A contemplação do amor

por Wagner Schadeck (28/12/2016)

Eis a minha obsessão de sete anos: a visão amorosa na poesia camoniana.

Sou um obcecado confesso. Faz sete anos que pesquiso sobre a visão amorosa na poesia camoniana. Sete anos de trabalho. Quando contemplarei os outros setes anos?

Uma das obras-primas camonianas, o soneto Sete anos de pastor resgata a referência bíblica[1], segundo a qual parte do amor é o trabalho e parte a contemplação.

Sete anos de pastor Jacob servia
Labão, pai de Raquel, serrana bela;
mas não servia ao pai, servia a ela,
e a ela só por prêmio pretendia.

Os dias na esperança de um só dia
passava, contentando-se com vê-la;
porém o pai, usando de cautela,
em lugar de Raquel, lhe dava Lia.

Vendo o triste pastor que por enganos
lhe fora assi negada sua pastora,
como se a não tivera merecida,

tornando já a servir outros sete anos,
dezia: – Mais servira, se não fora
para tão longo amor tão curta vida.

A cautela de Labão não parece ludíbrio maldoso, mas parte dos trabalhos do amor. Na edificação amorosa, Lia representa sete anos de atividades práticas, sete anos de esforço físico. Jacó não trabalharia por sete anos sem a promessa do amor contemplativo, o amor de Raquel. Porém, é de Lia, não de Raquel, que ele receberá os filhos.

Goethe também via o amor como equilíbrio entre o trabalho e labor. Como Ministro-Presidente do Conselho de estado do Ducado de Weimar, ele mesmo encarregara-se das “atividades administrativas, dedicando-se à construção de estradas, mineração, retificação de rios, incremento da economia rural e floresta”, como lembra Albert Schweitzer[2]. Quem sonharia ver o preferido dos deuses transpirando em mangas de camisa?

Dir selbst sei treu und treu den andern
Und dein Streben sei’s in Liebe,
Und dein Leben sei die Tat.

*

Sê fiel a ti mesmo; fiel aos outros…
Que o amor seja o móvel de teus esforços
E tua vida ação ininterrupta.
(Tradução de Pedro Almeida Moura)

O soneto camoniano reelabora a narrativa bíblica dos trabalhos do amor, tendo como moralidade um aforismo de Hipócrates cristianizado: “A arte é longa. A vida é breve.”.

O amor que vence a morte é lugar-comum indubitável. Talvez a primeira referência estritamente literária famosa seja o romance de cavalaria Tristão e Isolda[3], embora o casamento pós-morte, simbolizado pela aliança entre a roseira e a parreira sob os túmulos dos amantes, seja tardio. Mas este mito será modelado pelos séculos até adquirir a sua mais alta forma na ópera de Richard Wagner. Excluída aquela união pós-morte alegórica, neste mito permanecem os trabalhos do amor. A paixão são os sete anos de trabalho que o Amor exige. Os provençais chamavam esse período de “maladie de la pensée“, que poderia ser traduzido por “moléstia do pensamento” ou “doença da alma” – imagino que o leitor maliciosamente pode ter escarnecido algo como “doença mental”… mas seria uma perversidade. E tanto Tristão e Isolda quanto quaisquer casais apaixonados devem fugir da matilha da perversidade que os acossa. A imagem não é gratuita; ela é usada na ópera wagneriana exatamente para representar a caça ao amor verdadeiro promovida pelos “impotentes do sentimento”.

É por isso que Nelson Rodrigues, eterno hiperbólico, dizia que o casal que se ama deveria amar-se no segredo da noite mais escura no ermo de um cemitério[4].

Essa moralidade amorosa parece destilar o relacionamento para que não embriague os enamorados. O enamoramento, como diz Francesco Alberoni, é a iluminação, identificação, enleio… – é cuidar e ser cuidado. Logo a manutenção do namoro, ou cortejo, como dizíamos outrora, é parte prática dos trabalhos do amor. Os trabalhos de Jacó começam com a retirada da pedra que tapa o poço. O período de preparação amorosa requer a cautela de Labão. Com prudência, os namorados preservam o amor, enquanto símbolo de energia, contemplação e geração, de ser cortado pela perversidade do mundo – diabolus.

É que os enamorados nunca sem encontram lado a lado, mas face a face. A política igualitária nos relacionamentos é a própria lâmina da perversidade. Como nos recorda Roger Scruton[5], C. S. Lewis[6] dizia que os apaixonados estão sempre frente a frente, olhos nos olhos. Eis a contemplação dos sete anos de amor.

O filósofo neoplatônico Plotino explica belamente a contemplação amorosa. Mitologicamente, engendrada pelo Céu (Urano), a Beleza (Afrodite Celeste) engendra-se no Tempo (Cronos). Ao contemplá-lo, sua visão amorosa engendra o Amor (Segundo Gabriela Bal, o filósofo chega a justificar o nome Eros etimologicamente com a palavra orasis: visão). Mas nessa metafísica amorosa, a queda do olhar também representa a queda amorosa, justificando belezas e amores terrenos, volúveis e diversos como os desejos…

Eis a minha obsessão de sete anos: a visão amorosa na poesia camoniana.

