uma: ou o governo Jango realmente manobraria para cima do Congresso, os militares o deporiam, convocariam novas eleições e restaurariam a ordem constitucional; ou Jango chegaria normalmente ao final de seu mandato, sem conseguir passar grandes reformas de base no Congresso, e Juscelino seria eleito novamente em 1965. E JK era tudo, menos um revolucionário – embora fosse colocado muito à esquerda na opinião de certos militares e civis, inclusive Carlos Lacerda, que tolamente (e mesquinhamente, porque ele próprio queria ser mandatário do país, mas as pesquisas indicavam que comeria poeira de JK) via numa provável volta de Juscelino ao poder uma ocorrência tão devastadora para o país quanto um golpe esquerdista nas mãos de Jango; o ex-governador da Guanabara diz em suas memórias que foi a favor da “revolução” de 64 porque o sistema político nacional estava viciado, e Jango e JK eram corresponsáveis por tal vício.
Bem, as coisas foram como foram.
Gostei de ler sobre o jovem Carlos Alberto. Pela comprovação de que sua opção pela luta armada e sua morte nas mãos da repressão foram um desperdício de talento. Lutar sem armas não garantiria que hoje estivesse vivo, mas aumentariam as chances. Vi no livro de Cristina Chacel um Beto com potencial para evoluir suas posições políticas em paralelo à degradação do regime militar, e chegar no pós-ditadura como uma Dilma Rousseff em potencial – ou um Alberto Goldman, para não nos distrairmos com besteiras partidárias. Não que ele fosse querer chegar a deputado ou presidente. Falo de capacidade intelectual e de vontade por fazer muito por uma coletividade em regime democrático. Eu tive a mesma sensação de desperdício ao ler a história do gaúcho Cilon Brum, morto no Araguaia, recuperada recentemente por sua sobrinha Liniane. O que apenas aumenta a revolta contra os responsáveis por seus assassinatos.
Beto “poderia ter sido um grande líder político”, conta um dos entrevistados a Cristina. “Era um cara irônico, sarcástico”, retrata outro. (A propósito, Marighella também sabia ser sarcástico. Mário Magalhães conta em sua biografia que, ao ser apresentado por policiais a repórteres em meados de 1964, Marighella tirou parte da roupa, mostrou marcas de tortura e observou: “Eu não poderia perder a oportunidade de fazer uma propagandazinha do partido”.) A paixão política de Beto, algo já não muito bom mesmo no mais róseo dos tempos, acabaria sendo mortal no contexto do regime militar. Era um “apaixonado pela palavra e pela grande política, na dimensão da doutrina e da utopia”, conta Cristina. Mas doutrinas e seus encantos costumam levar à política pequena. Na última carta que enviou para os pais, o militante se referia ao “fim do capitalismo e sua coorte de crimes”, “concretização do ideal possível porque correspondente às leis objetivas da sociedade humana”. Sente-se aí o cheiro do determinismo que cega para o real.
A cegueira, que era coletiva, ficara clara anos antes da morte de Beto. No início de 1968, dissidentes mineiros da Polop reafirmaram sua opção incondicional pela luta armada e formaram um novo grupo que inicialmente se chamou apenas Organização, mas logo se tornou o Comando de Libertação Nacional (Colina). Essa dissidência radical havia rompido com antigos companheiros porque, entre outras coisas, passou a encarar o trabalho de conscientização das massas como uma atividade secundária, a prioridade total sendo a ação armada de vanguarda. Ora, é impossível deixar de perceber que essa radicalização, se tem a ver com o progressivo endurecimento do regime militar, está relacionada antes de mais nada com a ausência de “massas” convertidas à causa. Isso poderia ter dito aos guerrilheiros urbanos um bocado sobre a popularidade de seus meios (luta armada) e fins (socialismo), mas, em meio à neblina ideológica, essa realidade passou diante de seus olhos sem levar a qualquer reavaliação.
