No desigual, a semelhança

"O Contrário de B." esboça e arte-finaliza um conjunto de seres sufocados que, de humanos, têm muito pouco.


contrariodeb

“O contrário de B.”, de Bruno Liberal (Confraria do Vento, 2015, 108 páginas)

5.

Na capa a imagem de um cavalo. Tá, na verdade um homem, sentado, com uma espécie de máscara de cavalo que, também na verdade, é a parte que cobriria a cabeça se ele estivesse usando a fantasia equina completa. Falando em cobrir, o homem com a máscara-que-não-é-máscara de cavalo está sentado e tem água quase o afogando. Como se diz por aí, está “com água até o pescoço”. A feição do cavalo evoca seu desespero, apesar do resto do corpo, que é de homem, estar tranquilamente sentado, como se estivesse esperando ser atendido, mas sem ter pressa no atendimento. Na contracapa, com quase todas as características acima, vemos uma mulher com a cabeça de coelho fora d’água. Ao invés do homem, parece estar mais confortável, já que tem nas mãos uma xícara e um pires denunciando estar bebendo talvez um chá ou cafezinho. A obra The zoo, de Lara Zankoul, não foi por acaso escolhida para ser usada na apresentação do novo livro de Bruno Liberal. Ela e seu conteúdo lembra que somos todos animais. Falar e pensar não constitui grande diferença a apartar-nos dos que uivam ou lambem o próprio rabo. Se existe algum diferencial é o de que estamos sempre no limite, no mais das vezes criados por nós mesmos.

4.

O contrário de B. esboça e arte-finaliza um conjunto de seres sufocados que, de humanos, no sentido pueril ou ingênuo (até natalino) de sua definição, têm muito pouco, assim como deixa de lado a função de edificar o belo através da literatura para revelar o submundo das vidas privadas familiares, da escrotidão social e seus arremedos de civilização apoiados em cínicas convenções. Para a Amálgama, Bruno afirmou que escreve sobre o que lhe incomoda, principalmente por acreditar no papel dialético do texto literário. “A família é um infinito de sentimentos dentro de uma panela de pressão. Não sei muito claramente o que move os temas do que escrevo, mas deve ser consequência de reflexões sobre meu papel como pai de duas crianças de classe média que observa a sua volta um mundo inteiro de máscaras”.

3.

São exemplos em que as lacunas e fraturas da família – que poderia ser a de qualquer um – se destacam os dois primeiros contos homônimos (“Pater familias”). Dividindo as narrações em vários pontos de vista (seja em primeira pessoa, seja em terceira, com ou sem interferências opinativas e de ações, além da utilização de itálicos para a inserção de novas vozes ou pela utilização de parênteses, revelando segredos irreveláveis dos personagens), nestas bifurcações aprofunda o que todos nós temos de menos nobre e (sim, intencionalmente às vezes) não fazemos questão de esconder dos entes (sim, intencionalmente às vezes não) queridos. No mesmo caminho, em “Nós contra eles” fica evidente o quanto a agonia das responsabilidades, em algum momento da vida, pesa nas costas dos indivíduos descritos por Liberal, que se utilizam de um caso extraconjugal, de uma necessidade ferrenha de entrar em universos próprios para, pelo menos por uma certa medida de tempo, esquecer-se de quem somos quando no papel cumprido na maior parte do dia.

2.

No conto-título, ao retratar um morador de rua, denuncia como seu oposto (ou seja, todos os cidadãos limpos, celetistas, pagadores de impostos, transeuntes das médias e grandes metrópoles, ditos “normais”) pode ser pior do que sua sujeira, fingida ignorância de si e do mundo que o cerca e seu desgrenhamento físico. Já nas demais histórias, o mesmo sistema alternado de narrações entre pai, mãe e filhos dinamizam o livro. São os casos de contos como “Distante”, “Obedeça seu pai”, “Hoje não” e “Não precisa gritar”. Algumas narrativas, porém, perdem um pouco do crível e beiram a sonhos ou pesadelos do autor, como “Dentes de cachorro”, “Isto não é jeito de voar” e “Possibilidade de estar incompleto”. Contudo, mesmo nessas últimas suas descrições (e, claro, nas anteriores) lembram uma luta com um afeto, em que oscilam murros e afagos, engenhando esboços (intencionais?) poéticos. Bruno responde: “Procurei quebrar a monotonia dos contos. Em alguns costurando um pouco mais de poesia à prosa, em outros, brincando com a narração. Também é uma forma de respirar dentro do livro, uma fuga para o leitor”.

1.

Ao passar os olhos pelos relatos de Bruno, verificamos, na maioria dos casos, um espelho, nefasto, ressaltando nossas (nem tão) disfarçáveis e vexatórias semelhanças. Nelas vamos chafurdando, decrescentes da realidade que supomos conhecer.

Amálgama




Andrei Ribas

Autor, mais recentemente, de Animais loucos, suspeitos ou lascivos e Cada amanhecer me dá um soco. Vive em Santa Rosa-RS.


Amálgama






MAIS RECENTES