As minorias cristãs entre muçulmanos
Cristãos (ou xiitas ou yazidis) se tornam no imaginário dos fanáticos a encarnação real e concreta dos anti-valores, do pecado e da degeneração social.
A comunidade cristã no mundo islâmico vive, principalmente nos dias atuais, uma situação de medo e terror. A relação entre os dois grupos religiosos é diversa e reflete a própria gênese histórica do islã. Em países com uma tradicional presença cristã, como Líbano, Síria e até mesmo o Irã, a integração é frutífera. Contudo, desde o nascimento e expansão do wahabismo, no século XIX, o fundamentalismo se converteu em pressuposto teológico e atingiu dimensões inimagináveis. A chave para entender a perseguição atual aos cristãos no mundo islâmico é compreender o desenvolvimento, relativamente recente, do integrismo saudita.
Com a expansão do islamismo para fora da península arábica, os muçulmanos se confrontaram com um imenso mundo cristão. As igrejas no norte da África rapidamente se extinguiram, enquanto no Oriente Médio o cristianismo continuou durante séculos como religião majoritária. Alguns cristãos chegaram a ocupar postos administrativos durante o Califado Omíada e foram os responsáveis pelas traduções da filosofia grega ao árabe. Este contexto permitiu que as mais variadas denominações – maronitas, melquitas, cadeus etc. – sobreviessem, ainda que sob um regime de relativa opressão. Os cristãos foram naturalmente se arabizando, permitindo uma forte assimilação cultural.
Antes da ascensão do wahabismo as comunidades cristãs viviam em tranquilidade com os seus vizinhos muçulmanos. Contudo, a reforma proposta por Abd al-Wahhab na península arábica defendia um combate a qualquer tipo de influência não-islâmica. A Arábia Saudita, cuja história se confunde com o próprio wahabismo, exerceu um papel fundamental na expansão do fundamentalismo. O integrismo se disseminou pelo mundo islâmico e possibilitou o surgimento de diversos grupos terroristas, da Al-Qaeda ao Estado Islâmico.
Na península arábica, onde a força do reformismo wahhabita se fundiu com a identidade cultural, igrejas foram destruídas e qualquer expressão religiosa não-islâmica foi criminalizada. O Estado Islâmico, como um subproduto da reforma saudita, adota a mais fanática prática do fundamentalismo. Em outras partes, como no Paquistão e na Índia, as comunidades cristãs também são alvos constantes do terrorismo. Essa região é o berço da Escola Deobandi, outra seita reformista fundada por missionários wahhabitas que foram para a Ásia Meridional.
Vale destacar que o cristianismo, em grande parte do mundo islâmico, não é uma realidade “estrangeira”. É uma presença milenar, capaz de suportar profundas mudanças de poder e com a facilidade de se adaptar culturalmente. Maronitas, melquitas, assírios, coptas, caldeus, armênios, malabares, malankares. Os cristãos, por sobrevivência e pela própria abertura presente já nos primórdios da Igreja, foram sacralizando a cultura e abraçando a identidade dos seus conquistadores. Um “nazareno” iraquiano é tão árabe quanto o seu vizinho muçulmano, compartem de um mesmo ethos civilizacional.
Esta realidade cultural torna a perseguição ao cristianismo no mundo islâmico ainda mais violenta. A comunhão identitária obriga o discurso fundamentalista a desumanizar o “outro”. Cristãos (ou xiitas ou yazidis) se tornam no imaginário dos fanáticos a encarnação real e concreta dos anti-valores, do pecado e da degeneração social. Esta dinâmica é fundamental para a massificação da violência, capaz de congregar forças e dividir comunidades secularmente em paz.
Entretanto, ainda que o fanatismo tenha uma maior influência midiática, é inegável como os muçulmanos ordinários, cidadãos comuns, se movimentam em defesa dos seus vizinhos cristãos. No Egito, os fiéis islâmicos saíram nas ruas para proteger os templos coptas durante as celebrações litúrgicas, o que também ocorreu no Paquistão. No Iraque, o Ayatollah Sistani, maior autoridade do xiismo no país, recebeu o Patriarca dos Caldeus, cardeal Sako, e declarou o seu completo apoio à comunidade cristã: a cidade sagrada de Najaf foi aberta para receber os refugiados. No Líbano, cristãos e xiitas são aliados tradicionais na política e na vida social. Na Síria, “nazarenos”, muçulmanos e alauítas lutam unidos contra o avanço do Estado Islâmico.
Por um lado, a comunidade muçulmana tem a oportunidade de mostrar ao mundo que o terrorismo não é uma representação genuína da sua fé. Por outro, os cristãos no contexto islâmico parecem reviver a vocação ao martírio dos seus primeiros pais na fé. Não mais o Coliseu, mas as areias do deserto.