Embora haja boas passagens em que Myriam Campello expõe através das falas dos personagens principais boas questões referentes à liberdade de sentir e amar, boa parte do romance envereda pela superficialidade dos relacionamentos.
Como leitora ainda sem muita estrada em romances nacionais, a impressão que tenho é de que a partir dos anos 2000 a literatura brasileira se concentrou muito nela mesma: fala do cenário em que vivem os escritores no país, traz para dentro da ficção, como personagens, os próprios criadores dessa ficção. Muitos reclamam que esse é o problema dos livros atuais, muita energia gasta em falar de si mesmo, do escritor, da literatura, do próprio umbigo. Mais um livro chega agora com essa temática, o não-tão-mais-fechado mundinho literário em que egos se digladiam e palavras atormentam autores em busca da perfeição. Mas diferentemente do que eu imaginava assim que peguei São Sebastião blues, o livro não é mais um da safra da nova ficção brasileira, mas sim uma reedição de um romance publicado por Myriam Campello em 1993.
Cinco figuras do cenário literário do Rio de Janeiro no início dos anos 1990 estão envolvidos em um novo Prêmio de Literatura que promete ser o maior do país – o que logo animou minha leitura, em tempos de polêmicas nos prêmios atuais. Na verdade, eles nem precisariam desse prêmio para estarem reunidos na mesma história. Todos os cinco já se conheciam, tinham histórias juntos, conviviam entre si rotineiramente. O prêmio é o pretexto para Myriam juntar as suas histórias em uma coisa só. Uma dessas pessoas é Laura, famosa escritora reconhecida e admirada pela crítica, leitores e seus colegas. Diferente dela, Julia não tem a mesma disciplina para escrever e enxerga a escrita mais como um suspiro final do que uma dádiva. É melancólica, cheia de autopiedade – pensa não escrever tão bem quanto todos dizem – e, dentre os cinco, é a única concorrendo ao prêmio. Aurora é uma autora de livros infantis que compõe o júri, tentando superar a solteirice e um amor há tempos terminado escrevendo pela primeira vez um livro adulto. Participando também desse júri há David, a figura intelectual e charmosa com livros de sucesso – e de massa –, um cinquentão casado que mantém a fama de sedutor. Chefiando todos no júri está Ceno, o editor e amigo de todos esses escritores, um homem que sofre de obesidade mórbida, que encontra na comida o alívio para a falta de relacionamento.
Relacionamento é a palavra chave para tudo o que move São Sebastião blues. Todas as personagens têm como estopim de suas histórias um caso mal resolvido ou problemático: Julia e Laura há tempos não se falam por conta do namoro que acabou; David tenta conquistar Laura e vive traindo a esposa; Aurora não consegue esquecer Zé Luiz, um namorado que a deixou para casar com outra mulher; e Ceno tenta se adequar a um padrão de beleza para tentar conquistar algum garotão. O que parecia ser uma história de egos e poder, se sustenta por esses relatos de casos de amor fadados ao fracasso, constrangedores em alguns momentos. Mas a tal guerra de egos esperada surge, pena que de forma deslocada e clichê demais para ser considerada uma boa saída para o livro.
Embora haja boas passagens em que Myriam Campello expõe através das falas de Julia, Laura, Ceno e Aurora boas questões referentes à liberdade de sentir e amar – como quando Julia e Ceno observam o casal jovem de vizinhos aos beijos e listam homossexuais famosos e brilhantes que não “têm o poder” de expor seu amor em público – , boa parte do romance envereda pela superficialidade dos relacionamentos. A autora não chega a aprofundar o motivo do rompimento entre Julia e Laura, não detalha os baques sentimentais de Ceno além do mergulho na comida, e Aurora se mostra apenas uma personagem que bate de frente com o conservadorismo de uma amiga do interior goiano. David, então, é o retrato do canalha machista que finge intelectualidade e liberalismo, que no final toma ares de vilão de telenovela pela imposição de sua fama e influência para mudar os rumos do prêmio literário.
A leitura de São Sebastião blues oscilou entre esses momentos em que o narrador em terceira pessoa consegue atingir um novo patamar de profundidade nos sentimentos das personagens, principalmente de Julia, mas logo perde o fôlego nos diálogos, que por muitas vezes soam artificiais por não darem espaço para o narrador contar ao leitor os trejeitos que cada personagem adota ao falar, as reações mais detalhadas ao que um diz ao outro. É como se os parágrafos concentrados apenas na narração fossem deixados a cargo de um escritor e os diálogos aos cuidados de outros. Foram esses diálogos que, logo no início, se colocaram como barreiras no meio do livro que bloquearam a fluidez do texto — que, enquanto narrado, estava se saindo bem.
Para quem esperava ver um pouco mais sobre a rotina e os bastidores da produção literária, o romance de Myriam Campello pecou em pouco mesclar a vida amorosa das personagens com suas próprias criações – pouco foi dito exatamente sobre como ou o que escreviam, exceto Aurora, a autora de livros infantis. São Sebastião blues deixou a impressão de tentar ser um romance melodramático em que a história de várias personagens se cruzam e culminam em uma mesma situação, mas, apesar de algumas boas passagens, o saldo final da leitura revelou um livro com pouca pretensão de realmente jogar alguma luz na discussão sobre a literatura brasileira.
::: São Sebastião blues :::
::: Myriam Campello :::
::: 7 Letras, 2012, 228 páginas :::
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