Durante estes sete anos, o trabalho mais árduo é o dos críticos. Um soneto como “Transforma-se o amador na cousa amada” parece o verdadeiro Tonel de Danaides para camonianos. Os críticos preenchem-no com petrarquismo, neoplatonismo e aristotelismo, menos com Camões.

É certo que o primeiro verso resgata um verso idêntico dos Triunfi de Petrarca[7], mas é também um verso da visão mística de São João da Cruz[8].

Pouco se sabe se o poeta leu as traduções latinas que Marsílio Ficino (1433 – 1499) fez das Enéadas plotinianas, ou mesmo uma releitura cosmológica do Banquete platônico[9], segundo o qual o Amor está no centro e sua visão amorosa que anima o cosmos. Alguns sugerem que Camões tenha tido contato com o neoplatonismo e, por conseguinte, com estética da visão amorosa, por meio de Leão Hebreu, Judá Abravanel (1464 -1535), com os Diálogos de Amor[10].

Seja como for, como dizia Saraiva, Camões não poetiza conceitos metafísicos; sua lira e épica estão impregnadas de experiência de vida. Ele é um homem experimentado nas artes bélicas e amorosas. Como bem lembra Lourenço, as amadas de Camões não são como a amada alegórica, a Beatriz de Dante ou a Laura de Petrarca. É claro que tanto Dante quanto Petrarca erigiram monumentos poéticos a partir de suas visões amorosas. Mas Camões compõe até sobre fracasso de suas visões amorosas.

Erros meus, má Fortuna, Amor ardente
Em minha perdição se conjuraram;
Os erros e a Fortuna sobejaram,
Que para mim bastava Amor somente.

Tudo passei; mas tenho tão presente
A grande dor das cousas que passaram,
Que já as frequências suas me ensinaram
A desejos deixar de ser contente.

Errei todo o discurso de meus anos;
Dei causa a que a Fortuna castigasse
As minhas mal fundadas esperanças.

De Amor não vi senão breves enganos.
Oh! Quem tanto pudesse, que fartasse
Este meu duro Génio de vinganças!

O fracasso durante os sete anos de Lia é uma queda do espírito. Na mitologia plotiniana, Próspero (Póros) e a Penúria (Pênia) são pais do Amor genioso (Eros). Durante as celebrações da Beleza (Afrodite), Próspero teria ficado bêbado. Mendigando na festa, a Penúria engravidara de Próspero. Eis a natureza desse amor genioso: rico, mas mendicante.

O leitor deve se lembrar que os tormentos do amor são representações desse tipo de amor. Mas como inconstância feminina na lírica horaciana, a tempestade amorosa aqui aparece uma visão de fraqueza. O enamoramento deixa-se contaminar pela perversidade das paixões.

Talvez a personagem feminina que melhor represente essa briga apaixonada tenha sido a Cíntia das elegias eróticas de Propércio – mulher passional cheia de unhas e afagos.

De mesma forma, a melhor personagem masculina que represente essa perversidade do pensamento tenha sido o amor filial de Lear, da tragédia de Shakespeare – o homem que envelheceu sem se tornar sábio.

Como no lamento de Tristão e Isolda wagneriana, o homem com a mente e a mulher com o coração devotado à morte.

Retornando ao Camões, segundo Cristiano Martins, a poesia lírica camoniana apresenta um homem cindido entre o desejo e a santificação. Desta forma, o que lhe é central senão a contemplação amorosa?

Porque o Frecheiro cego me esperava,
pera que me tomasse descuidado;
em vossos claros olhos escondido.

Ou ainda em outro soneto:

Quem pode livre ser, gentil Senhora,
Vendo-vos com juízo sossegado,
Se o Menino que de olhos é privado
Nas meninas de vossos olhos mora?

A metáfora dos olhos é um motivo recorrente em vários outros sonetos de Camões: “Vossos olhos, Senhora…”, “Vós, d’olhos suaves e serenos…”, “Pois meus olhos não cansam de chorar…”, “Um mover d’olhos, brando e piadoso…”, “Aqueles claros olhos que, chorando…”. E não seria exagero pensar que é a contemplação amorosa que movimenta a Máquina do Mundo, no Canto X de Os Lusíadas.

Vês aqui a grande máquina do Mundo
Etérea e elemental, que fabricada
Assi foi do Saber, alto e profundo,
Que é sem princípio e meta limitada.
Quem cerca em derredor este rotundo
Globo e sua superfície tão limada,
É Deus: mas o que é Deus, ninguém o entende,
Que a tanto o engenho humano não se estende.

No universo dos olhos o poeta lê piedade, esperança e amor. Ao contemplar, o amador transforma-se em amado. Mas se o jogo de desdenhar é o enamoramento, com a metamorfose do amor, os namorados se reconhecem por meio da contemplação afetiva. O amor é oferta, identificação e caridade. Por isso nos sete anos de amor contemplativo vence o vencido. Somente quem ama servir, serve para amar.

