Mais do que dos parlamentares, a sorte de Dilma depende das ruas.
Apesar das formulações preguiçosas ou interessadas de nossos jornalistas, a verdade é que tanto Dilma quanto Cunha se chantagearam mutuamente. O poder de barganha de Cunha era a decisão sobre abertura do processo de impeachment contra a presidente. O poder de barganha de Dilma era salvar o mandato de Cunha através do seu partido, o PT. Uma troca que parecia provável, se não fosse constrangedora para ambos os lados e incômoda para o fiel da balança: o PT.
Não foram por escrúpulos morais ou ideológicos que o PT entregou Cunha às feras, mas por desejo de manter o poder. Mesmo que Cunha não abrisse um processo de impedimento, a oposição poderia recorrer ao plenário. E mesmo que fosse possível impedir este processo, o PT encontrar-se-ia na mesma lama. O governo é amplamente rejeitado, Lula e o seu partido tornaram-se inviáveis eleitoralmente, e a saída de prefeitos, vereadores, deputados e senadores não param de sangrá-lo. Ficar nas mãos de Cunha e encarar o degaste definitivo da única coisa que o PT possui hoje – sua fiel base de intelectuais, sindicalistas e juventude estatizada – não parecia ser uma alternativa alvissareira. Para quem está quase no fundo do poço já não há mais quase nada a perder (considerando que Dilma já fatiou e terceirizou seu mandato). O PT optou pelo all-in. Tudo ou nada.
Como já afirmei antes, o PT precisava de Cunha para se livrar. Fieis aliados de outrora, a polarização contra o inimigo número um da elite midiática lhe parece agradável agora. Todo castigo é pouco para quem se locupletou no período petista. Despido em público, desmoralizado perante o seu eleitor, Cunha é um cadáver insepulto. A perda de mandato é seu destino mais provável, ver o sol nascer quadrado uma opção considerável. Morto politicamente, Cunha fez seu gesto derradeiro: deu abertura ao processo de impeachment da presidente. Caiu atirando, morreu com a dignidade do bandido que não se esconde nas sombras por vergonha de ser o que se é.
Agora é all-in para Dilma e para o PT. Tudo ou nada também para os que clamam por seu impeachment. O PT e a presidente esperam que a derrota do processo de impedimento seja mais um gesto de legitimidade para o seu governo. Aquele gesto derradeiro que pacifique o país ao oferecer Cunha e seus comparsas menores no Congresso como símbolo de sacrifício. A máquina de guerra petista (principalmente a midiática) será lançada novamente em combate e, como na eleição passada, se espera que durante o processo a presidente recupere sua popularidade.
É interessante notar como um processo de impedimento do presidente não passa da economia dos sacrifícios e das dádivas. Os que são favoráveis ou contra o impeachment esperam nisto um gesto simbólico e derradeiro que reordene as coisas, que nos libere das tensões acumuladas, mesmo sabendo que a realidade é infinitamente mais complexa e que envolve todas as nossas elites, o consenso social-democrata da Nova República, uma máfia estatal, o estraçalhamento de toda alta cultura e a nossa boa e velha cultura do repúdio.
A crença num ato redentor é a mãe de todas as desilusões. No dia seguinte ao impeachment, a rainha que João Santana quis emular teria sido degolada e o mundo continuaria o mesmo: o homem com os seus pecados e tormentas, as nossas elites progressistas reordenando-se em torno de uma nova pacificação que salve seu velho consenso (a volta da terceira via), o povo – quem sabe – feliz pensando ter o país em suas mãos. A economia poderá enfim sair dessa depressão e, quem sabe, possamos voltar a comprar algumas coisinhas e encher melhor nossa barriga.
Seja como for, dificilmente uma presidente será afastada de seu cargo sem um apoio maciço de nossas elites em torno de uma narrativa que gere esta legitimidade. É essa unidade no mundo moderno que gera um contágio entre as pessoas em torno de um gesto simbólico que produza esperança em função de um reordenamento. Diferente dos tempos de Fernando Collor, sabemos que boa parte de nossas elites são contrárias ao impedimento de Dilma. Enquanto isto, o grosso do “grande empresariado” está envolvido até a alma com a governança petista.
Só as ruas e a irrupção das massas em seu imenso desatino de alegria e esperança por “justiça” ou “vingança” poderá gerar um contágio em torno do sacrifício simbólico da rainha simulada. Mais do que dos parlamentares, a sorte de Dilma depende de la calle. As ruas são as cartas do baralho lançadas ao vento.
Nos próximos dias, la calle será para Dilma os belos versos da poeta María Eugenia Caseiro:
La calle es un dolor, una punzada
donde confluyen las premoniciones
un corazón cansado que envejece,
su melodía sin voz
se lleva las últimas raigambres
Sueña la calle su primer bostezo
entre viejas fachadas de edificios.
E, para nós, la calle será o alter ego como nos versos de Octávio Paz:
Es una calle larga y silenciosa.
Ando en tinieblas y tropiezo y caigo
y me levanto y piso con pies ciegos
las piedras mudas y las hojas secas
y alguien detrás de mí también las pisa:
si me detengo, se detiene;
si corro, corre. Vuelvo el rostro: nadie.
Todo está oscuro y sin salida,
y doy vueltas y vueltas en esquinas
que dan siempre a la calle
donde nadie me espera ni me sigue,
donde yo sigo a un hombre que tropieza
y se levanta y dice al verme: nadie.