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  • Sérgio Tavares
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Melhores Livros de 2016

por Amálgama (08/12/2016)

20 livros escolhidos por nossos colunistas e autores convidados.

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Sejam bem vindos! Esta é a nossa já tradicional publicação especial de fim de ano, com os melhores livros lançados do final do ano passado até hoje. Colunistas da Amálgama e autores convidados selecionaram 20 obras de 10 editoras/selos diferentes. São 5 livros de ficção brasileira, 6 de ficção estrangeira e 9 de não-ficção, com temas que vão da neurocirurgia às pedaladas de Dilma Rousseff, passando pela crítica, jornalismo literário e filosofia.

Espero que nossos leitores possam extrair da lista diversas leituras inesquecíveis para suas férias e para o ano de 2017. E sintam-se todos convidados a registrar nos comentários suas próprias dicas de leitura.

– Daniel Lopes, editor


 

humanidade-alexandreA humanidade é uma gorda dançando em um banquinho, Alexandre Soares Silva. (Realejo, 239 páginas)

por Rodrigo Duarte Garcia, escritor e colaborador da Amálgama

Sabe quando você era criança e via aquelas propagandas extraordinárias de brinquedo, na televisão? Cidades inteiras de Playmobil, jipinhos 4×4 atravessando desertos, bonequinhos lutando na lama, sob a chuva? E então você saía correndo para tentar capturar ao menos um pouco daquele mundo fantástico nos seus brinquedos? É mais ou menos isso o que acontece com a leitura dos textos de não-ficção de Alexandre Soares Silva, agora reunidos em A humanidade é uma gorda dançando em um banquinho. Porque Alexandre brinca melhor do que todo mundo. Você lê sobre os cavalheiros de Jane Austen, personagens de Patrick O’Brian – mais reais do que a própria vida –, diálogos charmosos de Oscar Wilde, metáforas de Nabokov, menções a romances policiais obscuros, e tudo o que você quer é correr para a sua biblioteca em busca daquele mesmo envolvimento estético, daquela mesma felicidade. Borges dizia que a leitura deve ser uma forma de felicidade, e Alexandre Soares Silva mostra, com wit e uma precisão estilística que deixa o segundo lugar a quilômetros de distância, uma visão da alta cultura baseada exatamente nessa felicidade, na imaginação, e no amor pelos livros. O prazer simples de ouvir Schubert, comer banana amassada, ver um filme noir e ler Tolkien em noites de chuva. E há uma enorme grandeza nisso, refletida também a todos os outros assuntos sérios de que Alexandre trata, sempre com bom-senso, leveza, ironia, e uma extraordinária imaginação moral. Seja ao falar de crianças que meditam sobre a morte, a existência de Deus, ideologia política, castidade, ou a criação de escolas para ladrões de joias. Contam que Russell Kirk teria sugerido Notas para uma definição de Cultura, quando Nixon lhe perguntou qual o único livro que deveria ler, como presidente. Bem, se Marcela Temer – desculpem, mas a resenha é minha – recatadamente me fizesse a mesma pergunta, eu responderia na hora: A humanidade é uma gorda dançando em um banquinho, Excelência. Sem nenhuma dúvida, humanidade é uma gorda dançando em um banquinho.


 

nunca-estevaoNunca o nome do menino, Estevão Azevedo. (Record, 196 páginas)

