Diferentemente das literaturas europeia e norte-americana, a literatura brasileira oferece somente exemplos esparsos do Diabo.
Ich bin der Geist, der stets verneint!
Goethe
1.
No cenário da literatura ocidental, sempre se reservou espaço para o protagonismo ou ação do Diabo ou Satanás, o adversário. O mais breve panorama sobre a literatura moderna já nos permite lobrigar a silhueta do odioso inimigo da humanidade, seja em Doutor Fausto, de Thomas Mann; em O Mestre e a Margarida, de Mikhail Bulgakóv; Satã em Gorai, de Isaac Bahevis Singer; The Demon, infelizmente ainda não traduzido para o português, de Hubert Selby Jr.; ou ainda Sob o Sol de Satã, de Georges Bernanos. Não somente nos dramas humanos, mas – nenhum teólogo objetará – também no drama da salvação, ou teodrama (Hans Urs von Balthasar), o Demônio tem sua função divinamente designada, seja como o exemplo máximo da profundidade da redenção com a apocatástase de Orígenes, seja como o cão ou macaco de Deus, sempre atento às ordens ou disposto a imitar distorcidamente as obras de seu Mestre.
Um dos eixos de Até você saber quem é, romance de estreia de Diogo Rosas G., é o questionamento do papel de Satanás na literatura do Brasil, ou, de modo mais abrangente, a temática de uma fonte pessoal do mal nas narrativas brasileiras. O personagem Daniel Hauptmann, jovem e talentoso escritor, ansiando por todos os meios se libertar de Curitiba, numa espécie de “travessia” não somente geográfica mas existencial, se lança na tarefa de composição de um romance sobre as viagens jesuíticas na Ásia e o encontro de um dos sacerdotes com o Príncipe do Oriente, que vem a se revelar como sendo o próprio Demônio. Seguindo a linha de obras como Confession of a Justified Sinner, de James Hogg, e em contraposição à queixa[1] de um afetado secretário de embaixada que conhece numa festa, o romance de Hauptmann, Os Diálogos do Castelo, é uma espécie de panegírico ao Príncipe que reina sobre os extremos da terra, uma declaração de sua vitória sobre os religiosos que se encontravam em seu palácio em Goa. Com efeito, o sucesso de seu romance, que se tornou best-seller no Brasil e no exterior, juntamente com as premiações, traduções e honrarias conferidas ao autor, serviram-lhe de passaporte para fora de sua provinciana cidade natal. Outrossim, a composição do romance é, segundo o personagem, uma espécie de suplementação a um tema distorcida ou insuficientemente trabalhado na tradição do romance brasileiro:
A história nasceu de uma implicância com Guimarães Rosa. Na verdade, quando comecei a escrever Os diálogos do castelo, eu tinha dois objetivos com o livro: ir embora daqui e melhorar o Grande Sertão: Veredas (p. 62).
De fato, num de seus diálogos, Hauptmann indaga à namorada Juliana e ao amigo Roberto, o narrador do romance e biográfico do autor, qual é o romance, dentro da literatura brasileira, que trata com deferência acerca de Satanás. A resposta, quase um lugar-comum nos círculos literários, é Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa. De semelhante modo, numa entrevista ao jornalista Paulo Belotti, Daniel Hauptamann apresenta sua perspectiva acerca do romance:
– Olha, é complicado. Por um lado, percebi que Grande sertão: veredas é um livro profundamente satânico. O satanismo é o centro, a verdadeira essência do romance. Para ser sincero, acho que fui o primeiro a perceber isso de verdade.
– Satanismo? Como assim?
[…]
– Grande sertão: veredas é um livro abrasivo, sem suavidade, que não seduz. Esse exagero marcial me incomodou, sabe? É claro que o Diabo tem também essa cara, o general Sherman que o diga. Quando os homens se matam, Satanás sorri e esfrega as mãos, satisfeito. Mas não é tão simples, as coisas não são tão simples assim, meu amigo. O Demônio é muito mais do que isso (p. 65-66).
