Assim como em 1992, é muito bom que o STF exerça sua jurisdição, possibilitando que o impeachment dê-se de acordo com a legalidade.
No dia 03 de dezembro, o PCdoB entrou com uma arguição de descumprimento de preceito fundamental no Supremo Tribunal Federal, instrumento jurídico que busca um pronunciamento da corte suprema sobre a recepção ou não de diploma normativo anterior à promulgação da Constituição de 1988. O pedido do partido político centra-se na recepção de diversos dispositivos da lei do impeachment, buscando que o Supremo adeque o procedimento da lei citada à Constituição.
Três são os principais pontos da ADPF do PCdoB: ofensa ao direito e ao princípio da publicidade (art. 5º, LX e art. 37, caput da CR); à ampla defesa e ao contraditório (art. 5º, LV da CR); e ao devido processo legal (art. 5º, LIV da CR). Assim, insurge-se o partido pela necessidade de publicidade de todos os atos do processo de impedimento (inexistência de sigilos e votações secretas); pela necessidade da defesa ser intimada para manifestar-se em todas as fases e antes de todas as decisões – possibilitando que influencie essas tomadas de decisão; pela necessidade de que sejam observadas todas as disposições legais e constitucionais referentes ao processo de impedimento, com as atualizações do sentido atribuído pelo STF á cláusula do devido processo.
Num segundo momento, quando da votação secreta dos membros que farão parte da comissão que analisará e emitirá parecer sobre o pedido de impeachment, o mesmo partido entrou com uma medida cautelar incidental no mesmo processo, buscando uma decisão que sustasse a tramitação do processo de impedimento até o pronunciamento do Supremo sobre a ADPF. Tal decisão foi concedida com fundamento na plausibilidade jurídica do pedido e no perigo de dano pela demora da decisão (afinal, se o processo continuasse correndo e o STF julgasse procedente a ADPF, vários atos do Poder Legislativo seriam anulados e teriam que ser repetidos, causando demora e insegurança jurídica).
Essa decisão gerou grande confusão e apreensão em parcelas consideráveis da população. Podemos, de plano, descartar qualquer acusação de casuísmo ou de ativismo judicial, já que o STF interveio apenas quando provocado e quando existia questão constitucional importante no caso. Não há como o tribunal deixar de se manifestar quando provocado por tratar-se “apenas de uma comissão”. Ele é o guardião da Constituição e, portanto, da legalidade constitucional, devendo por ela velar.
Entretanto, outra importante questão tem surgido: por que essas questões aparecem apenas agora, se já houve o impeachment do Collor, em 1992, com as mesmas regras? Se o STF reconhecer inconstitucionalidades na lei do impedimento, isto significa que o processo de impeachment do Collor foi ilegítimo (inconstitucional)?
Primeiramente, precisamos desfazer um mal entendido. Não é verdade que o Supremo não tenha sido provocado quando do processo de impeachment de Collor e que não tenha existido “judicialização” das questões que surgiam sobre a aplicabilidade da lei 1079/1950 e da sua adequação à nova Constituição. Em 1992, foi via mandado de segurança que Collor contestou o procedimento estabelecido pelo presidente da Câmara à época, deputado Ibsen Pinheiro, respondendo questão de ordem. E, ainda, atuou a corte suprema durante todo o processo para garantir a sua legalidade. O ministro Gilmar Mendes, inclusive, reconheceu em duas oportunidades que o Congresso deveria ter promulgado uma nova lei do impeachment após as discussões surgidas em 1992, visando adequar o processo ao que dispõe a Constituição de 1988.
Superado esse mal entendido, podemos buscar um entendimento profundo sobre como se dá o funcionamento do Direito, contemporaneamente. Mesmo que o STF tenha decidido questões muito parecidas no passado, a mudança dos tempos muda o Direito (e isso é perfeitamente normal). Isto porque o texto das leis pode permanecer o mesmo, mas o sentido das normas é criado e recriado, constantemente, a cada nova aplicação. Com certeza, tal criação não é completamente livre, no sentido de arbitrária. Existem os limites semânticos do texto (“não matarás” jamais poderá significar o mesmo que “matarás”, por exemplo), bem como o aplicador está condicionado – limitado – pelas aplicações passadas daquele texto, isto é, o aplicador deve manter a coerência e a integridade do Direito.
Uma corte que se pronunciou pela ilegalidade de uma prática pode muito bem, passados os anos – isto é, com a mudança das circunstâncias –, rever seu posicionamento. No caso em tela, o entendimento jurídico do alcance da ampla defesa e do contraditório modificou-se muito desde o início dos anos 90. De outro modo, toda a mecânica de recebimento da denúncia no processo penal comum, por exemplo, também foi modificada. Até mesmo o entendimento do alcance da publicidade dos atos do poder legislativo – especialmente das votações secretas – sofreu mutações.
Assim, é inverídico o que vem sendo propagado por “especialistas com agenda” – cada qual com seu interesse, tanto à esquerda, quanto à direita – que as decisões do STF podem tornar ilegítimo o impeachment de Collor! O entendimento do Tribunal pode ser diferente em ambos os casos e isso apenas significará que seu entendimento modificou-se, pois assim também modificou-se o Direito. Não haverá injustiça nesse ponto: nem em um, nem em outro caso.
De todo modo, assim como ocorreu em 1992, é muito bom que o STF exerça sua jurisdição constitucional e “diga o Direito”. Isto possibilitará que o processo de impeachment dê-se de acordo com a legalidade constitucional, isto é, com o respeito aos direitos e garantias que permeiam o sistema constitucional, sem solavancos e com segurança. Isto muito contribuirá para a manutenção do nosso Estado Democrático de Direito.
-
Júlio Crespo
-
Hugo Silva
-
Júlio Crespo
-
Hugo Silva
-
Júlio Crespo
-
-
-
-
-
Thiago A.
-
Hugo Silva
-