Mitos sobre os judeus sobrevivem graças a gente como Ahmadinejad e Leonardo Boff
Maria Luiza estuda neste livro dez mitos sobre os judeus, mas ela sabe que existem mais. Escolheu estes dez por serem os mais difundidos e, como fica claro em seus capítulos, por terem se aclimatado muitíssimo bem ao Brasil.
Quem duvida que a mitologia antissemita esteja firme e forte, basta esperar a próxima vez que Israel resolver agir militarmente contra grupos que operam por sua extinção. Assim como da vez passada, em meados deste ano de 2014, o preconceito mal disfarçado de “antissionismo” pulará aos olhos de qualquer um que acompanhe a imprensa progressista.
Ou não? Numa entrevista de julho, reproduzida em trocentos sites de esquerda, Leonardo Boff pretendeu esclarecer as massas sobre diversos temas que afligem a humanidade. Como estávamos em meio ao conflito Israel versus Hamas, Boff também opinou sobre a questão. Ou melhor, sobre o que ele acha que é a raiz da questão.
Israel “está movendo contra Gaza”, afirmou o teólogo, uma “guerra de massacre criminosa”. Israel transformou a faixa em um “campo de concentração”. Os Estados Unidos apoiam o “massacre”, asseverou Boff, porque Obama, assim como todos os ex-presidentes do país, “são vítimas do grande lobby judeu, que tem dois braços: o braço dos grandes bancos e o braço da mídia”.
Eis aí. Em poucas palavras, Boff se enquadrou em pelo menos dois dos mitos estudados por Maria Luiza: o de que “Os judeus dominam a economia mundial” (capítulo 3), e o de que “Os judeus controlam a mídia” (9).
No capítulo 7 (“O judeus são racistas”), também foi impossível não lembrar de Boff, ao ler a transcrição de parte do infame discurso de Mahmoud Ahmadinejad na Conferência Mundial Contra o Racismo, realizada em abril de 2009 na Suíça. Os “poderes mundiais” aliados do “sionismo mundial”, disse o ditador, “mobilizam todos os recursos, inclusive a influência econômica e política – e a mídia em todo o mundo –, para tentar ganhar apoio para o regime sionista (…)”. É claro que Ahmadinjahd não está querendo dizer que os “poderes mundiais” são movidos por católicos irlandeses.
Leonardo Boff é tido como um poço de moral e exemplo de homem, e seus admiradores estão espalhados para muito além da extrema-esquerda. O que diz bastante sobre a intelectualidade brasileira. Em um ambiente onde o preconceito contra judeus chocasse tanto quanto o preconceito contra negros ou homossexuais, Boff jamais seria visto como algo além do reacionário tiranófilo que realmente é.
Sujeito mais respeitável é o cineasta Fernando Meirelles, mas mesmo ele, também no contexto do conflito Israel versus Hamas e de uma manifestação pró-Israel com cerca de 600 pessoas em São Paulo, tuitou em sequência o seguinte:
O ato pró-Israel foi promovido pela Juventude Judaica Organizada e pela Federação Israelita do Estado de São Paulo. Gastar tempo explicando como os judeus espalhados pelo mundo que enviam dinheiro para Israel não o fazem para que crianças sejam mortas seria dar um verniz de razoabilidade que o argumento não merece.
O mais importante aqui é o absurdo relativismo que coloca no mesmo plano judeus apoiadores do estado democrático de Israel e um grupo terrorista antissemita que não apenas se vangloria (ao contrário de Israel) de matar civis do “outro lado”, como faz pouco caso dos “seus” próprios civis, seja usando famílias inteiras como escudo ou escravizando crianças palestinas até a morte na construção dos túneis que lhe permitem movimentar homens e armas e levar o terror a Israel.
Aliás, “coloca no mesmo plano” é para ser generoso com Fernando Meirelles, já que ele imputa a judeus ações que eles não promovem e apenas “não vê bom senso” no Hamas – uma verdadeira pérola. Se alguém for fazer um filme sobre a cegueira moral que envolve as lutas de Israel, com certeza não será Meirelles.
Trouxe o cineasta para esta resenha porque lembrei de seus tuites quando Maria Luiza cita Pilar Rahola e o fato de que “a acusação de que o judeu medieval matava crianças cristãs para beber o seu sangue se conecta diretamente com o judeu israelense que mata as crianças palestinas para ficar com suas terras. Sempre são crianças inocentes e judeus de intenções obscuras”. Isto está logo no primeiro capítulo, “Os judeus mataram Cristo”.
As constantes referências a crianças palestinas mortas nas ações de Israel costumeiramente levam à denúncia de “massacres”, ou pior, de um “holocausto” na Palestina. Estupidez, quando não é esperteza – “o Holocausto”, escreve Maria Luiza, “é uma das fontes de legitimidade da criação do Estado de Israel, razão pela qual interessa aos antissionistas desqualificar este fato enquanto genocídio singular na História da Humanidade”.
Dez mitos sobre os judeus se prende às origens católicas (medievais) dos mitos antissemitas, e, nos tempos recentes, a obra dá destaque às continuações dos mitos pela extrema-direita, mas Maria Luiza poderia muito bem ter escrito sobre a inestimável colaboração da esquerda para a propagação do antissemitismo – a começar pelo próprio Marx, passando pelo stalinismo e chegando ao altermondialisme. Talvez a autora tenha acreditado que ficaria subentendido que as falácias, no fundo antissemitas, que desqualificam Israel vêm em sua maior parte da esquerda – ainda que parecidíssimas com as da extrema-direita europeia.
Mas não sei não. Em se tratando de um livro para o público brasileiro, é sempre bom explicitar que certos preconceitos estão mais presentes na esquerda; nossos progressistas não são mais conhecidos por fazer esforços de interpretação, por menores que sejam, que possam lhes derrubar a máscara de gente impoluta que só batalha por boas causas.
Daniel Lopes
Editor da Amálgama.
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