De fato, a epígrafe mesma do romance de Rosa já contém em si, como núcleo semântico, um dos nomes do pai da mentira: “o Diabo na rua, no meio do redemunho”. Se o Demo está literal e graficamente no meio do redemoinho, então os eventos que constituem o romance são linhas centrífugas da sede do mal; e, por isso, toda a narrativa de Riobaldo, confessando seu pacto com o Capiroto numa encruzilhada, é, num primeiro plano, uma tentativa – de antemão frustrada – de negar a realidade do mal, já que sua alma disto depende; daí a semelhança de seu discurso a um rio baldo, um fluxo malfadado. Mas, conforme Hauptmann percebe, Grande Sertão: Veredas é também um romance pautado na invocação do Maligno, como forma de cumprir sua travessia, primeiro pelo árido Liso do Sussuarão e, por fim, numa sombra de redenção, ao infinito, segundo as palavras (e símbolo) finais do romance. O compadre Quelemém, espírita sábio que escuta e aconselha Riobaldo no que diz respeito ao seu pacto, por sua vez, transita entre (em mais um jeu de mots de Rosa) o “além” e “amém”, um possível guia numa nova travessia (para o infinito?).
Obcecado pela imagem de Satã, Hauptmann enumera todos os nomes pelos quais a figura demoníaca é mencionada ao longo da obra de Guimarães Rosa, e, convencido de que nomeamos para ocultar, como em alguns rituais de exorcismo nos quais o espírito maligno é vencido pela recitação de seu nome, o jovem escritor por fim dá a entender que a sequência de nomes é uma forma velada de invocação. Portanto, Riobaldo invocou o demônio para sua travessia, de modo que sua narrativa é, em si mesma, demoníaca. Neste ponto, um primeiro nível de leitura nos permite crer que Daniel Hauptmann também segue o mesmo caminho de Riobaldo. Determinado a realizar a travessia e abandonar de vez sua Curitiba, o escritor, tendo supostamente encontrado a chave interpretativa do romance, também se lança na recitação dos nomes do anjo decaído; e, nesse momento, como que possuído, se vê aturdido em meio à estrada que conduz para fora de sua cidade, ignorando a forma como chegara ali:
– Eu não conseguia parar de pensar [no romance Grande sertão: veredas] – disse –. Nem vi como cheguei ao parque. Quando ergui a cabeça já estava lá. De repente, me peguei olhando a BR-277 quase deserta, só com alguns caminhões passando devagar. Eu nunca tinha reparado no movimento da estrada, mas acho que não era normal ela estar tão vazia (p. 192).
E, mais adiante, Daniel retoma mais uma vez o motivo da travessia, sua tão ansiada meta de deixar Curitiba, e sua relação com o satanismo inerente ao romance de Rosa:
– Não, Roberto. Não! É o simbolismo da coisa, você não vê? A estrada, a travessia, a partida de um lugar e a chegada a outro. E o mais importante e que eu não consegui, fiquei no meio do caminho, entende? Eu estou preso aqui, definhando e morrendo nesta cidade. Inconscientemente, tentei sair e falhei. É aí que entra o livro.
– Ok, me explique.
– O centro da história é a travessia do Liso do Sussuarão, agora eu vejo. Lembra disso? (p. 193).
Daniel relembra a seu amigo que o grupo de jagunços do qual Riobaldo e Diadorim faziam parte planejou flanquear o grupo adversário, atacando de surpresa a família desguarnecida de Hermógenes, “bandido terrível, reputado, ‘pactário’”. Todavia, a dificuldade de execução do plano se pautava na travessia do Liso do Sussuarão, “uma região desértica e misteriosa que ninguém nunca havia cruzado”. Em sua primeira tentativa de cruzá-lo, os soldados, liderados por Medeiro Vaz, são exauridos pelo calor, alcançando somente metade do caminho.
Contudo, “mais tarde, Riobaldo busca o Demônio e, aparentemente, torna-se pactário também”. Após o pacto, Riobaldo “desafia o novo líder, Zé Bebelo, que se retira sem luta”, e, rebatizado como Urutu Branco, lidera os jagunços através do Liso de Sussuarão. “E então, o que acontece? Eles completam a travessia!”. Destarte, Daniel afirma, peremptório: “A pergunta que tem de ser respondida pelos negadores de Satanás é: como um jagunço ordinário foi capaz de triunfar onde os maiores guerreiros do sertão fracassaram? Levado pelo Diabo, é claro! Uma travessia como essa não se faz sem ajuda! Palas Atenas ajudou Odisseu, o Demônio ajudou Riobaldo. Eu tentei partir sozinho e fiquei no meio do caminho (p. 195)”. Portanto, “não há dúvida de que Riobaldo é ‘pactário’. A prova é a travessia do Liso do Sussuarão; ela é a correspondência material da travessa de sua alma para a escuridão” (p. 199).