por Ronaldo Cagiano, escritor e colaborador da Amálgama

Nunca o nome do menino foi uma das gratas surpresas literárias do ano, num cenário cada vez mais viciado pela obviedade e em que, entre consagrados e estreantes, apenas tem sobressaído o mais do mesmo. Estevão Azevedo, nessa obra, é um autor que transita na contramão dessa tendência, não apenas pela engenhosidade da trama, mas também pelo apuro de uma narrativa cevada na melhor prosa poética, o que lhe reserva a condição de verdadeiro estilista. Nesse relato deslinda-se o delírio de uma protagonista (feminina, mas não nomeada) que, descobrindo ser personagem de um livro, não assimila o envolvimento factual na ficção e acaba por mutilar um dedo. Logo no começo da narrativa, já se nota a ousadia do autor em criar uma situação que muito se identifica com o suprarreal, ao mesmo tempo em que vão se descortinando todo um cenário e um repertório onírico, no qual personagem e autor, simbioticamente, acabam por encetar uma discussão acerca do próprio fazer literário, numa expansão metaliterária, em que a intertextualidade se manifesta como recurso a guiar os sentimentos e percepções de um e de outro, provocando cisões ao longo da história, sendo, muitas vezes, o autor cativo da personagem, refém de seus impasses, como se fora um algoz a atormentá-la. Com um final que fecha com chave de ouro o livro, seguido de uma explicação necessária do autor em clave de posfácio, o leitor confronta nesse relato lírico e sua cuidadosa arquitetura formal (tão peculiar a um ourives da palavra) com o mundo real e o imaginário. Tais características conferem a Estevão Azevedo um lugar de destaque entre os melhores escritores brasileiros da atualidade.


 

meshuga-fuxMeshugá, Jacques Fux. (José Olympio, 196 páginas)

por Juliana de Albuquerque, doutoranda em literatura e filosofia alemã pela University College Cork, Irlanda

Em Meshugá, um romance sobre o mito da loucura entre os judeus, Jacques Fux analisa a relação entre violência e trauma na formação da identidade judaica. Neste livro, o judeu é caracterizado como “alguém que tenta constantemente ser outro personagem. Alguém que tenta sempre assimilar as características do outro.” E, por isso mesmo, Fux descreve a identidade judaica como uma espécie de confronto entre realidade e ficção: literatura. Claramente influenciado pela psicanálise, o texto de Jacques Fux questiona a nossa percepção de nós mesmos e apresenta o elemento humano, o indivíduo judeu, em toda sua grandeza e vulnerabilidade.


 

atevoce-diogoAté você saber quem é, Diogo Rosas G. (Record, 224 páginas)

por Tomás Adam, jornalista e colaborador da Amálgama

Conheci o melhor lançamento de 2016, na realidade, em 2015. A revista Nabuco publicou o primeiro capítulo de Até você saber quem é defendendo, em seu editorial, que a obra não queria “compactuar com o estado de coisas” da literatura contemporânea brasileira – em que páginas e páginas são viradas sem que muito seja oferecido ao leitor. Diogo Rosas G. oferece, isso sim, um punhado de elementos em escassez na atual produção literária nacional: uma trama meticulosamente construída e primorosamente escrita, com inegável apuro estético e o uso cuidadoso de referências históricas e culturais. Ao redor dos dois personagens principais – Roberto, o narrador, e Daniel, seu amigo e objeto de estudo –, criou-se uma aura de ambivalência que os acompanha do início ao fim (“Uma felicidade cercada de tristeza e angústia, como uma cidade sitiada que se esquece por algumas horas dos inimigos a afiar as espadas do lado de fora das muralhas”). É assim com os relacionamentos amorosos, com as panelinhas culturais, com o próprio lugar em que vivem (como morador de Porto Alegre, não há como não se identificar com a tentativa ligeiramente patética dos protagonistas de fazer Curitiba parecer um lugar interessante para o repórter de uma revista de circulação nacional). A história se desenrola habilmente, mesmo com o seu desfecho sabido desde o início. E o resultado, além de um grande livro, é a promessa de um novo escritor brasileiro que foge à banalidade de seus pares.


