Ronaldo Correia de Brito criou uma das obras mais importantes da literatura brasileira recente.
O tempo e a memória: duas forças brutais agindo sobre o mesmo microcosmo de personagens desgraçadamente excluídos da História – ou pertencentes a outra, paleolítica, ainda viva por teimosia ou falta de opção. Em O amor das sombras, a mais recente coletânea de contos de Ronaldo Correia de Brito, o autor volta a sua melhor forma desde Galileia, romance vencedor do Prêmio São Paulo de Literatura em 2009.
Com o olhar voltado para uma terra anciã, esmagada por um mundo em transformação e já inclemente com seus habitantes mais antigos, os narradores dos doze contos que compõem o volume são como os deuses da antiguidade: poderosos, mas detentores das mesmas fraquezas humanas, as mesmas paixões e vícios. Os deuses-narradores jamais se apiedam de nossa condição desprivilegiada de mortais. O retrato do interior no Nordeste é duro, com pouca esperança e quase mítico.
Para dar forma às histórias de O amor das sombras, Ronaldo Correia de Brito levou três anos, lapidando-as minuciosamente e criando uma das obras mais importantes da literatura brasileira recente. Todas as narrativas são independentes entre si, porém detentoras das mesmas preocupações com a memória, a família e o tempo. Sobretudo, são os movimentos de pertencer e separar, em suas muitas concepções possíveis, que fazem a ação acontecer.
Pertencer
Todos os personagens estão atrelados a tradições arcaicas, modos de vida a caminho da extinção e do esquecimento. O pertencimento a essas tradições produz a maior parte do mal-estar que os aflige. Seus dilemas são produtos de culturas que se desmancham pouco a pouco para dar caminho a outras, criando um terreno de confusão em que o passado e presente se digladiam sem descanso. O quanto de nossa história e do passado podemos deixar para trás para seguir adiante?
O título sombrio, O amor das sombras, desafia a claridade inerente ao mundo nordestino. Ronaldo prova que a vida ensolarada entre os trópicos não é garantia de alegria. No centro de toda amargura que obstrui o acesso a essa alegria há quase sempre um conflito familiar. Os personagens fazem parte de famílias marcadas por tragédias shakespearianas que atravessam gerações e das quais parecem incapazes de se desvencilhar – um pertencimento nocivo que os envolve como o abraço que precede a traição certa ou o beijo de Judas em Cristo.
Essa dificuldade de se separar da vida – e da família – conhecida até então é o mote da maior parte das narrativas. A forma como cada personagem lidará com a limitação é mostrada pela habilidade de Ronaldo com as palavras, um triunfo da prosa contemporânea. No entanto, há também, um tipo de pertencimento ainda maior em ação no livro: o apego do autor a tudo que se aproxima do pequeno homem, o indivíduo cuja história passará despercebida de qualquer crônica, oficial ou não. Seus personagens vivem amores, desilusões, experimentam a violência, a luxúria e convivem com traumas que não devem ser distantes dos conhecidos por Ronaldo em sua longa carreira como médico.
Separar
Por outro lado, a separação também está sempre presente, nada parece se unir em definitivo na vida dos malfadados personagens de Ronaldo. As mais gritantes talvez sejam as da divisão de classes e a entre homem e mulher, capazes de criar um abismo que leva à morte, como em “Noite”, o primeiro conto. Nele, um casal morre afogado após um acidente de moto enquanto tentavam fugir para viver o romance, proibido pela família abastada da moça. Ao mesmo tempo, a casa de duas matriarcas da família é transformada em museu enquanto elas ainda vivem no local, sendo elas mesmas peças arcaicas em exposição. As duas, Otília e Mariana, são separadas do tempo presente, parecendo viver em um período remoto alheio à modernidade enquanto recordam a história da família, cada perda e cada adeus. Nada podem contra os planos dos homens e dos mais jovens, mais esclarecidos.
Separados também estão os personagens em relação aos próprios sonhos. Ronaldo Correia de Brito faz com que a premissa não soe piegas, tratando com habilidade o tema e sem incorrer no crime capital do sentimentalismo barato. Um bom exemplo é do garoto de “Bilhar”, que sonha em ser escritor, mas vive em um local remoto e indiferente à cultura literária. Ele encontra em um homem mais velho a oportunidade de se aproximar do sonho ou se resignar em definitivo diante das dificuldades.
A luta entre pertencimento e separação é a luta entre o velho e o novo, entre o fraco e o forte, o apego e o desapego. É o contraste que tinge cada conto com um matiz de realidade e significância. Outras formas de separação existem nas páginas desse livro triste, levemente pessimista, mas nunca fatalista. Há algum espaço para a esperança. Ela não se encontra necessariamente nas páginas do livro, mas vive nas divagações sobre certas regiões do país que pareciam ter desaparecido da literatura contemporânea, na gente simples que luta para não perecer.
O amor das sombras não é um livro perfeito, mas é um livro importante. A despeito de apresentar, por vezes, uma prosa truncada e convoluta, a proposta dos contos escapa ao narcisismo contemporâneo chamado de autoficção. Volta a olhar para a sociedade real, coloca em voga um Brasil que se aproxima do Brasil verdadeiro – tudo isso é mérito de Ronaldo Correia de Brito. Somente a experiência e uma sensibilidade aguçada poderiam conceber o que se vê nas páginas desse volume. Leitura mais do que recomendada.
Douglas Marques
Psicólogo curitibano, atua junto a migrantes e refugiados. Também se refugia, mas nos livros. Está concluindo especialização em antropologia cultural.
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