Se a travessia do Liso de Sussuarão é evidência inconteste não somente da existência mas também da consecução do pacto com o Diabo, segue-se que a celebração de Os diálogos do castelo, que rendeu o reconhecimento, premiação e principalmente a partida (ou travessia) de Curitiba para o mundo, é indício do pacto de Daniel com o Adversário. A composição de seu romance é espécie de tributo ao Príncipe do Oriente, uma oferenda pactual para sua travessia: “Se eu mesmo percebi que faltava um bom retrato do Demônio na literatura brasileira, como poderia ser mais óbvio? Eu vou criar esse retrato, Roberto, e ele vai me tirar daqui” (p. 205).
Segundo Hauptmann, a chave hermenêutica de interpretação de Grande sertão: veredas é o nome, ou, antes, sua recorrência que indica camaradagem ou ao menos convivência:
– Pelo amor de Deus! Me digam quantas vezes vocês acham que o nome do Demônio é mencionado no Grande sertão?
– Ai, Dani, sei lá, muitas. Com todos aqueles apelidos sertanejos, só ali…
– Justamente! Essa é a chave! Vocês não veem? Essa é a chave! (p. 200).
E em seguida enumera vários dos quatrocentos e trinta e nove nomes que sublinhara na sua leitura, nomes com os quais Riobaldo designa o Diabo. Ora, se nas tradições místicas, o Tetragrammaton é tido como tão sagrado que sua mera pronúncia é vetada, e se, segundo o jovem escritor, “uma das formas de operação do satanismo é a inversão de fórmulas e símbolos cristãos” (p. 201), a repetição estonteante dos nomes e alcunhas do Diabo mencionados por Riobaldo constitui-se talvez como cerimônia de invocação ou, pelo menos, vênia; portanto, “Grande sertão: veredas – é, ao mesmo tempo, uma celebração e uma invocação do nome de Satanás!” (p. 202).
Daniel Hauptmann, nesse momento, toma uma Bíblia de sua estante e lê o Salmo 91:
– Porque a mim se apegou, eu o livrarei/ eu o protegerei, pois conhece meu nome”. Esse é o Salmo 91, está claro agora?
– Não. Se a história toda já dá a entender que o Riobaldo é “pactário”, qual é a novidade? – perguntou Juliana.
– O nome, Ju! A novidade é o nome! – exclamou Daniel. – “Eu o protegerei, pois conhece meu nome”. Sim, Riobaldo era mesmo “pactário”, mas tem algo muito mais profundo escondido ali. A pergunta que eu me fazia era “onde está o Diabo no Grande sertão?”. Pois bem, a resposta é: “Por toda parte!” (p. 201)
Não coincidentemente, Daniel Hauptmann, ao interpretar o “nome” originalmente mencionado no Salmo 91:14 como sendo referência ao nome do Diabo e não de Deus, inverte uma fórmula cristã, o que, segundo sua própria definição, constitui-se como forma de operação do satanismo. De modo significativo, o Salmo 91, afora sua recitação habitual, por parte dos crentes, para o afastamento do mal, é citado duas vezes seguidas por Satanás, durante a tentação de Cristo, após oferecer a este toda a glória e autoridade dos reinos deste mundo:
Então, o levou a Jerusalém, e o colocou sobre o pináculo do templo, e disse: Se és o Filho de Deus, atira-te daqui abaixo; porque está escrito: Aos seus anjos ordenará a teu respeito que te guardem [Salmo 91:11]; e: Eles te susterão nas suas mãos, para não tropeçares nalguma pedra [Salmo 91:12] (Evangelho de Lucas 4:9-11)[2].
De todo modo, se Hauptmann é um pactário como Riobaldo, e se sua obra é, semelhantemente ao Grande sertão: veredas, saturada de demonismo, também há possivelmente uma chave de leitura subjacente, num nível mais imanente, embora não menos pérfido, que trataremos adiante.
2.