 

invernos-rodrigoOs invernos da ilha, Rodrigo Duarte Garcia. (Record, 462 páginas)

por Wagner Schadeck, crítico, poeta e colaborador da Amálgama

O romance Os invernos da ilha destaca-se pela imagética, a narratividade instigante e a ampliação de nosso repertório cultural. Operando enquanto diálogo entre duas camadas narrativas, o enredo apresenta, ao mesmo tempo, as memórias do protagonista, Florian Links, e o relato do corsário holandês Olivier van Noort. Além disso, o romance impressiona pelas camadas intertextuais com clássicos como Moby Dick, de Melville, e O corsário, de Lord Byron. Lido como romance de aventura ou de formação, por meio de rica simbólica e linguagem ampla e clara, com este livro Rodrigo Duarte Garcia aparece como uma grande promessa de nossas letras.


 

palmeirim-franciscoPalmeirim de Inglaterra, Francisco de Moraes. (Ateliê, 744 páginas)

por José Francisco Botelho, tradutor

O romance de cavalaria é um dos gêneros mais famigerados na história da literatura: Dom Quixote, obra central entre os clássicos do ocidente, foi concebido precisamente como sátira a essa corrente literária, estampando-lhe uma espécie de marca de Caim, que ainda a persegue. Em uma deliciosa cena da obra cervantina, o Cura e o Barbeiro vandalizam alegremente a biblioteca do fidalgo louco ‒ condenando às chamas braçadas de livros com títulos extravagantes e conteúdo soporífero, como D. Olivante de Laura, Amadis da Grécia e Florismarte de Hircânia. Ocorre, no entanto, que Cervantes não pretendia aniquilar todo o gênero cavaleiresco ‒ prova disso é que o Cura e o Barbeiro, em seu surto de crítica piromaníaca, salvam do fogo alguns dignos representantes da espécie. Entre eles, ocupa lugar honroso o excelente Palmeirim de Inglaterra, escrito pelo português Francisco de Moraes no século XVI ‒ e agora lançado no Brasil pela Ateliê Editorial, em suculenta edição de Lênia Márcia Mongelli, Raúl César Gouveia Fernandes e Fernando Maués. A obra segue as peripécias do personagem-título em uma geografia maravilhosa que mistura traços da Europa ocidental e do mundo mediterrâneo. O enredo, conturbadíssimo, não cabe em sinopse. Fiquemos com o juízo ‒ assaz entusiástico ‒ emitido pelo Cura de Cervantes: “e essa palma de Inglaterra se guarde e se conserve como coisa única, e se faça para ela outro cofre, como o que achou Alexandre nos despojos de Dario, que o destinou para nele se guardarem as obras de Homero”.


 

amiga-ferrantehistoria-ferrante

A amiga genial (Biblioteca Azul, 331 páginas) / História do novo sobrenome (Biblioteca Azul, 470 páginas), Elena Ferrante.

