Coletânea recente da filósofa apresenta textos essenciais para se discutir ideologia no Brasil.
Coletâneas de textos publicados separadamente deveriam ser feitas com maior frequência. Muitos pensadores brasileiros ligados à universidade acabam sofrendo pela falta de divulgação de seus livros mais especializados e o esquecimento de seus escritos de ocasião ou menos ligados a uma pesquisa particular. Por isso, o lançamento de dois volumes com textos de Marilena Chaui pela editora Autêntica deve ser saudado como um fato relevante, por apresentar a filósofa em um ponto intermediário: longe da ligeireza de suas manifestações midiáticas recentes e mais próximas da profundidade analítica de obras como A nervura do real, as duas coletâneas publicadas (Contra a servidão voluntária e Manifestações ideológicas do autoritarismo brasileiro) neste ano apresentam muito bem o pensamento de Chaui e sua trajetória intelectual desde os anos 70 até os tempos mais recentes. Trataremos nessa resenha da segunda, um bom retrato da crítica ao autoritarismo feita pela autora ao longo das décadas.
1.
O primeiro texto é um petardo de mais de 100 páginas, intitulado “Apontamentos para uma crítica da Ação Integralista Brasileira” e publicado inicialmente em 1978 (ainda em plena ditadura militar). O título é daqueles que prenuncia alguma modéstia, mas revela-se acertado: não há exatamente uma crítica ideológica formalizada totalmente no texto, mas parâmetros para realizá-la. O ponto é que esses parâmetros são desenvolvidos de forma tão aprofundada e coerente que fica difícil não se perguntar: como esse texto demorou tanto tempo para ser republicado?
Não é costumeiro encontrar discussão ideológica desse nível escrita em português. Aqui mesmo no Amálgama li alguns dos melhores textos sobre política e ideologia, mas “Apontamentos…” está em outra divisão. Certamente não é algo que veremos na conversa de hoje, na qual só o fato de achar alguém disposto a privilegiar substantivos em detrimento de adjetivos já é motivo de comemoração. É impressionante como Chaui consegue, a partir de um material razoavelmente pobre em termos de reflexão (os textos dos integralistas), elaborar seus pressupostos e seu lugar de enunciação, alcançando uma descrição muito complexa da ideologia integralista.
Fugindo da mera rotulação do integralismo como “fascismo nos trópicos” ou algo que o valha, Chaui destrincha o processo de pensamento de autores como Plínio Salgado e Miguel Reale, baseado no uso de imagens, metáforas que buscam apelar para a consciência cívica de um destinatário bastante específico: a classe média urbana dos anos 30, caracterizada pelo integralismo como a vanguarda de um processo civilizatório complexo, no qual os valores do “povo”, presentes de modo mais forte no Brasil rural, se encontram com um ideal de progresso ao mesmo tempo anticomunista e antiliberal (ou, melhor dizendo, contra o padrão da democracia liberal, que à época acreditava-se falido pela ascensão do fascismo).
Capaz de interpretar o estilo dos textos como só os melhores críticos literários podem fazer, Chaui consegue construir o conjunto do pensamento integralista melhor do que seus próprios autores. Além disso, a primeira parte do texto, que apresenta pressupostos filosóficos e ideológicos para prosseguir à análise, tem o mérito enorme de apresentar uma boa e rápida revisão sobre a história das ideias no Brasil e conseguir delimitar de forma simples, sem ser simplória, o que é a dialética hegeliana e como seu procedimento filosófico é útil para a discussão que será travada. Nota-se, a partir do texto, como Marilena deve ser excelente professora.
2.
Três textos mais curtos, escritos para a Folha de S. Paulo, apresentam problemas argumentativos mais claros. No primeiro, a reflexão sobre a violência inerente na sociedade brasileira (muitas vezes obscurecida pelo que o título do texto chama de “mito do homem cordial”) apresenta pontos válidos sobre a caracterização de um “terror de Estado”. É bom lembrar que o escrito data de 1980, quando a linha dura militar, desenganada pelo processo de abertura, passa a praticar atentados a bomba, sendo o mais famoso o felizmente falhado no Riocentro. O problema está nas notas: o organizador, para explicar de modo compreensivo o “Pacote de Abril”, conjunto de medidas promulgadas por Geisel em 1977, acaba entrando em detalhes irrelevantes para o texto (como a origem do termo “senador biônico”) e cometendo um erro absurdo de geografia, afirmando que o Tocantins se formou a partir da divisão do território do Piauí (como sabemos, foi Goiás o estado dividido).
