Liberdade econômica ajuda, mas não derruba uma ditadura sozinha
A própria ideia de um país impor um embargo comercial a outro e pensar nisso como uma punição tem em seu bojo um princípio elementar: livre comércio é algo excelente, e ainda mais excelente para o lado mais “fraco” (com menos dinheiro) da transação. Se a Coca-Cola quiser me punir, ela boicota a possibilidade de que eu consuma seus produtos, embargando minha garganta, que ficará seca sem Coca-Cola – se eu tentar “punir” a Coca-Cola não comprando seus produtos, apenas eu saio perdendo, mal podendo causar-lhe dano. É tão simples quanto parece.
A educação brasileira, hegemônica e ponta de lança de um culto de homogeneização de toda a sociedade, talvez não seja tão totalitária quanto a cubana, mas curiosamente repente pari passu todo o cabedal de clichês e bordões que o regime totalitário cubano usa para se manter no poder – e repete como se fossem fatos científicos, e não propaganda política genocida. Tal educação simplesmente inverte o sentido do princípio matematicamente óbvio acima. Critica o livre comércio, o “programa social” que mais enriqueceu os pobres em toda a história mundial, associando-o ao “imperialismo” (sem notar que inverte também o sentido deste segundo termo), a um só tempo em que atribui a miséria da economia planejada de Cuba ao embargo americano à ilha dos senhores Castro, imposto por John Kennedy para punir o regime comunista por suas inumeráveis infrações aos direitos humanos.
Esta educação, que ainda encontra eco no jornalismo, na academia e no imaginário coletivo do povo, não percebe que, ao culpar o embargo americano pela miséria do socialismo cubano, defende o que todo liberal sabe: que o livre comércio enriquece os pobres. Mais: que não é possível tentar explicar a miséria do mundo dizendo que países miseráveis, sobretudo africanos, são “capitalistas” (mesmo sem nenhuma empresa, bolsa de valores ou resquício de economia livre por estes países), a um só tempo em que se desesperam pela falta de capitalismo em Cuba.
Ora, capitalistas sabem mais do que socialistas. Por isso livros, inclusive defendendo o socialismo, são livres para serem lidos nos países capitalistas – mas nenhum livro explicando de fato o que é capitalismo será lido em um país socialista. Por isso, quando punem socialistas, punem impedindo o livre comércio – enquanto os socialistas, que vociferam contra o livre comércio, apenas o defendem como um bordão (“fim do embargo!”), sem perceber o conteúdo do que dizem – a saber, que socialismo é punição, que comércio capitalista é liberdade e riqueza, sobretudo para os pobres.
Contudo, é exatamente o funcionamento deste clichê oco em significado que determina os rumos do entendimento do mundo – e da geopolítica como um todo. O refrão do embargo é repetido por automatismo por professores e alunos, agitadores e agitados, sem que ninguém entre eles perceba a defesa de uma economia livre, contra o dirigismo central de uma economia planificada em nome da “igualdade”. Mas quais serão as consequências do fim do embargo?
Ora, Cuba pôde fazer comércio com o mundo inteiro desde a imposição do embargo. Mesmo com a América: a restrição é que empresas americanas não poderiam se instalar em Cuba, financiando projetos que acabariam nas mãos da ditadura sanguinária e desumana dos irmãos Castro. A América, afinal, é um dos maiores parceiros comerciais de Cuba, e recebe muito dinheiro da ilha – não podendo é investir nela.
Este é o famoso modelo de comércio sul-sul, ou seja, entre países “pobres”. Modelo que a diplomacia brasileira, sob gesticulação atabalhoada petista, quer seguir.
O problema é: isto não trouxe grandes benefícios para Cuba, que faliu fazendo comércio com países como a União Soviética (o comércio, no caso, é entre os dirigentes dos países de economia planejada, não entre os indivíduos de cada país, tratados como peões ou gado por seus líderes). Faltou comércio com a grande potência, aquela que enriqueceu em um século e, devido à sua Constituição liberal e seu amor pela liberdade de comércio, poderia enriquecer Cuba.