por Martim Vasques da Cunha, escritor e colaborador da Amálgama

O ano de 2016 teve várias surpresas no mundo político nacional e internacional (impeachment de Dilma Rousseff, Brexit, a vitória de Donald Trump), mas também ocorreram várias surpresas literárias, especialmente no mundo literário tupiniquim não documentado pela grande imprensa (senão como podemos explicar o silêncio ou a esnobada sutil feita pelos grandes cadernos culturais do país em relação a livros como o ousado Um nazista em Copacabana, de Ubiratan Muarrek, o perturbador Abaixo do Paraíso, de André De Leones e o radical Não tive nenhum prazer em conhecê-los, de Evandro Affonso Ferreira?). Contudo, para mim, a grande surpresa literária estrangeira de 2016 não precisou de nenhuma divulgação midiática simplesmente porque ela a evitava a qualquer custo. Mesmo assim, os abutres não a deixaram em paz, indo atrás até mesmo da conta bancária dela para comprovar a sua verdadeira identidade, como se a pessoa em questão fosse um daqueles traficantes da série de TV The Wire, criada por David Simon e Ed Burns. Falo, é claro, da escritora italiana Elena Ferrante, que, no fundo, ninguém sabe quem é, simplesmente porque se recusa a dar entrevistas (exceto para a The Paris Review, mas, neste caso, até eu faria o mesmo), se recusa a tirar fotos e se recusa deixar que a sua biografia (inventada ou não) fale mais alto do que a sua obra. Seus romances começaram a ser recentemente publicados por aqui, graças ao sucesso da sua “tetralogia napolitana”, que teve três livros lançados este ano pela Editora Globo (Selo Biblioteca Azul). Li os dois primeiros, A amiga genial e História do novo sobrenome, e afirmo categoricamente: Ferrante é uma mestra. Desconheço se os outros dois tomos continuarão com a elevada qualidade (espero que sim), mas pelo o que já percebi, Ferrante mostra, por meio da amizade das personagens Lena (de Elena) e Lina (de Rafaella), uma coragem única ao explorar as rivalidades que sempre alimentamos, a inveja que queremos esconder no nosso íntimo e que jamais reconhecemos. Em A amiga genial, Ferrante esboça os primeiros movimentos da sua sinfonia ao narrar, com toda a calma do mundo, o desejo de Lena não apenas em querer ter o que a colega almeja, como também o seu desejo de ser ela a qualquer custo. Este sentimento de “posse”, por assim dizer, se acumula em densos rodopios no livro seguinte, História do novo sobrenome, até chegar a uma ciranda de insinuações maliciosas e de paixões proibidas, retratada na espantosa sequencia da praia de Ischia, descrita com uma assustadora precisão dramatúrgica em 200 páginas cerradas que certamente só podem ser comparadas, na literatura contemporânea, à cena do jantar na casa de Seymour Levov, retratada em Pastoral americana, de Philip Roth. Além disso, Ferrante relata a história da Itália dos últimos sessenta anos, junto com uma meditação detalhista da força da literatura como uma maneira de nos libertar dos nossos demônios mais terríveis. Graças ao poder da sua elegância e da sua audácia romanescas, sem fugir em hipótese nenhuma do “coração das trevas” que há em todos nós, ela causa aquele comichão na alma ao nos dar a saudável suspeita de que talvez a única coisa que nos resta é saber que somos reféns daquilo que desejamos. Se isso não é grande literatura, então eu não sei mais nada nesta vida.


 

distancia-samantaDistância de resgate, Samanta Schweblin. (Record, 144 páginas)

por Sérgio Tavares, escritor, jornalista e colaborador da Amálgama

A escolha dessa novela da Samanta Schweblin como a melhor leitura do ano se deve ao fato de ser um livro sobre o qual eu teria dezenas de argumentos para recomendá-lo, contudo quanto menos se falar dele anula-se o risco de estragar o momento de um novo leitor. Depois de ganhar destaque com seus contos de estreia, a escritora argentina, que foi apontada como herdeira do trio que organizou a Antologia da Literatura Fantástica, de 1940, ingressa na narrativa de maior fôlego incursionando outra vez pelo gênero, com o diferencial de buscar no insólito um grau elevado de terror, de convocar o sobrenatural para extrair da sua ascendência a tensão dramática e o estudo psicológico. E ainda empreende, em seu eixo argumental, uma carga direcionada a dois subtextos: os transtornos da maternidade e o uso indiscriminado de agrotóxicos no campo. A trama? Bem: Amanda e sua filha Nina acabam de se mudar para uma casa num povoado rural. Poucos dias depois, conhecem Carla e seu filho David. Numa tarde de sol, estão num lago quando Carla começa a agir de maneira estranha. Amanda tenta entender o que está acontecendo, e Carla confessa uma história assombrosa relacionada ao seu filho e a um mal. Chega, é o bastante. Agora vai ler o livro.


