Charles Kiefer escreve um relato-memória que explora o pedantismo da elite intelectualizada brasileira.
Ariosto Ducchese, bem-sucedido advogado, acorda em uma cama de hospital depois de ter sangrado durante vários dias. Cego pela luz matinal refletida na brancura imaculada do aposento, recebe a visita da mãe, Beatriz, que, em sua humilde e finada presença, desperta nele a culpa e a vontade de regressar à cidade natal e à casa na qual viveu seu passado de colono a fim de encarar os próprios fantasmas interiores.
Charles Kiefer não foi três vezes ganhador do prêmio Jabuti (em 1985, com O pêndulo do relógio; em 1993, com Um outro olhar; e em 1996, com Antologia pessoal) através de uma escrita plana e medíocre. Sua técnica, a profundidade de seus personagens e a elegância rebuscada de sua narrativa são reflexo do talento que fez com que vendesse 100 mil exemplares de seu livro de estreia, em 1982, Caminhando na chuva; e alimentaram a publicação (e o sucesso) de seus trabalhos em países europeus.
Com Dia de matar porco, Kiefer escreve um relato-memória (autobiográfico? ficcional? importa?) repleto de figuras de linguagem, referências à cultura pop e à literatura, explorando o pedantismo da elite intelectualizada brasileira a fim de criticar o homem que renega as origens miseráveis das quais ascendeu. Sua “Longa Jornada Noite Adentro”, mencionada pelo protagonista logo no início do texto, resume a exploração interior, desvelo de identidade e persona do personagem.
Seguimos a história de Ariosto, um panorama da vida campestre do homem gaúcho, em que o contato diário com a terra e a matança do porco mostram-se essenciais para a transição da meninice para a vida adulta; sinal de hombridade, do humano (razão) subjugando o animal (emoção). Ora de maneira divertida, ora de maneira cruel, observamos os percalços da juventude laboriosa de Ducchese, “comerás o pão com o suor de teu rosto”, seu descolamento do útero familiar, decorrente de um segredo indizível, e a trajetória meritocrata que leva-o ao sucesso financeiro na maturidade.
A ligação homem x porco x literatura é deveras intrigante. Deixando de lado os adjetivos pejorativos usados para ligá-los no cotidiano, há, no porco, a vontade de ser homem e, neste, a vontade de ser porco. Ser porco é libertar-se, é rolar-se na sujeira, nos próprios excrementos, na própria lavagem e, ainda assim, ser livre, liberto, hedônico. Mais do que homens, somos porcos. E havemos de sangrar a fim de tornarmo-nos outro, de transcendermos, de recuperar-nos.
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Ibrahim