O regime castrista, assim, poderia continuar sendo uma ditadura brutal, com pequenas concessões em sua liberdade econômica (lastreáveis e reprimíveis conforme os ventos da conveniência), para pavonear-se perante o mundo de que não é miserável graças ao seu modelo totalitário socialista, e não às pequenas concessões que faria ao comércio. A um só tempo poderia fazer propaganda anticapitalista e sobreviver graças a pequenos surtos de liberdade capitalista ocasionais, volta e meia reprimidos por cartelas de racionamento e fuzilamentos. Os intelectuais e a “gente falante” da sociedade repetiria bovinamente a propaganda oficial, jurando tratar-se dos mais bem acabados tratados científicos sobre dignidade humana.
Desde a Revolução Russa, capitaneada pelo tirano Lenin, os socialistas sabem que o comércio, sobretudo comércio internacional, é fundamental para não matar ninguém de fome. Mesmo os maiores tiranos do mundo, socialistas e nacional-socialistas do quilate de Stalin, Hitler, Mao Zedong ou Pol-Pot, sabem da necessidade de comércio. Vide a Nova Política Econômica de Lenin, ou as concessões aos kulaks (pequenos proprietários) após o genocídio por fome do Holodomor, que vitimou cerca de 4 milhões de ucranianos em dois anos nas mãos dos socialistas. E vide os dois únicos tiranos socialistas que recusaram o comércio, Kim Il-sung e sua família, eternamente dependentes da China, e Nicolave Ceaucescu, morto pelo povo.
Os socialistas cubanófilos, portanto, querem o embargo na prática, por serem contra o comércio (mormente com países “ricos”, os de capitalismo mais desenvolvido), a um só tempo em que não querem o embargo como discurso, da boca para fora, apenas para justificar a miséria que é a economia dirigida.
É o mesmo gênero de abismo entre discurso e prática, de indignação seletiva, de moral malemolente que permite à esquerda criticar a ditadura militar brasileira (434 mortos em 21 anos) e tratar os ditadores cubanos (78 mil mortes em mais de 60 anos) como vítimas. Que os faz clamar por “direitos humanos” para defender assassinos e estupradores, e não assassinados e estupradas, a um só tempo em que chama justamente os punidores de estupradores de… estupradores, e nunca enxergam falhas de direitos humanos em regimes como o cubano.
Este tipo de contradição óbvia não apenas faz qualquer alma que pensa corretamente ser contra “o socialismo de Cuba”, mas ser o maior defensor ferrenho do capitalismo mais “selvagem”, porque é quando se nota como as economias mais abertas são mais vantajosas para os menos favorecidos.
Mas Fidel e Raúl Castro não são almas com um surto de bondade repentino. Como qualquer dirigente socialista, sabem que o discurso deve defender X e criticar X no momento seguinte, pois todo o socialismo é construído por um projeto de poder, e não por frios cálculos econômicos. Toda a miséria que o projeto de poder causa deve ser “suportada” pelo povo, dizem os mandantes, em nome da glória final do poder de planificação. O que querem com o fim do embargo é tentar atingir uma posição geopolítica de relevância de volta, visto que a União Soviética deixou Cuba passando ainda mais fome em 1991, e o pacto com a Venezuela petrolífera já dá sinais de cansaço. Afinal, querem comércio – mas não apontaram uma única concessão que farão em troca do fim do embargo na direção de uma Cuba mais livre.
O mesmo aconteceu com a China de Mao Zedong em 1972, quando foi visitada por um dos piores presidentes republicanos da história americana, Richard Nixon. De ideologia nula e envolto em um lamaçal de corrupção, até então ainda não descoberto, Nixon tentou uma aproximação com o totalitarismo que mais matou no mundo, cobrindo Mao de presentes sem exigência nenhuma em troca. Como resultado, Mao conseguiu uma publicidade enorme no Ocidente, com “maoistas” espalhados pelo mundo todo (como Luiz Gushiken, Secretário de Comunicação de Lula). A revelação dos seus crimes — que incluíam estupros coletivos, obrigar mulheres dando à luz a marcharem, “julgamentos” públicos com açoitamentos e mais de 70 milhões de mortes, a maioria por fome, com camponeses comendo cascas de árvore após terem seus grãos confiscados pelo poder central — não veio na mesma velocidade. Nixon logo seria o único presidente americano a renunciar.
