Ele: o corpo

O cineasta alemão Werner Herzog dirigiu o documentário From one second to the next (De um segundo para outro) sobre acidentes de trânsito em que os motoristas, no momento da ação, teclavam mensagens no celular. O documentário integra a campanha “It Can Wait”, desenvolvida com a finalidade de tornar motoristas conscientes dos riscos de ler e de escrever mensagens ao volante.

O título do documentário, que remete ao presente-futuro, não é menos persuasivo do que as imagens e os depoimentos dos familiares das vítimas e dos motoristas que causaram os acidentes. E não deixa de ser impactante a eloquência do corpo das vítimas que, depois de um instante, não é mais o mesmo corpo e, desse instante em diante, talvez não seja mais o corpo amado.

Difícil não ouvir as imagens desse instante. Difícil aceitar o tempo desse instante. Difícil deparar com o futuro nesse instante.

Um corpo que tecla com outro – ação entre dois corpos com imagens – colide com um corpo. No entanto, este corpo não reproduz uma imagem – é um corpo estranho que está fora do enquadramento imagético da virtualidade. Nesse instante, o real descortina-se no que não é irreal: o corpo.

A fixação no presente sem futuro condensado no instante, que caracteriza o tempo da virtualidade, perde sentido no choque entre os corpos. O tempo fracionado entre a mensagem recebida e a enviada, que marca o ritmo da instantaneidade na virtualidade, não explica a chegada acidental do futuro. O instante seguinte se faz presente numa outra fração do tempo.

O futuro concretiza-se no corpo da vítima em um instante fora do tempo da virtualidade. Fora da noção instantânea do presente sem futuro do corpo que tecla. Num segundo, no instante seguinte, o presente torna-se o que não existe: o futuro. E o que é real parece irreal: um corpo sem imagem atravessado pelo futuro que chega violentamente num instante. Futuro que não foi inventado. Não foi desejado nem sonhado. Um futuro real demais. Seco. Desértico.

O belo filme Ela, de Spike Jonze, um dos melhores do ano, se passa em Los Angeles num tempo em que o virtual interage com o real em perfeita harmonia – um futuro próximo ou ainda distante?

Theodore (Joaquin Phoenix) apaixona-se por um Sistema Operacional (S.O.) que não possui nenhuma imagem, somente uma voz – da Scarlett Johansson.

Quando Theodore adquire o S.O., ele dá informações ao sistema da empresa de softwares sobre a sua relação com a mãe e escolhe uma voz feminina que se torna uma presença quase física na sua vida. Embora o S.O. chamado Samantha se queixe de não ter um corpo, ela se torna um corpo. Por que Samantha se torna um corpo para Theodore?

Em um encontro dele com a ex-mulher para assinar os papéis do divórcio – encontro que ele havia adiado – ela fica curiosa para saber como era a mulher com quem ele estava saindo – supostamente, ela queria descobrir o que essa mulher tinha que ela não tinha. Theodore diz uma das suas qualidades: amar a vida. Depois, naturalmente, conta-lhe que Samantha era um S.O.

Além de ter uma voz sensual, o S.O. era muito divertido e apaixonante. Como não se apaixonar por uma voz que se torna um corpo de palavras? Um corpo que reveste de fantasia o corpo do amado.

Ainda que a mulher por quem Theodore apaixonara-se fosse um pouco ou muito idealizada, a relação deles não era fake. E apesar de não ter um corpo de mulher, Samantha inventou um corpo que marcou profundamente os corpos de Theodore: o erótico, o afetivo, o da linguagem e o do homem. Eles se tornaram íntimos: amigos e amantes.

Theodore viveu uma bela história de amor com esse corpo de palavras que o ajudou a transcender o Theodore da dor do divórcio. Com o amor de Samantha, ele aprendeu a guardar o que é gostoso guardar de toda história de amor.

E o que o adorável S.O. teria para dizer às mulheres?



  • Eduardo Rennó

    Viviane,
    o que o S.O. teria para dizer as mulheres eu não sei. Mas eu posso dizer a você: adorei seu texto. Muito bom isso que você escreveu sobre os corpos. E adorei essa reflexão também em cima do filme Ela. Sou apaixonado com esse filme. Sem dúvida, o melhor filme americano do ano, não sei se desse ano, ou do ano passado. E acho que ganhou o Oscar de Melhor roteiro, merecido. É um futuro que já acontece na nossa frente, e nem nos damos conta.
    É muito bom refletir sobre isso. Beijos para você!
    Eduardo

    • http://balaiodavivi.blogspot.com Viviane C. Moreira

      legal, Eduardo! é um filme apaixonante mesmo. obrigada pelo carinho. beijo.

  • Clóvis Domingos

    ótimo e instigante texto. Você escreve muito bem. A questão do corpo hoje na virtualidade se tornou uma questão complexa. Colidir com corpos reais na vida parece ter se tornado uma virtualidade ou uma negação. Tem uma dimensão psicanalítica na tua escrita e reflexão. Estamos na era pós-humana? O que seria ser humano hoje? Parabéns!
    Clóvis.

  • http://balaiodavivi.blogspot.com Viviane C. Moreira

    legal seu comentário, Clóvis! talvez estejamos nesse momento de reinvenção do corpo. do corpo-tempo. hj usa-se muito a expressão “em tempo real”. (curioso, não é? pq o tempo sempre foi real, ou não? rs) há esse tempo que está fora da instantaneidade. há o tempo além do instante. o tempo que é tempo. e, claro, há o amor que passa por esse corpo… sua pergunta já é uma bela reflexão. obrigada pela conversa. beijocas.

  • Eliane Dantas

    Amar o corpo de palavras, nosso e do outro. Colidir com a palavra, nossa e do outro. O que é o outro quando não se houve a palavra dele? Até aonde a palavra do outro pode nos levar? Até aonde nosso corpo pode ir com a palavra do outro? O corpo é habitado pela palavra. Instigante reflexão. Viviane.

  • http://balaiodavivi.blogspot.com Viviane C. Moreira

    ah que belo seu comentário, Eliane. sim, o corpo é habitado pela palavra. obrigada pela sua bela palavra. beijocas.

  • Hugo Silva

    Belo texto, Viviane!

  • http://balaiodavivi.blogspot.com Viviane C. Moreira

    obrigada, Hugo. um abraço.

  • Pingback: o corpo & os corpos | videbloguinho()

  • Mônica

    Texto lindo !!

    • http://balaiodavivi.blogspot.com Viviane C. Moreira

      obrigada, Mônica. legal q vc gostou!

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