Em Até você saber quem é, o mal se instaura por meio de um mise en abyme: uma obra sob o signo da encruzilhada e da travessia (Grande sertão: veredas) serve de chave esotérica para a composição de outro romance, Os diálogos do castelo, que trata acerca de um padre denunciado à Inquisição, Diogo de Távora, e seus diálogos com o Príncipe do Oriente, que foram “registrados pelo religioso em cartas endereçadas ao superior da Companhia de Jesus e recuperadas apenas no início do século XXI”, durante período do império colonial português na Ásia; e este último romance, por sua vez, juntamente com seu processo febril de criação, constitui a “matéria bruta da vida humana” modelada em A vida do escritor brasileiro Daniel Hauptmann, narrada por um amigo, do personagem Roberto, seu melhor amigo.
Nesses círculos concêntricos, portanto, alguns pontos referenciais e simbólicos são-nos significativos. Primeiramente, com relação ao império português na Ásia, é interessante relembrar que, em seu livro O Redemunho do Horror: as margens do Ocidente, Luiz Costa Lima elenca a tese de que o sentimento do horror ocidental remonta ao choque de culturas e a violência dele decorrente quando da expansão do Ocidente para os continentes africano e asiático. Neste último caso, citando Ásia, de João de Barros, relato histórico dos feitos dos portugueses nos territórios da Índia, deparamo-nos com uma passagem expressiva:
Nosso Senhor como por sua misericórdia queria abrir as portas de tanta infidelidade e idolatria para salvação de tantas mil almas que o demônio no centro daquelas regiões e províncias tinha cativas […] (Barros, 1552, Livro I, capítulo II, p. 14).
Dentro da concepção do império português, a Ásia é mantida cativa pelo demônio que reinava em seu centro, tal como manifesto pela figura do Príncipe do Oriente. Ademais, o próprio sobrenome de Daniel Hauptmann é uma espécie de destinação ao demonismo; a referência aqui é Gerhart Hauptmann, vencedor do Nobel de Literatura de 1912, autor que o crítico Félix Alfred Voigt designava como “poeta demoníaco e apaixonado”[3]. Com efeito, seu livro, O Herege de Soana, é também uma espécie de narrativa dentro de outra narrativa – um homem com traços e trejeitos do paganismo clássico, o “herege”, que carrega consigo um manuscrito de um padre que se apaixonara por uma mulher pária, filha de pais incestuosos. Estrutura análoga perpassa o romance de Daniel (padres, manuscritos, figuras destituídas da graça, etc.).
De semelhante modo, formalmente falando, Até você saber quem é é estruturado em doze capítulos e um epílogo, totalizando, pois, treze seções – número já naturalmente agourento[4]. Todavia, a camada mais subterrânea que aludimos acima é perceptível a partir do momento em que se atenta para a presente realidade literária do Brasil e suas reverberações no romance de Diogo Rosas G. Ora, Hauptmann afirmava que lhe cabia a composição de uma obra que desse o tratamento apropriado ao Demônio na literatura brasileira. Com efeito, diferentemente das literaturas europeia e norte-americana (em especial com Cotton Mahen, ou Nathaniel Hawthorne, para quem o mal tornou-se obsessão literária), a literatura brasileira oferece somente exemplos esparsos do Diabo: alguns exemplos são Macário, de Álvares de Azevedo, uma espécie de Mefistóteles byroniano; ou a alegoria mais humana do que demoníaca de A igreja do diabo, do Bruxo do Cosme Velho.