Caso Nixon tivesse a inteligência e antevisão de Ronald Reagan, saberia negociar com Mao para evitar alguns outros milhões de mortos, concedendo pequenas vantagens (qualquer osso para um socialista é comida) em troca de abertura. Não foi o que aconteceu – e Barack Obama, um presidente cuja política externa é tão ruim que não consegue encontrar apoio nem em sua base Democrata, está fadado a repetir o erro de Nixon, permitindo uma subsistência da ditadura castrista sem nada em troca.
O liberalismo deve ser entendido como um sistema de leis efetivas. Quando se tem leis que protegem a liberdade de alguém trabalhar e manter os frutos do trabalho para si, de prosperar se trabalhar mais, de não precisar ser igual a uma forma geral, temos países de dignidade como os países de primeiro mundo. Quando as leis são falhas, quando há corrupção, quando há um planejamento central de burocratas, o resultado não pode ser melhor do que burocracia – e vira e mexe recai em genocídio.
Isto significa que as regras liberais e suas consequências (riqueza e liberdade) podem servir como lobby quando se lida com tiranos e opositores da liberdade. Até os maiores odiadores do capitalismo, sejam os maoistas de 68, os castristas de 2000, os degoladores do Estado Islâmico, os formadores de opinião brasileiros do gabarito de Chico Buarque ou Gregório Duvivier, ou o próprio Kim Jong-un, adoram as benesses do capitalismo. Porque a maior vantagem do capitalismo não é o Porsche, a Louis Vuitton, o iPhone ou o Rolex. A maior vantagem do capitalismo é ter comida. Além de coisas secundárias, como liberdade e livros.
Com o fim do embargo a Cuba, não veremos um único crítico do capitalismo agradecendo pela possível capitalização da ilha. Pelo contrário: a crítica aos liberais será ferrenha, já que encontraram um novo motivo para enaltecer a tirania cubana. É assim com o “pensamento” de esquerda, tão bem estudado em sua aversão brutal à realidade por George Orwell, por Lionel Trilling, por Jean-Pierre Faye e tantos outros. Ninguém perceberá a contradição – o projeto de poder fala mais alto do que a lógica fria.
Com uma Cuba com capital estrangeiro, o destino mais provável é apenas o socialismo com disfarce. Uma repaginação ou, quase literalmente, um banho de loja no totalitarismo genocida castrista.
A falsa “abertura” econômica da União Soviética durou menos de duas décadas para se tornar a autarquia poderosa de Vladimir Putin, considerado o homem mais poderoso do mundo – de colocar o presidente da América no bolso. A “abertura” econômica chinesa veio quando o genocídio já estava de volta em primeira marcha após Deng Xiaoping, não sendo, portanto, a única responsável pelo fim das mortes aos milhões por ano. Alguns países conseguiram conjugar uma abertura econômica verdadeira com uma ditadura sanguinária, como o Chile de Pinochet, o Bahrain ou Singapura.
Liberdade econômica ajuda, mas não derruba uma ditadura sozinha. O risco do socialismo cubano se repaginar e logo termos um Putin caribenho, financiando desgraças que vão do Irã atômico à Coréia do Norte, ainda é o destino mais provável de Cuba sem o embargo.
Voltemos a pensar na liberdade econômica como um prêmio a ser conquistado por leis efetivas, e não como um financiamento fácil para qualquer tirano a troco de nada. Pergunte a qualquer chinês.
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publicado inicialmente no blog do Instituto Liberal.
Flavio Morgenstern
Analista político, palestrante e tradutor. Escreve para o jornal Gazeta do Povo e o site do Instituto Millenium, entre outros. Seu primeiro livro é Por trás da máscara, sobre os protestos de 2013.
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