Três modos de ler um diário

Os diários de FHC revelam engrenagens que o próprio autor não percebe o tempo todo.


"Diários da Presidência: 1995/1996 (vol. 1)", de Fernando Henrique Cardoso (Companhia das Letras, 2015, 936 páginas)

“Diários da Presidência: 1995/1996 (vol. 1)”, de Fernando Henrique Cardoso (Companhia das Letras, 2015, 936 páginas)

1. Política, presidência e o dia a dia

Entre os dias 14 e 23 de dezembro de 1995, o presidente da República Federativa do Brasil estava em viagem ao oriente (China, Malásia) e voltando, passando pelos Emirados Árabes Unidos e por fim pela Espanha. Curiosamente, suas visitas a esses países estavam menos em suas preocupações do que os problemas brasileiros, aparentemente mesquinhos e insistentes. O relato desses dez dias feito pelo presidente não chega perto de ser um relato de viagem dos mais inclinados ao turismo ou às reflexões sobre as relações internacionais dos anos imediatamente posteriores à queda do muro de Berlim. O Brasil não se afastou de seu presidente durante aquelas viagens.

A primeira-dama Ruth Cardoso acompanhou seu marido. Não era sua primeira vez em Pequim (ou Beijing, “como eles chamam agora” [p. 350]): meses antes falara na Quarta Conferência Mundial da Mulher, e seu discurso incluíra uma referência ao déficit de participação das mulheres na política. Naquele ano houve a primeira posse de uma mulher como governadora de estado (Roseana Sarney) e apenas 6% dos membros da Câmara dos Deputados eram do sexo feminino. Hoje são ainda poucas (10%), apenas Suely Campos (Roraima) governa um estado, mas a primeira presidente da República está no poder, pelo menos por enquanto.

Ruth Cardoso é uma das figuras recorrentes nos Diários da Presidência, como seria de se esperar. Mas a vida pessoal quase nunca está colocada em primeiro plano pelo presidente. A impressão que se tira de cada trecho é que a presidência é mesmo um trabalho sem folga. Mas é possível rastrear alguns momentos importantes, reconstituir o trajeto.

Por exemplo, no dia 18 de dezembro a entrada no diário (gravado em fitas, o que sem dúvida maximizou o armazenamento e a extensão das informações – a escrita sempre leva mais tempo e demanda maior reflexão), feita em Kuala Lumpur, busca “completar a informação” dada nas gravações feitas na China. Era 1995 e as comunicações eram rápidas, mas não praticamente perfeitas como hoje em dia. Preocupado com a situação no Congresso, o presidente mal pôde se preocupar com a viagem. Mas encontra um tempo para descrever a Malásia que viu:

Crescimento impressionante, a cidade [Kuala Lumpur] totalmente renovada, eles têm horror a tudo que era mais antigo, e, na base, muito comércio. [p. 354; esse parágrafo tem outro trecho importante. Deixemo-lo para adiante.]

O caminho presidencial passaria pelos Emirados Árabes, mais especificamente Abu Dhabi. O chefe-de-estado brasileiro não parecia nada ansioso por esse momento (“talvez com o emir, não sei, tomara que o emir não esteja” [p. 357]); estava bem mais interessado na Espanha.

O capítulo se encerra mencionando a disputa política vindoura no país ibérico, entre o então primeiro-ministro Felipe González, e seu futuro desafiante, José María Aznar. O presidente encontraria ambos no dia 23; de Aznar, disse que era “uma figura contida e muito produzida”, esperando para ver se a promessa de melhores relações vinda do líder do Partido Popular se concretizaria; de González, vem claramente ao leitor a identificação do presidente com o líder do PSOE: “acho que foi um encontro de amigos” [pp. 359-360].

2. Política, geopolítica, sociologia, história

Fernando Henrique Cardoso certamente admirava Felipe González. Importante político na democratização da Espanha, o primeiro membro do PSOE a se tornar premiê deixou um legado misto: alguma liberalização econômica nos tempos mais fortes do thatcherismo, com privatizações de empresas estatais como a Telefónica, mas aumento da rede de proteção social (afinal, o PSOE valorizava o S de seu nome). Entretanto, havia também o desgaste com as crescentes denúncias de corrupção e favorecimento, que impulsionaram a vitória de Aznar em março de 1996.

Cardoso encontrou-se com González muitas vezes depois de ambos deixarem o poder. A mais recente foi em apoio à oposição ao bolivarianismo venezuelano e ao recrudescimento da ditadura chavista. Mas não seria exagero dizer que, em 1995, González era um modelo: FHC se identificava com a Terceira Via europeia, que começava a deixar sua marca e tivera González como um precursor.

Desejoso de operar ao mesmo tempo a construção de uma social democracia brasileira desde os anos 80 – o nome PSDB tem mais a ver com ele do que com os democratas-cristãos Montoro e Covas – e a modernização do Estado iniciada por Collor e continuada com maior sucesso por Itamar, seu padrinho quase involuntário, FHC estava procurando estabelecer um caminho político-ideológico que permitisse essa difícil equação.

FHC buscava delimitar sua situação como presidente ao mesmo tempo que tentava entender a situação do Brasil como país a partir de um sistema político aparentemente disfuncional, que encabeçava, mas não pretendia controlar. Ou não conseguia controlar. Ou, no mínimo, um sistema infenso às influências mais variadas, necessitando uma abordagem analítica muito mais original do que os trabalhos sociológicos até então (e até agora, 2015) permitiam. Mas era preciso tentar.

