Neste romance, o protagonista chega a sentir uma ponta de admiração pelo homem com quem flagrou sua mulher
O tempo é relativo, como Albert Einstein nos provou. Para quem está no espaço, a passagem de tempo é mais lenta do que para quem está na Terra. Mas não precisamos ir até a Lua ou Marte ou Saturno para tirarmos a prova disso. Um dia de tédio sentado na escrivaninha do trabalho olhando para um computador passa muito mais lentamente que um sábado de passeio pelos parques da cidade – é de praxe: os momentos ruins, angustiantes ou modorrentos passam devagar; já os alegres, eufóricos e intensos, vão embora assim, num estalar de dedos.
É num estalar de dedos que a história de Jacó acontece. Primeiro, há a visão da traição, Sara na cama com outro homem, que não sabemos quem – ainda. Depois, o jorro de emoções, pensamentos e injúrias contra a mulher e contra a vida, lembranças de relações passadas e do encontro com Sara que passam pela mente do protagonista rapidamente, num intervalo de cinco segundos. Em Num estalar de dedos, João Campos Nunes dobra os milésimos em posts e tweets que guardam toda a dor da traição e a indignação pelo amor que Jacó sente. Meteorologista de formação, ele parece ser um homem comum: tem seu emprego, tem amigos, é dotado de certa timidez com as mulheres, que mantém desde a juventude, diferente da falta de vergonha de seu melhor amigo, Fernão. Jacó parece ser um homem calmo, quieto, mas guarda dentro de si tudo aquilo que gostaria que explodisse para todos ouvirem.
João Campos Nunes mistura em seu romance a prosa e a poesia, depende do que se adequa melhor ao que seu protagonista quer expressar. É impossível ler Num estalar de dedos sem pensar na famosa “dor de corno”, aquela que provocou a composição de boa parte das músicas sertanejas dos anos 1990 (quando ouvir sertanejo ainda era bom), chorando o abandono, a traição, a insensibilidade da mulher que, sem hesitar, se entregou para outro homem, melhor, mais forte, mais bonito, mais alto e, quiçá, mais inteligente que o nosso pobre herói. Jacó lamenta por ser arrancado do cotidiano e do coração de Sara, sente raiva pelas suas mentiras e dissimulações e vergonha por ter sido, desde sempre, um homem passivo que não percebe a atenção que recebe, ou duvida da própria capacidade de conquista. E agora isso: quando finalmente tinha nos braços a mulher dos seus sonhos, ela o apunhala pelas costas. Ela o trai.
Aí vem você, querida, irremediavelmente decidida e feliz, contando planos que certamente não me incluem e ainda pede minha opinião. Acho que preciso de uma dose de autoestima, você nem imagina como fica boa com limão.
Jacó tenta ser sarcástico, encontrar um tom cômico para seu sofrimento, mas seu esforço em se mostrar acima da situação acaba sempre incorrendo no efeito contrário: ele se esbalda na melancolia que a poesia e prosa de João Campos Nunes conseguem evidenciar muito bem. Melancolia essa que também transparece nas ilustrações difusas e incompletas de Marcus Braga e no próprio projeto gráfico do livro, todo em páginas escuras, indo do preto ao cinza em degradê, aos poucos clareando, até chegar nas páginas brancas que são, literalmente, vazias – vazias como a mente de Jacó ao entrar em colapso em frente à parceira traidora. Esse jogo entre o texto e o visual leva o leitor para dentro do caos e do sofrimento que é a mente de Jacó, ainda mais quando ele repete certas cenas, certas lembranças, incrementando-as com novos detalhes que revelam um pouco mais do que há por trás da traição.
O texto de Nunes não é um puro chororô de traído, que pinta o protagonista como única vítima dessa trama amorosa. Aquilo que Jacó não diz sobre Sara é o que mais acaba revelando sobre a relação deles, e muito mais ainda sobre como ele enxerga a mulher. O amor de Jacó é possessivo e carnal. Quando fala de Sara, se refere principalmente ao seu corpo, à sua bunda, aos peitos firmes, à sensação que é passar as mãos pelo corpo dela e como ele se sente grande, imenso, por poder tocar nela. Suas primeiras desconfianças são tomadas por arroubos de raiva, por xingamentos a Sara, a puta, a vagabunda que certamente está o traindo com alguém. Os poucos momentos de puro sentimento que Jacó lembra vêm de Sara, de seu pedido por amor e por atenção, que Jacó responde mecanicamente.
Outro ponto que confirma essa impressão de que o que dói em Jacó é a perda do corpo de Sara, e não da pessoa, é como ele isenta o homem com quem ela o trai de toda a sua raiva – homem esse que também vive próximo do protagonista. O que parece sentir por ele é inveja e até um pouco de admiração – o que ele demonstra em várias passagens. O ódio está todo direcionado à mulher, aquela que lhe pertencia, que passaria a vida toda ao lado dele. Com esse amor tão possessivo, físico, ciumento e pouco sentimental que Jacó oferece a Sara, fica difícil comprar o sofrimento do protagonista com a intensidade que ele gostaria, que seria odiar Sara também.
Num estalar de dedos é uma boa leitura por oscilar entre a pena e o ódio pelo próprio protagonista – como mulher, eu não conseguia deixar passar cada menção à bunda de Sara, feita de maneira cada vez mais desesperada, como se ela fosse só a bunda, só um produto. E é interessante como, mesmo com todas essas falhas no relacionamento, Jacó ainda é capaz de dizer coisas belas, de transformar a traição em algo lírico que você certamente leria em um momento de fossa e concordaria com tudo.
::: Num estalar de dedos :::
::: João Campos Nunes :::
::: Com-Arte, 2013, 152 páginas :::
Taize Odelli
Escreve no R.izze.nhas
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