Em meados de 1969, a Colina e a Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), que tinham divergências táticas com a ALN de Marighella, se fundiram na Vanguarda Armada Revolucionária Palmares (VAR-Palmares) – onde Carlos Alberto militaria sempre muito próximo a Dilma Rousseff. Depois a VAR-Palmares racharia, com Beto ficando com o comando da VAR. Em dezembro de 1970, narra Cristina Chacel, um Beto já de ânimo abatido aparece para uma reunião com toda a seção paulista da VAR – cinco jovens. “Se eu fechar os olhos”, lembra uma militante que esteve com ele naqueles dias, “eu vejo o Beto com aquele olhar resignado, nublado. Eu acho que ele sabia que ia cair, sabia que ia morrer. Não consigo esquecer”. Quando se começou a pensar em “romper o isolamento social da esquerda”, já era muito tarde, o regime em seus calcanhares. Beto “caiu” em fevereiro de 1971. A farsa montada pelo regime para tentar encobrir seu assassinato é desconstruída por Cristina Chacel.
A linha dura do regime em breve iria à forra no Araguaia, e não estava com a menor pressa em devolver o poder aos civis. A ditadura parecia imbatível. Mas a oposição civil a seus desmandos era maior e estava mais organizada do que os militares imaginavam. Em breve uma brutal campanha de repressão a jornalistas colocaria essa oposição à prova. Em particular, o assassinato de um pacato profissional de ascendência judaica, sobrevivente do nazismo na Europa central.
5.
A dura verdade, para aqueles que insistem em enxergar extremistas como Carlos Marighella como gente com pouco ou nenhum defeito e com participação decisiva para a queda da ditadura militar, é que um jornal como o Correio da Manhã, que apoiou o golpe de 64 mas logo se voltou contra o regime, fez mais pelo fim do regime do que todos os guerrilheiros urbanos e rurais somados.
O que dizer então do sindicato dos jornalistas de São Paulo durante a gestão de Audálio Dantas? Em abril de 1975, a chapa oposicionista, por ele encabeçada, venceu a disputa pela direção do sindicato e transformou a instituição num fortíssimo polo de oposição ao regime militar. Criou-se, por exemplo, a Comissão de Liberdade de Imprensa, que prestou apoio a veículos de grande circulação, como Veja, mas também a jornais alternativos, como Movimento e Opinião. O sindicato decidiu ainda prestar assessoria a todo jornalista perseguido que procurasse sua sede, fosse ele filiado ou não.
As duas guerras de Vlado Herzog, a rigor, não é uma biografia. A fase pré-TV Cultura de Vlado é coberta rapidamente, logo nas primeiras poucas dezenas de páginas. Na verdade, apesar do título, o livro é tanto sobre a atuação de Vlado na oposição à ditadura quanto sobre a oposição do próprio Audálio. Isso não é uma crítica, apenas uma observação. Acho até bom que o autor tenha procedido dessa forma, porque, se a resistência de Vlado acabou com seu assassinato em outubro de 1975, o tipo de resistência civil por ele representada foi energizada ao máximo pela indignação causada por sua eliminação e pelo grotesco laudo de suicídio forjado por esbirros dos militares, e continuou com vigor, entre outros lugares, na própria comunidade de jornalistas agregada em torno do sindicato paulista.
Nem é esse um livro autolaudatório. Já sabíamos que Audálio era um dos que estiveram no centro do enfrentamento à ditadura em 1975 e nos anos em volta. O que o autor faz é, ao dar seu depoimento dos decisivos meses de luta que cercaram a prisão de Vlado, esclarecer vários pontos que permaneciam obscuros e trazer algumas revelações. No processo, ele engrandece, isso sim, a figura de gente que também estava no front – Henry Sobel, Paulo Evaristo Arns, Mino Carta, etc.
A luta armada nunca atraiu Vlado Herzog. Ele respeitava vários dos guerrilheiros, e jamais seria capaz de igualar sua ações contra alvos militares aos assassinatos cometidos em porões contra prisioneiros rendidos e sob tutela do Estado. Mas ao mesmo tempo sempre pareceu compreender que a luta armada era um beco sem saída e, no final das contas, contraproducente na luta contra a ditadura.