 

reino-carrereO reino, Emmanuel Carrère. (Alfaguara, 462 páginas)

por Fábio Silvestre, professor, jornalista e colaborador da Amálgama

O reino é daquelas obras que se impõem ao leitor porque, a um só tempo, entrega o que a sinopse promete e surpreende ao alcançar os seus objetivos de modo a apresentar todo um repertório de informações e de ideias que, se não fossem pelo livro, não seriam revelados. No caso dessa obra de não-ficção de Carrère, o fato de o autor, além de agnóstico, ser historiador de formação não o torna cativo de formalismos e outros salamaleques. Antes disso, o que se lê é, também, uma reflexão que se constrói à medida que o leitor descobre a trajetória do Cristianismo a partir de seus principais personagens. Como pesquisador, Carrère poderia muito bem ter preferido o distanciamento dos escolásticos, típico de um pensador que observa de cima o absurdo dos cristãos ignaros – é o procedimento operacional padrão dos intelectuais repletos de certeza, mas sem qualquer curiosidade, que pretendem analisar “a onda religiosa”. Em vez disso, o autor de O reino se posiciona como um investigador que tem mais dúvidas do que respostas definitivas, mas que, exatamente por isso, consegue mostrar para o leitor por que o Cristianismo ainda é fascinante.


 

enclausurado-mceanEnclausurado, Ian McEwan. (Companhias das Letras, 200 páginas)

por Jerônimo Teixeira, editor de Artes e Espetáculos da revista Veja

Quem conta a história é um feto, de dentro do útero de sua mãe – mas não fique eriçado, leitor militante: Enclausurado não faz a “defesa da vida” nem reivindica a “liberdade reprodutiva da mulher”. Ao que parece, o herói do livro não é muito querido por sua mãe, que enxuga várias garrafas de vinho ao longo das 200 páginas do romance de Ian McEwan. Mas Trudy (como Gertrude é carinhosamente chamada por seu gentil parasita) não tem planos de terminar a gestação, que, de resto, já vai muito avançada: seus planos se voltam contra o pai da criança, o poeta e editor John Cairncross. Claude, irmão de John e amante de Trudy, participa dos planos homicidas, de olho na herança de propriedades imobiliárias do mano poeta. Sim, é o enredo de Hamlet, com a diferença de que o jovem príncipe não tem condições de planejar vingança. De dentro da barriga, ele observa mudanças na pulsação de sua mãe ou na luz exterior, e ouve a conspiração que se trama contra o pai. E é um observador acurado não só do seu próprio drama familiar, mas do mundo contemporâneo. É delicioso o capítulo em que ele ironiza a histeria das políticas progressistas centradas na noção de “identidade” (e a crítica é tanto mais efetiva porque o feto, pensador rigoroso, não repisa expressões gastas como “correção política”). Enclausurado, enfim, remonta a tragédia de Shakespeare no mundo social mesquinho e argentário de um Balzac, tudo isso derivando, nas páginas finais, para o policial noir. Uma combinação quase tão improvável quanto um feto que conta a própria história. McEwan sabe o que faz.


 

semcausar-henrySem causar mal: Histórias de vida, morte e neurocirurgia, Henry Marsh. (nVersos, 304 páginas)

por Thiago Blumenthal, doutorando em teoria literária e sócio-fundador da editora Lote 42

Seu autor esteve na Flip, mas a Flip, convenhamos, é o que menos importa. Quem ainda se importa com a Flip? Sem causal mal já devia ter chegado às mãos do leitor brasileiro muito antes, mas nunca é tarde. Seu autor é um neurocirurgião britânico que compila 25 casos dos mais variados, capítulos estes nomeados de acordo com o mal que estava ali em jogo. Seu estilo, longe da fineza de um Oliver Sacks, para ficar em alguém do mesmo métier, vem carregado de uma linguagem tão direta que parece que somos os parentes das vítimas ali no hospital e sendo informados do terrível destino que separa a parede da sala de cirurgia de onde estamos. São casos bem-sucedidos, outros terminados de maneira trágica, diante da realidade brutal que se tem em perfurar um crânio humano e enfrentar a geleia branca que constitui, afinal, tudo o que somos. Para poucos, Sem causar mal pode não funcionar como um manual para quem deseja dar seus primeiros passos na leitura de livros de neurociência, mas seu poder de exponenciar uma linguagem crua em algo comovente, característica da literatura médica, garante seu lugar em uma das melhores obras do ano.


