As intervenções públicas de Safatle têm o tom de um diálogo autista da esquerda com ela mesma.
Há anos, Vladimir Safatle se esforça para manter a posição de “guia da esquerda” no debate público. O seu último texto na Folha é mais um exemplo desse esforço. Safatle vem “desconstruir” a ideia de que vivemos uma onda conservadora no país. Não existe avanço dos conservadores, ele diz. O verdadeiro problema é que o “campo das esquerdas” passou por uma “decomposição radical”.
Qual a solução? Fácil, meus amigos. Ela está nos livros do próprio Safatle, este intelectual moderno e atento às modas do pensamento crítico incendiário. Um homem corajoso, porque sacode a esquerda e diz que ela não deve ter “medo de dizer o seu nome”. Por sinal, é isso que está no título de um de seus livros, que ele cita, de modo subliminar, na última frase do artigo. Se Safatle tivesse escrito “a solução para este problema sou eu”, o sentido do parágrafo seria o mesmo.
As intervenções públicas de Safatle têm o tom de um diálogo autista da esquerda com ela mesma (nesse sentido, são tipicamente acadêmicas). Este é um amadorismo imperdoável para alguém que já tentou se lançar na carreira política. Mas quando Safatle escreve na condição de intelectual público, é nesta condição que ele deve ser lido. Aí o problema não é o amadorismo, e sim o uso habitual de argumentos horrorosos para defender o seu projeto para a esquerda.
Não fosse a facilidade de discursar só para os convertidos, Safatle poderia fazer o mínimo que o tema do seu artigo exige para provocar um bom debate sobre a atual cultura política: definir o conservadorismo como um conceito político e, aí sim, vasculhar a realidade em busca dos sinais efetivos de que uma direita conservadora está despontando no país. Pra que servem os intelectuais públicos, se não para construírem discursos objetivos a partir de conceitos claros e distintos?
Em vez disso, Safatle prefere forjar um esquema simplório com as intenções de voto para a presidência, colocando políticos de perfis tão diferentes como Aécio Neves e Jair Bolsonaro no mesmo balaio dos conservadores brasileiros. De modo igualmente torto, ataca José Guilherme Merquior e Roberto Campos como se estes dois liberais históricos fossem representantes óbvios do conservadorismo. Em outro momento, Safatle quase sugere que a dita decomposição da esquerda brasileira tem alguma coisa a ver com o fato de que o PT está no governo há 12 anos, colonizando e paralisando a crítica de numerosos intelectuais esquerdistas. Mas dizê-lo com a devida clareza seria constranger uma parte importante do público de Safatle, essa gente que apoiou e vai continuar apoiando o PT nas próximas eleições porque confia no argumento de que um “partido de esquerda” (!) é essencialmente melhor que os “conservadores”. Nessa hora, inclusive, alguém deverá resgatar o esqueminha de Safatle para mudar Marina Silva de lugar, como em 2014, atribuindo a ela o rótulo de conservadora da “nova direita”.
O importante não é entender os conceitos políticos, e sim usá-los para articular posições no poder. Se a era PT vai deixar algum legado para o “pensamento crítico” brasileiro, essa regrinha de ouro estará lá, com certeza.
O conservadorismo, no texto de Safatle, não é um conceito político, mas um clichê que só faz sentido na cabeça da esquerda que nunca levou a sério o pensamento conservador, nunca quis entendê-lo, nem se importa com o conhecimento básico da sua diferença para com o liberalismo. Enquanto isso, revistas e livros de pensadores conservadores e liberais são cada vez mais publicados e lidos. A internet facilita os encontros, e grupos de estudos avessos a compromissos com o pensamento de esquerda começam a aparecer nas universidades, indicando o que talvez seja uma ampliação da pluralidade teórica nestes ambientes. O Partido Novo foi fundado com notável apoio de segmentos da classe média insatisfeitos com a esquerda, e sua agenda liberal é notória pela franqueza de intenções.
Uma “onda conservadora” parece existir, sim, mas ela é também uma “onda liberal”. As duas se aproveitam da banalidade em que o pensamento de esquerda se meteu. Se eu me interessasse por ser “guia da esquerda” (os intelectuais acadêmicos adoram esta posição), arriscaria o palpite de que o mais importante, para a própria esquerda, é começar a perceber e entender melhor os seus inimigos. O artigo de Safatle faz exatamente o contrário disso.
Rodrigo Cássio
Professor e pesquisador. Autor de Filmes do Brasil Secreto (Ed. UFG).
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