Até por isso, se sentia à vontade no PCB, ao qual se filiou em 1974. No entanto, ele não apenas estava à direita de ativistas como Marighella e Carlos Alberto Soares, como estava à direita também de Prestes, no que diz respeito ao projeto de sociedade para o Brasil. Vlado esteve exilado em Londres, país de que gostava muito, e onde trabalhou para a BBC. Suponho que ele era no fundo um trabalhista moderado, um social democrata. Por que não se filiou ao MDB? Talvez porque, como um dos cabeças da equipe de jornalismo de uma televisão pública, não achou que caísse bem se juntar ao principal partido de oposição, cada vez mais identificado como o principal desmoralizador do regime (devido às vitórias eleitorais). Entre as poucas instituições que davam oportunidade para um efetivo enfrentamento da atmosfera criada pelos golpistas estavam, além do MDB, a Igreja Católica (setores seus) e o PCB. Como, por motivos óbvios, Herzog não se sentiria à vontade circulando entre a hierarquia católica, sobrou o PCB.
O jornalista Luís Weis opinou que “para Vlado, a ligação com o PCB tinha menos a ver com uma suposta adesão aos princípios do marxismo-leninismo do que com a oportunidade de tornar mais eficaz seu desempenho como jornalista e cidadão no combate pela restauração da democracia”. Em seu trabalho como jornalista, Vlado não era de pregação ideológica – não apenas na Cultura, onde a militância aberta certamente teria lhe custado a cabeça em questão de dias, mas também antes, na imprensa alternativa. Ele se via e agia como um profissional de prestação de serviços de utilidade pública. Denúncias de falta d’água e entrevistas com gente da área que pudesse dizer como sanar o problema era o tipo de coisa que tomava seu tempo. Durante a ditadura, essas denúncias, claro, eram amiúde tidas como “subversão” e, para contrabalançar, os jornalistas da Cultura enchiam linguiça na programação com matérias de inauguração de obras enfiadas de cima a baixo pelo regime.
Vlado nem de longe se imaginava uma grande ameaça aos mandões fardados. Mas seu jornalismo-verdade tocava na ferida do governo de uma forma particularmente irritante. Some-se a isso a incômoda vitória do MDB em 1974 (que teve contribuição comunista, é verdade, mas menos do que a ditadura e o PCB queriam fazer acreditar), a paranoia anticomunista por ela acentuada e a rédea cada vez mais solta da extrema-direita nos porões de São Paulo, e tem-se o desencadeamento, no início de 1975, da Operação Radar, que vitimaria diversos jornalistas.
Até o instante em que enfim foi preso pela última vez, Vlado não acreditou que as coisas pudessem ficar tão feias pro seu lado. O que já havíamos lido, por exemplo, no pequeno livro de Paulo Markun sobre Vlado fica mais claro ainda nesse livro de Audálio Dantas: se não havia cometido qualquer ato contra o Estado, raciocinava Vlado, se não era dos comunistas mais militantes, se tinha endereço fixo e local de trabalho conhecido, se, acima de tudo, não pesava nenhuma acusação formal contra sua pessoa, por que haveria ele de perder tempo fugindo da polícia, o que ainda por cima daria razão aos que o acusavam de extremista?
Esse seu erro de avaliação foi fatal. Membros de sua própria equipe, como Markun e Anthony de Christo, iam sendo presos nos dias que antecederam sua própria prisão, mas ele se recusava a ver a rapidez com que a água chegava ao teto. Markun chegou a lhe alertar de que seu nome havia surgido em meio a interrogatórios conduzidos na base da porrada. No dia 25 de outubro, o jornalista seria torturado até a morte no DOI-Codi. Na noite no dia 23, em sua casa, convidado por um amigo a fugirem juntos de São Paulo, Vlado foi peremptório: “Eu fico. Não tenho nada a esconder. Não sou um criminoso”.