Todavia, em vez de sintoma de libertação, isso revela apenas a assolação da literatura brasileira por energúmenos, que tornam seu último estado pior do que o primeiro. O título de um opúsculo da subliteratura espírita é oportuno: Brasil, a pátria do Anticristo, de Erasto de Carvalho Prestes. Onde estão, hoje, no Brasil, os inventores, no sentido poundiano? Por toda a parte há somente a concretização dos receios de Todorov, isto é, o puro niilismo, Mefistóteles, espíritos que tudo negam. Nesse sentido, uma das passagens cruciais do romance é a polêmica entre Bruno Tolentino e os irmãos Campos no que toca à tradução dos poemas de Hart Crane, publicada em 1994. De modo magistral, Diogo Rosas G. entremeia a ascensão diabólica de Hauptmann com os acontecimentos literários brasileiros da década de 90, que, de certo modo, foram essenciais para a compreensão das atuais condições da literatura brasileira. As críticas de Tolentino às traduções dos irmãos Campos, que são inseridas dentro da estrutura do romance, foram, em certa medida, divinatórias, entrevendo a senda na qual os escritores brasileiros desde então percorreriam, confundindo “rigor formal com rigor mortis”:
[…] E estamos a meio do poema de Crane, que a flor dos Campos já rachou ao meio com inabilidade de peggior fabro, para quem o rigor formal se confunde com o rigor mortis […] A semelhante fac totum foi abandonada a lira nacional, a sabichões dessa ordem a palma e o espaço e o silêncio em que operar a lobotomia do verso e do jovem. Macacos me mordam, mas desde minha infância gente assim se arvora a ensinar-nos to make it new. E vai-se ver não sabe fazer nem o velho e cansado parnasianismo de pacotilha das mais ralas versões de Guilherme de Almeida, por exemplo, que, justiça seja feita, jamais resvalaram em paralisias tais.
Com as repercussões da controvérsia, o editor de Hauptmann, André Weiss, constrange-o a tomar partido do célebre abaixo-assinado dos intelectuais brasiliensis (cerca de setenta nomes da intelligentsia, dentre os quais Marilena Chauí, Gilberto Gil, Caetano Veloso, Gal Costa e surpreendentemente João Cabral de Melo Neto) contra as críticas de Tolentino – abaixo-assinado que é emblema dos círculos culturais do país, ainda movidos pelo coronelismo de salão, a vaidade planetária que exige, por força gravitacional ou circunstancial, a órbita lisonjeadora de satélites, o paroquialismo que se transveste de tropicalismo e evidentemente o asinus asinum fricat dos saraus e eventos literários de compinchas. Roberto, o narrador, percebe a perfídia de toda a situação cultural brasileira e a forma como ela, semelhante ao Diabo, demanda a alma em troca da travessia: “A iniciação de meu amigo nas camorras do submundo intelectual brasileiro me deixou um pouco triste, mas não teria sido suficiente para me tirar o sono” (p. 96). André Weiss, tendo percebido a intransigente recusa de Hauptmann em participar do abaixo-assinado, contata Roberto na esperança de que ele convença seu amigo e a fim de lhe explicar a “gravidade” da situação e as implicações editoriais, políticas e culturais daquele acontecimento na esfera literária, alertando que “seu autor de maior sucesso cedo ou tarde sofreria retaliações se não assinasse o texto dos amigos de Augusto”:
Não repita o que estou dizendo, mas a verdade é que, de certa forma, eles foram vítimas semiconscientes de uma imposição da hegemonia de esquerda a nossos estudos literários. É claro que, na maior parte das vezes, essa discussão se deu em códigos que apenas os iniciados eram capazes de decifrar. Mas quando os concretistas eram atacados como “formalistas”, isso queria dizer fascistas, pró-ditadura militar (o que nunca foram) e todas essas coisas horríveis que você conhece (p. 98).
Em resumo, a introdução de Hauptmann aos círculos e os acintes literários brasileiras é uma espécie de iniciação, com seus códigos e ritos internos, cuja demanda difere somente em grau dos pactos com o Diabo. É desnecessário dizer que o demonismo de nossos círculos não se reduz às extravagâncias dos poètes maudites; na verdade, está relacionado a três aspectos, em geral olvidados, do Diabo: em primeiro lugar, sua natureza caluniadora, visto que a própria etimologia do nome indica um ente que injustamente critica ou acusa outrem; em segundo lugar, sua mendacidade, já que é mentiroso desde o princípio; e, por fim, sua esterilidade espiritual, já que todos teólogos são unânimes em afirmar que o Diabo é incapaz de criar, sendo capaz somente de deformar a criação divina. Portanto, difamação, mendacidade e esterilidade – a substância dos círculos literários brasileiros.