O que há de estrutural é que nós não contamos com um quadro em que Executivo e Legislativo tenham suas competências definidas. […] Temos, então, um problema institucional, que existe, permanece, não foi resolvido. Nessa parte não houve reforma da Constituição, e a minha força advém da sociedade. [p. 349]

Não era uma reflexão vazia. Naquele momento, e em seus dois mandatos, FHC se via às voltas com parceiros de governo muito difíceis, especialmente Antônio Carlos Magalhães. E o caso complicado daquelas semanas de fim de ano era o da empresa Esca e seus negócios com a Aeronáutica.

3. Política e política

O presidente não se preocupava com o escândalo da Esca (relacionado ao do Sivam) por seus efeitos imediatos, mas pelo problema que isso gerava na sua relação com o Legislativo. E aí vem a miríade de telefonemas, conversas e mensagens cruzadas que é uma constante de todos os capítulos do livro. Os Diários da Presidência foram criticados em alguns círculos que frequento por oferecerem uma visão aparentemente mesquinha da política, em que as picuinhas do dia a dia ganham precedência sobre os grandes debates nacionais. Oras, abandonai as ideologias sem rebarbas, vós que entrais.

O Congresso está arranhando o governo para enfraquecê-lo. Essa questão da Esca, se for a fundo, é uma complicação grande, não tem nada a ver comigo, vem de antes do Itamar, mas explode com ele, e aí pode haver uma relação perigosa entre a Aeronáutica e a Esca, porque funcionários da Aeronáutica eram pagos pela Esca para melhorar o salário. Não sei se é isso que está no relatório, mas parece ser verdadeiro. Ou seja, vai de novo confundir o Sivam. [p. 349]

A história estourou mesmo em dezembro. A sacanagem era relacionada com o que é descrito pelo presidente: a empresa Esca, que tinha membros da Aeronáutica na folha de pagamento, obtivera contratos para o Sistema de Vigilância da Amazônia (Sivam). Não foi o caso mais importante do ano (esse troféu cabe à Pasta Rosa), mas é um exemplar típico das relações de poder em vigência no Brasil desde… sempre. Talvez exacerbado em alguns momentos, piorado ainda mais em outros, elevado a política governamental explícita em vários. Não falarei sobre qual o momento atual nessa nossa tendência, mas a Lava Jato e a Zelotes falam por si sós.

O que é vital é perceber como as picuinhas, a mesquinharia, o dia a dia no varejo (e às vezes no atacado) são importantíssimos para entender nossa situação política. Não vamos fingir que Eduardo Cunha caiu do céu. Chantagens como as dele existiram desde sempre, e todos os governos tiveram de lidar com diferentes graus e situações. A novidade sob FHC foi estabelecer-se uma coalizão governista que ia dos defensores de penúltima hora da ditadura militar (o então grande PFL) até alguns de seus maiores adversários (PSDB, mas também os setores do PMDB que apoiaram o governo desde o começo).

Antônio Carlos Magalhães, por exemplo, não parou quieto. Naquele mesmo dia em que a Esca ganhava as páginas de jornais, estava enfurecido pela representação que o Banco Central fizera contra si. E tinha o filho Luís Eduardo na presidência da Câmara dos Deputados para ampliar seu poder. Foi seu auge. Ainda encontramos José Sarney e Jader Barbalho, próceres do PMDB no Senado, servindo suas dificuldades e recebendo vários dos dividendos. Praticamente não há capítulo em que não sejam citados, capazes que eram de orientar bancadas a favor e contra o governo se necessário.

O Brasil não mudou tanto assim. Vejamos o resto da viagem malaia:

O que o primeiro-ministro quer mesmo é que o Brasil faça o seu comércio com o Sul da Ásia através da Malásia, como se fosse um grande entreposto. Os brasileiros estão querendo a construção de uma grande hidrelétrica aqui, uma hidrelétrica fantástica, Bakun ou coisa assim, que eles vão fazer, e aí estão as empresas do Brasil, sobretudo a CBPO. [p. 354]

A CBPO (Companhia Brasileira de Projetos e Obras) era e é parte do grupo Odebrecht. Os planos para Bakun prosseguiram, mas foram interrompidos na crise asiática de 1997, que também causou fortes efeitos no Brasil. A proximidade das empreiteiras com o poder não nasceu na última década, embora tenha tido mais oportunidades do que nunca para prosperar no novo século.

* * *

São três possibilidades; ler o dia a dia no poder, analisar a sociologia do poder, tentar experimentar o amargo que vem com o poder. Cada leitor certamente preferirá uma às outras duas, ou talvez considerará a elaboração de uma quarta opção, ou ainda a chance de mesclar as várias abordagens possíveis e construir sua própria experiência de leitura. Como se pode ver, aplicar métodos de leitura pode ser recompensador de maneiras diferentes. A vantagem dos diários de FHC não está, como seus escritos acadêmicos ou políticos, na qualidade de suas reflexões ou na acurácia de sua visão dos fatos. Estas, embotadas pelo calor do momento, dão espaço à exposição nua de engrenagens que o próprio protagonista não percebe todo o tempo. E é aí que a variância de modos de ler nos permite aproveitar um livrão muito bem-vindo e aguardar os próximos três.

Amálgama




Vinícius Justo

Mestre em Teoria Literária pela USP.


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