 

41-janet41 inícios falsos: Ensaios sobre artistas e escritores, Janet Malcolm. (Companhia das Letras, 384 páginas)

por Camila von Holdefer, crítica literária

Não há dúvidas de que Janet Malcolm é brilhante. Com sua escrita ao mesmo tempo contida e feroz, objetiva e complexa, ela ocupa um nicho especial. Segundo Kathie Roiphe, o que Malcolm escreve, “muitas vezes chamado de jornalismo, é, na verdade, uma forma de arte totalmente diferente e original, uma mistura singular de reportagem, biografia, crítica literária, psicanálise e romance do século 19, tanto inglês como russo”. A obra de Malcolm, que nasceu em Praga em 1934 e emigrou com a família para os Estados Unidos aos cinco anos, ocupa “aquele estranho território resplandecente entre a controvérsia e o establishment”. Isso se sobressai com especial intensidade em 41 inícios falsos, que reúne textos escritos entre 1986 e 2011 – a maioria publicada originalmente na The New Yorker ou na New York Review of Books. Em uma resenha do livro citada na contracapa da edição brasileira, a escritora Zoë Heller afirma que 41 inícios falsos esclarece “algo valioso sobre o inefável ‘processo criativo’”. Ela tem razão, mas, mais do que isso, o que prevalece nos ensaios de Malcolm é a ideia da reação, do comentário, da recepção. É a crítica que ocupa, raramente sob uma luz favorável, o centro do palco. Longe de assinalar alguma indisposição de Malcolm com relação ao trabalho dos críticos, os ensaios procuram retratar desafios próprios a uma atividade tão complexa. Com aparente naturalidade, como se não houvesse um único assunto capaz de escapar ao seu olhar afiado, quando não severo, a jornalista transita entre pintura, fotografia e literatura. Destaque para um formidável perfil de Ingrid Sischy, a editora da Artforum falecida em 2015.


 

historia-manguelUma história natural da curiosidade, Alberto Manguel. (Companhia das Letras, 496 páginas)

por Gustavo Melo Czekster, escritor, crítico e colaborador da Amálgama

Manguel é estilo comfort food: os leitores sabem o que esperar dele, e o escritor nunca decepciona. É mais do mesmo e, ainda assim, somos surpreendidos. Tomando por base A divina comédia, de Dante Alighieri, Manguel tenta responder dezessete questões de simplicidade só aparente, como “O que é linguagem?” e “Quem sou eu?”, usando uma erudição literária que combina extremos, como os primeiros estudos de Cabala feitos no início do século XIII e a história de Otlet, o homem mais curioso do mundo. Manguel se diverte escrevendo e urdindo combinações eruditas, e o leitor embarca em um caleidoscópio cultural que remete aos grandes eruditos que espalharam seus conhecimentos pelo mundo. Mais do que tudo, o escritor argentino-canadense é um grande fabulador, tecendo um rol de histórias que, como Sheherazade, encanta e instrui ao mesmo tempo.


 

pedaladas-joaoPerigosas pedaladas, João Villaverde. (Geração Editorial, 336 páginas)

por Vinícius Justo, mestre em teoria literária pela USP e colaborador da Amálgama