O segundo texto é uma crítica direta ao programa de governo de Collor e à implementação deste. Apesar de ser quase impossível não concordar com críticas diretas ao estilo de Collor e ao seu narcisismo grotesco, o texto escorrega ao exagerar muito em afirmar uma “desmobilização da sociedade civil” como prática desejada pela administração da época. Noves fora o terrível confisco da poupança, caracterizar como catástrofe o governo que mal começava – e, até o momento da escrita do texto, havia debelado parcialmente a inflação – denuncia demais as preferências de Chaui, àquela época já secretária de Cultura do governo Erundina em São Paulo.
No terceiro texto as afinidades eletivas da filósofa contribuem mais para uma falha analítica, a meu ver. Como foi comum nos anos 90, acusa-se aquele que desgostamos de praticar o famigerado “neoliberalismo”. É difícil argumentar que Collor não tenha pretendido dar algum lustro de liberalismo ao seu governo, mas decididamente não há elementos no texto capazes de delimitar o que seria especificamente neoliberal nas medidas governamentais, exceto pelas privatizações – muito tímidas em comparação ao que viria depois, tanto sob PSDB quanto sob PT. Além disso, uma pequena tirada de Chaui contra Merquior (“glosador erudito”) soa pouco conveniente, considerando que o filósofo havia morrido há pouco mais de um ano e acusava Chaui constantemente de ser “plagiária”.
De todo modo, os textos parecem pálidos perto de “Apontamentos…” e de outro grande inserido no volume, chamado “Brasil: mito fundador e sociedade autoritária”. Nele, o desenvolvimento proposto no texto sobre o “mito do homem cordial” é feito exaustivamente, tratando da ideia de nação criada no Brasil e sua formação. Seria necessária outra resenha para apresentar apropriadamente o texto, que passa em revista as teorias de brasilidade em vários campos do saber, identificando-lhes a ideologia subjacente. Infelizmente parte do texto também está dedicada à crítica ao “neoliberalismo”. Não entendam mal, acho toda crítica possível, desde que feita com qualidade – o que em alguns pontos é o caso. Mas o texto foi escrito em 2000, e essa crítica volta-se essencialmente contra o governo FHC, tendo sido abandonada mesmo com a manutenção de boa parte da política chamada “neoliberal” pelo governo petista. Curioso que o passar do tempo não tenha envelhecido o texto sobre o Integralismo, escrito 35 anos atrás, mas tenha tornado partes dos textos mais recentes tão datadas.
3.
“Cultura popular e autoritarismo” tem poucas surpresas para quem conhece bem o debate brasileiro sobre os traços autoritários em nossa sociedade. Sem demérito algum, pois o texto é oriundo de uma palestra dada no exterior, todos os lugares-comuns estão presentes: estrutura social marcada pelo privilégio, cidadania apenas à classe dominante, lógica do favor, repressão aos mais pobres e leniência aos mais ricos, etc. A descrição da ditadura militar como um governo propenso a manter e radicalizar esse estado de coisas, replicando uma estrutura social autoritária, não é completamente desatualizada. No entanto, é possível perceber como a Constituição Federal de 1988 (a palestra é de 1987) serve como marco para começar a dirimir ao menos a maior parte desses fatores.
Na segunda metade do texto, Chaui fala sobre iniciativas de resistência ao autoritarismo, especialmente no campo educacional: as escolhas políticas contrárias ao método de Paulo Freire teriam sido rejeitadas pela população à qual se destinava, revelando um fundo de resistência no mais básico da afirmação de cidadania, que é o direito à educação. As histórias têm uma composição claramente ideológica, mas o plano contra o qual se desenham também é. Trata-se, no limite, de um texto sobre uma disputa política específica, localizando-a em um contexto específico, com o fim de confirmar as premissas gerais e apontar saídas para a situação apresentada. Não é pouco, mas o caráter anedótico torna a persuasão um pouco mais difícil.
Outra exposição sobre crítica ideológica está em “Crítica e ideologia” (sim, título nada surpreendente, mas acurado). Trata-se do escrito mais abstrato do conjunto, buscando compreender as origens das ideologias e sua forma de interferência na elaboração filosófica da sociedade, mostrando os vários graus e modos pelos quais essa influência se dá. Talvez devesse ser o primeiro do volume, por apresentar os pressupostos filosóficos das discussões particulares de forma mais metódica. O volume se encerra com uma entrevista dada por Chaui ao organizador, na qual se fala sobre o contexto dos escritos coligidos, em especial o de “Apontamentos…”. Um bom fecho para um livro essencial para discutirmos ideologia no Brasil, independente da orientação ideológica do leitor.
::: Manifestações ideológicas do autoritarismo brasileiro :::
::: Marilena Chaui :::
::: Autêntica, 2013, 296 páginas :::