______
REFERÊNCIAS

ALBERONI, Francesco. Enamoramento e amor. Rio de Janeiro: Rocco, 1981.

CAMÕES, Luis de. Lírica: Luís de Camões: seleção, prefácio e notas de Massaud Moisés. São Paulo. Ed. Cultrix, 1997.

CAMÕES, Luis de. Os Lusíadas. Edição organizada por Emanuel Paulo Ramos. Lisboa. Porto Editora. s/d.

CAMÕES, Luis de. Rimas: Texto estabelecido e prefaciado por Álvaro J. Da Costa Pimpão. Coimbra. Ed. Livraria Almedina, 1994.

CAMÕES, Luis de. Sonetos. Organização e Introdução Alexei Bueno. Rio de Janeiro. Ed. Lacerda, 1998.

CIDADE, Hernâni. Luís de Camões: O Lírico. Lisboa. Ed. Livraria Bertrand. 1967.

FILHO, Leodegário A. de Azevedo. O Cânone Lírico de Camões. Rio de Janeiro. Ed. Novacultura, 1976.

LOURENÇO, Eduardo. “Camões e a Visão Neoplatónica do Mundo”, pp 55 – 70. In: LOURENÇO, Eduardo. Poesia e Metafísica. Lisboa. Ed. Gradiva, 2002.

MARTINS, Cristiano. Camões: Temas e Motivos da Obra Lírica. Rio de Janeiro. Ed. Americ = Edit, 1944.

PLATÃO, O Banquete/PLOTINO, Do Amor. Tradução de Albertino Pinheiro. São Paulo. Ed. EDIPRO, 1996.

PLOTINO. Enéadas III, IV (introducciones, traducciones y notas de Jesús Igal). Madrid. Ed. Gredos, 1999

PLOTINO. Tratados das Enéadas. Tradução, apresentação, notas e ensaio final de Américo Sommerman. São Paulo. Ed. Polar, 2002.

PEIXOTO, Afrânio. “Camões Lírico” pp 41 – 120. In: PEIXOTO, Afrânio. Rhythmas de Lvis de Camoens. São Paulo. Ed. Monsanto Editora Gráfica, 1924.

PETRARCA, Francesco. O Cancioneiro. Trad. Jamil Almansur Haddad. Rio de Janeiro. Ed. José Olympio, 1945.

_____________ As Rimas de Petrarca. Trad. Vasco Graça Moura. Lisboa: Bertrand, 2003.

SARAIVA, A. J. e LOPES, Oscar. História da Literatura Portuguesa. Porto Editora, 2001.

[1] Cf. Gênesis 29:1-36:5.

[2] Cf. SCHWEITZER, Albert. Goethe: quatro discursos. Tradução de Pedro de Almeida Moura. São Paulo: Melhoramentos, 1950. Convém destacar a mensagem goetheana que o conferencista oferece: “Sê fiel a ti mesmo, e à medida que te transformes num homem pensante, introspectivo, não deixes também de ser, na medida de tuas forças, um homem de ação!” (p. 81).

[3] Cf. Gottfried von Strassburg. Tristán e Isolda. Trad. Ilse M. de Brugger. Institución Cultural Argentino-germana, s. d.

[4] “Os impotentes do sentimento precisam matar o amor.” Cf. a crônica Ninguém pode saber que você ama. in: RODRIGUES, Nelson. O óbvio ululante – primeiras confissões. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.

[5] Cf. SCRUTON, Roger. Coração Devotado à Morte – O sexo e o sagrado em Tristão e Isolda de Wagner. Trad. Pedro Sette-Câmara. São Paulo: É Realizações, 2010.

[6] A referência de Scruton é Lewis, C. S. Alegoria do Amor – Um estudo da tradição medieval. Trad. Gabriele Greggersen. São Paulo: É Realizações, 2012

[7] Cf. PETRARCA, Francesco. Triunfos. Trad. Luís Vaz de Camões (atribuída). São Paulo: Hedra, 2006; Os triunfos de Petrarca. Trad. Vasco Graça Moura. Lisboa: Bertrand, 2004.

[8] Cf. Narrativas místicas: antologia de textos místicos da história do cristianismo / Maria Clara Bingemer e Marcus Reis Pinheiro (orgs.). São Paulo: Paulus, 2016.

[9] Cf. FICINO, Marsilio. El libro dell’amore. Ed. Olschki, Firenze 1987.

[10] Cf. HEBREO, Leão. Diálogos de Amor. Roma, 1535.

Wagner Schadeck

Nasceu em Curitiba, onde vive. É tradutor, ensaísta, editor e poeta. Colabora com a Revista Brasileira (ABL), com a Revista Poesia Sempre (BN) e com os periódicos Cândido e Rascunho. Em 2015, organizou a reedição de A peregrinação de Childe Harold, de Lord Byron, pela Editora Anticítera.

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