Ainda é cedo para sabermos todas as consequências do impeachment de Dilma Rousseff, ou mesmo se a escolha das pedaladas fiscais como embasamento para sua condenação política será lembrada de modo significativo – os fatos são recentes, a disputa histórica está em curso. Para não se perder entre os muitos fios de uma situação complexa, poucos estarão em melhores condições para apresentar o contexto das manobras fiscais que levaram à queda do PT do que João Villaverde, autor de inúmeras reportagens sobre as pedaladas. Seu compromisso com o melhor do jornalismo fica evidente nas páginas de Perigosas pedaladas, um livro essencial para compreender um momento conturbado e importantíssimo para o Brasil. Embora a obra pudesse se beneficiar de uma edição mais cuidadosa, os fatos apurados por Villaverde e sua narrativa da sequência dos acontecimentos apresentam um contexto difícil tornando-o decisivamente acessível ao leitor, sem juízos de valor indesejáveis e com informações valiosas. Daqui em diante será impossível referir-se às fatídicas pedaladas sem mencionar o trabalho de Villaverde, parte das melhores páginas investigativas de nosso jornalismo.


 

burke-kirkEdmund Burke: Redescobrindo um gênio, Russell Kirk. (É Realizações, 576 páginas)

por Francisco Razzo, filósofo e escritor

Há pelo menos dois níveis fundamentais em que o conservadorismo, crescente no Brasil, vem se desenvolvendo nos últimos anos: o primeiro, mais visível, é claramente militante e ideológico. Na verdade, um fenômeno político. Nesse sentido, esse conservadorismo surge a partir de uma postura triunfalista, desinteressada das delicadas discussões sobre a natureza humana, sobre o alcance do conhecimento e sobre os limites da ação do Estado. Como toda ideologia, é um pensamento total e inequívoco que precede a realidade. De antemão, faz guerra contra todo e qualquer vulto que ouse ameaçar o conjunto de crenças antirrevolucionárias preestabelecidas como verdadeiras, isto é, reacionárias. Por isso, trata-se de uma atitude barulhenta e com data de validade: é natimorto — como toda hybris política. Já o segundo nível de desenvolvimento da disposição conservadora, embora não faça tanto alarde, é mais consistente. Não se encerra como mais um fenômeno de poder com chave invertida. Na verdade, sua inversão é trocar o agitado palavrório da reação desmedida pelo prudente freio da ação refletida. Finca suas raízes no matrimônio inviolável entre o pensar e o agir e não deposita na política todas as suas esperanças. Busca a simetria substancial entre a justa medida da alma e a medida da justiça na sociedade: a conquista das coisas permanentes. É cético quanto à natureza humana, e compreende as pretensões de verdades políticas de gabinete como tremendamente perigosas. Volta o olhar para o legado da tradição filosófica conservadora britânica: cética, corajosa e prudente. Não somente corajosa — como é o caso do nosso primeiro nível reacionário. Diante disso, as traduções das obras de Russell Kirk não poderiam deixar de estar entre as principais (e benéficas) influências para a mentalidade conservadora brasileira que não deseja nascer morta. A recente tradução deste clássico de Russel Kirk, Edmund Burke: Redescobrindo um gênio, sem dúvida está entre as publicações que merecem destaque em 2016. Para todo aquele que suspeita dos riscos da tentação totalitária, interior e vertiginosa, a leitura de Edmund Burke é um antidoto e indispensável.


 

experimentos-kimballExperimentos contra a realidade: O destino da cultura na pós-modernidade, Roger Kimball. (É Realizações, 368 páginas)

por Fabrício de Moraes, doutorando em literatura (UFJF/Queen Mary University of London) e colaborador da Amálgama