Mas, poderíamos nos perguntar, por que Daniel não assinou um abaixo-assinado quando supostamente já se pactuara com o próprio Coisa Ruim? Talvez porque aquele que faz pacto com o maioral dos demônios reconhece o valor de sua alma para que venha a vendê-la por ninharias. Ou, por outro lado, tendo já pactuado com o Demônio, vê-se impossibilitado de entrar em acordo com os demônios menores. O que Até você saber quem é nos permite perceber é que, no ambiente da literatura brasileira, afora uma inesperada redenção, há duas possibilidades: render-se ao Pai da Mentira, àquilo que George Orwell chamou de the realm of untruth (o reino da inverdade), com uma literatura que se vale do vitimismo insofrido para retroalimentar as análises insinceras das cátedras universitárias; ou unir-se à turba histriônica, “Legião”, que é hoje nossa intelligentsia. Dito de outro modo: a falsificação da literatura, especialmente por meio do experimentalismo oco ou das fórmulas prontas dos estudos culturais que inverteram talento, inovação e domínio da tradição por gênero, etnia e opção sexual; ou o compadrio literário, com saraus em que se distribuem, copiosa e reciprocamente, endossos e prefácios lisonjeadores.
Por fim, o êxodo frustrado e invertido de Daniel Hauptmann somente nos ensina que, ao contrário do que supôs, a travessia nem sempre implica em libertação; afinal, Peter Schlemihl, um dos mais famosos pactuários da literatura, mesmo com as promissoras palavras iniciais de seu relato – “Depois de uma travessia feliz, mas para mim um tanto penosa, alcançamos finalmente o porto” –, não obstante se vê enredado pelo Diabo, o Cavalheiro Cinza, trocando sua sombra pela Bolsa da Fortuna, momentos após sua travessia. Em Até você saber quem é, vemos Satanás conduzindo o escritor Daniel Hauptmann aos cumes dos templos, oferecendo os reinos que arroga para si; um final trágico, certamente, porém acompanhado de uma esperança, concretizada no próprio livro, que todo escritor, ainda que atormentado por seus demônios, quando se apega à Verdade de quem é, vê Satanás cair como relâmpago.
______
NOTAS
[1] O secretário diz: “Eu também amei o livro, é claro, mas tenho uma reclamação. Certas coisas são imperdoáveis. Meu filho, você (poso lhe chamar de você, não é mesmo? Tão mocinho ainda) nunca, nun-ca, poderia ter feito o Diabo derrotar o pobre jesuíta. Isso é horrível, horrível. Você tem que falar de Deus, da vitória de Deus, nunca do Demônio! Meu amigo padre Ivo sempre diz que…” (p. 138). Riobaldo tem seu amigo espírita Quelemém; Armando Soares, o secretário de embaixada, tem seu amigo padre Ivo.
[2] Maliciosamente, porém, o Diabo se esquiva de citar o verso 13, que prediz sua derrota.
[3] O contexto da citação nos diz: “Deveríamos, talvez, qualificá-lo como poeta demoníaco e apaixonado e, também, poeta ‘patológico’, sob condição de não emprestar a essa palavra o seu restrito sentido médico. O vocábulo pathos é intraduzível exatamente, significando dor (moral, especificamente), sofrimento (sobretudo físico) e paixão, um estado imposto aos homens por forças naturais e sobrenaturais, uma extrapolação além dos limites da média […] Mesma a segunda parte de sua existência, que nos parece, muitas vezes, seguir um curso excessivamente tranquilo, foi, na realidade, permanente luta contra ele e seus demônios” (Félix A. Voigt, Introdução de O Herege de Soana, Opera Mundi, 1971, p. 56).
[4] Em determinada passagem, ambos os personagens são parodicamente advertidos de suas desventuras por meios de letras e símbolos de bandas de heavy metal, talvez por iniciativa de um Destino Misericordioso, isto é, por um indivíduo de aspecto licantropo vestindo uma camisa com “um desenho demoníaco e as palavras MERCYFUL FATE em letras góticas vermelhas” (p. 23), que cantava as palavras extremamente significativas de Seventh son of a seventh son (o sétimo filho de um sétimo filho), da banda inglesa Iron Maiden, enquanto se encontravam alojados num campus universitário em que estudantes se reuniam “numa exibição tenebrosa de licantropia universitária” (p. 22). O grotesco da situação é agravado pelo presságio do destino de ambos contido nas letras caricatas da canção: “Então eles observam o progresso que fazem,/ O bem e o mal, que caminho ele tomará? Ambos tentam manipular/ o uso de seus poderes antes que seja tarde demais”.
Fabrício de Moraes
Tradutor, doutor em Literatura (UFJF/Queen Mary University of London).
[email protected]