Mas ter cometido um crime é o último quesito que você precisa preencher para acabar recolhido em um regime de exceção. De fato, qualquer ficção conta mais. E o delírio rolava solto. Um amigo de Audálio, também jornalista, escutou de um oficial em meio a uma de suas sessões de tortura: “Esse governador, o Paulo Egydio, o Golbery, aquele de Brasília, tudo comunista!”; “O tal de [José] Mindlin, judeu comunista”.
Aliás, duas informações importantes podem ser traçadas a partir dessas frases. A segunda fala mostra a presença de forte antissemitismo nos porões, que não foi tão marcante quanto no porão argentino, mas esteve lá. Com as fortes reações após a morte de Vlado, no Brasil e no exterior, um relatório do SNI no final de 1975 dizia haver insatisfação com o ocorrido com o “jornalista judeu e comunista” até mesmo nos meios militares. Em fevereiro do ano seguinte, um informe “confidencial” do DOI-Codi achava uma explicação para toda aquela indignação: “Acontece que os meios de comunicação do Ocidente estão nas mãos das organizações judaicas, interferindo em todas as comunidades e no processo cultural de cada país, mesmo sendo uma minoria racial e uma sociedade à parte”. (Essa teoria é prova irrefutável da existência de antissemitismo doentio, de Mussolini ao Hamas.)
A primeira fala do torturador, por sua vez, mostra que a extrema-direita havia saído de vez do controle e estava em guerra surda com o governo Geisel, em especial com seu ministro da Casa Civil, Golbery do Couto e Silva. Quando o governador Paulo Egydio aquiesceu com o acomodamento de Vlado na direção de jornalismo da Cultura, em meados de 1975, estava em parte dando um voto de confiança à promessa de distensão política do governo Geisel. Acontece que o II Exército, de São Paulo, era chefiado pelo general Ednardo D’Ávila Mello, que não fazia parte do fã clube de Geisel/Golbery.
Em 1º de agosto, Geisel proferiu um discurso que agradou a gente como Ednardo, que nunca precisou de informação muito explícita para ver sinal verde para seus planos macabros. Mas após a morte de Vlado ficou claro que o assassinato era sinal claro dos embates intestinos da ditadura. Escreve Audálio: “Um dado considerado de fundamental importância para que se chegasse à conclusão de que as investidas contra Vlado não partiam do governo era o de que os órgãos de informação, notadamente o SNI, haviam dado sinal verde para que ele ocupasse o cargo de diretor de Jornalismo”. O general Ednardo acabaria defenestrado. Muito contribuiu para derrubá-lo da gangorra a fortíssima reação da sociedade civil à morte de Vlado Herzog. O ponto inicial de irradiação dessa reação foi o sindicato dos jornalistas presido por Audálio Dantas.
Quando a direção do sindicato decidiu denunciar o assassinato, estava consciente de que seria a primeira vez que um sindicato denunciaria a morte de um preso político no regime militar. Como os sindicatos, mais do que atrelados ao Estado, dependiam da autorização deste para funcionar e estavam sujeitos a sofrer intervenção a qualquer momento, decidiu-se usar uma tática que juntasse coragem para denunciar com cautela e habilidade para não perder o alvará de funcionamento – e render mais uma leva de presos ao regime.
Por exemplo: o Ministério do Trabalho exigia que, para um sindicato realizar uma assembleia, seria preciso cumprir certas exigências com dias de antecedência. Como havia pressa em mobilizar a sociedade contra os assassinos de Vlado, o sindicato de jornalistas convocou imediatamente, não uma assembleia, mas uma “reunião de informação”. O jogo de palavras conseguiu driblar a vigilância do Ministério.
A pronta ação do sindicato rendeu nos dias seguintes à morte de Vlado notas de solidariedade expedidas por entidades como a Associação Brasileira de Imprensa, a Federação Nacional dos Jornalistas e a Federação Internacional dos Jornalistas. “Pela primeira vez desde a imposição do AI-5,” relata Audálio Dantas, “o caso de um prisioneiro morto nas mãos dos torturadores de um aparelho de segurança foi noticiado com destaque pelos jornais”. “A grande imprensa, enfim, começava a abandonar o barco da ditadura que apoiara desde os primeiros instantes do golpe de 1964”.
Quando o IPM realizado para investigar as circunstâncias da morte de Vlado “comprovou”, em dezembro de 1975, que o jornalista havia mesmo se suicidado, o sindicato contratou os advogados José Carlos Dias, Arnaldo Malheiros Filho e José Roberto Leal de Carvalho, ligados à Igreja Católica, para desmascararem o relatório final do inquérito. Eles o fizeram, e o resultado é um documento histórico tão apaixonante que Audálio Dantas o reproduz na íntegra – ele ocupada 7 páginas do livro, em fonte menor.
A campanha do sindicato teve mais apoio e repercussão na classe média, no Congresso e entre liberais do que entre a extrema-esquerda e os sindicatos de operários. Isso não levou Audálio e seus amigos a negarem qualquer apoio vindo dessas bases, mas fez com que tentassem enquadrar as reações que se dessem no âmbito dos eventos organizados ou com a participação do sindicato. Como conta Audálio, “a denúncia do assassinato de Vlado e seus desdobramentos levaram, claramente, a um recuo dos militares linha-dura, frustraram seus planos de combate a qualquer tentativa de liberação do regime. Naquele momento, eles estavam na defensiva. Os torturadores estavam acuados nos porões. Mas”, observa, “se tivessem condições de sair, tudo poderia acontecer”. O próprio secretário de Segurança de São Paulo, coronel Erasmo Dias, dizia estar pronto a baixar o cacete diante de atitudes mais exaltadas dos oposicionistas.
O sindicato e outras organizações da sociedade civil pegaram essas provocações e responderam-lhes de uma forma tão inteligente que, em retrospecto, pareceriam simples demonstrações de fraqueza. Onde essa inteligência esteve mais evidente foi no culto ecumênico da catedral da Sé, no dia 31 de outubro de 1975, em memória de Vlado Herzog. Audálio orientou a um grupo de líderes estudantis da USP que colaborassem para que todos os universitários se mantivessem serenos na sua participação no culto. As autoridades montaram bloqueios nas principais vias de acesso ao local, para dificultar ao máximo a ida da população, mas ainda assim o evento lotou; mandaram alguns agentes à paisana para o meio da multidão, mas eles foram rapidamente identificados e viraram motivo de piada à boca pequena; e mandaram alguns agentes para os arredores da praça, com ordens de partir para a brutalidade se houvesse a menor “provocação” daqueles que estivessem saindo ao final do culto, mas não houve provocação.
“Ao mesmo tempo que os participantes do culto ecumênico deixavam a praça, em pequenos grupos”, lembra Audálio, “retiravam-se centenas de policiais que para ali tinham sido mandados, com ordens de reprimir qualquer manifestação fora dos limites da catedral. Esvaziavam-se a praça e, ao mesmo tempo, o pretexto para uma ação repressiva que poderia terminar num massacre. (…) Mas o vazio da praça tinha o sentido de um marco na luta contra a ditadura que, no dizer de um dos oficiantes do culto ecumênico, dom Helder Câmara, começava a cair naquele instante”.
::: Marighella: O guerrilheiro que incendiou o mundo :::
::: Mário Magalhães ::: Companhia das Letras, 2012, 744 páginas :::
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::: Luiz Carlos Prestes: O combate por um partido revolucionário (1958-1990) :::
::: Anita Leocadia Prestes ::: Expressão Popular, 2012, 336 páginas :::
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::: Seu amigo esteve aqui :::
::: Cristina Chacel ::: Zahar, 2012, 232 páginas :::
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::: As duas guerras de Vlado Herzog :::
::: Audálio Dantas ::: Civilização Brasileira, 2012, 406 páginas :::
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Daniel Lopes
Editor da Amálgama.
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