São Paulo, em sua carta aos Romanos, diz que os atributos de Divindade, incluindo sua eternidade, se manifestam nas coisas visíveis, apesar dos esforços dos homens, uma vez entregues a uma disposição mental reprovável, de sufocar a verdade por todos os meios possíveis. Acrescente-se ainda a compreensão de Aristóteles de que o ser concreto (o synolon), misto de matéria (substância primeira) com a forma (substância segunda) é a síntese entre o individual e o universal. E eis o ponto de partida da tradição ocidental: a certeza de que o homem participa das esferas ontológica e epistemológica – ens et verum convertuntur, “todo ser é verdade”, diria o Aquinate. No entanto, como Roger Kimball demonstra em sua magistral obra Experimentos contra a realidade, o ódio pela verdade (que resulta, em última instância, em ódio pelo ser) carrega consigo o componente essencial do totalitarismo. Pois o título, retirado do famoso volume de Hannah Arendt sobre os governos totalitários, é, em si, uma advertência de que os movimentos totalitaristas incitam uma “mistura de credulidade e cinismo… um amálgama que fomenta um crepúsculo intelectual no qual as pessoas acreditam em ‘tudo e nada, pensam que tudo é possível e que nada é verdadeiro’”. Portanto, traçando o itinerário do pensamento moderno por meio especialmente de obras literárias – exemplificando assim a simbiose entre literatura e política, hoje tão esquecida no jornalismo brasileiro –, Kimball se debruça não somente pela “ânsia de realidade” de T.S. Eliot, mas também pelo apego à concreção de T.E. Hulme; pelo “Auden permanente”, mas igualmente pelas perversões de M. Foucault, atualmente ícone máximo do niilismo acadêmico brasileiro. O livro é, ao mesmo tempo, uma exposição multiforme das “coisas permanentes”, do legado cultural do Ocidente, e uma ferrenha crítica àqueles que, por ojeriza ao real, não poupam esforços para a destruição dessa herança. O resultado desse duplo esforço é uma obra marcada pelo comprometimento com a Verdade, o “alimento da alma” (Platão) e “libertação das trevas” (São João); finalidade epistemológica e prumo moral.


 

estetica-croceEstética como ciência da expressão e linguística geral, Benedetto Croce. (É Realizações, 544 páginas)

por Rodrigo Cássio, doutor em filosofia pela UFMG e colaborador da Amálgama

Não seria exagero dizer que Croce é um autor tão importante para a estética da primeira metade do século XX como o foram Kant e Hegel na segunda metade do XIX. A concepção da estética como uma ciência da expressão, proposta pelo historiador e crítico italiano, dialoga com o idealismo alemão ao mesmo tempo que instaura uma nova percepção da realização artística com fruto da individualidade do artista. Tal compreensão, projetada na história da arte, foi especialmente relevante para entender o impulso de distanciamento da objetividade representativa no momento em que a arte moderna se elevava, ainda que Croce tenha manifestado reservas a certas tendências que constituíram aquele momento. A erudição e agudeza de Estética como ciência da expressão e linguística geral, ao criar um sistema capaz de lidar com transformações tão profundas, faz da obra um compêndio de questões emergentes na arte do século nascente. Mesmo assim, ela se situa na fronteira entre o pensamento do século XIX (a problematização do gosto, do belo ou da experiência estética…) e o pensamento que, depois de Croce, acabaria se consolidando como o mais característico do século XX (o abandono dessas questões em prol de teorias que, não raramente, desprezam os conceitos da estética moderna.). Por essa razão, a tradução da obra-prima de Croce, assinada por Omayr José de Moraes Jr. e lançada pela É Realizações, foi a mais relevante publicação de 2016 na área de estética e filosofia da arte. O oferecimento dessa obra em português ao leitor brasileiro é uma oportunidade de renovar a visada sobre temas fundamentais da estética moderna ainda relevantes, e talvez motive o resgate das proposições croceanas para a teoria e a crítica de arte praticadas no presente. A relação entre a teoria e a crítica, por sinal, é um dos tópicos constantes do livro, que conta ainda com apresentação de Rodrigo Lemos, professor de literatura da UFCSPA.


 

vozes-svetlanaVozes de Tchernóbil, Svetlana Aleksiévitch. (Companhia das Letras, 384 páginas)

por Douglas Marques, psicólogo e colaborador da Amálgama

Neste ano, a jornalista Svetlana Aleksiévitch, prêmio Nobel de Literatura em 2015, teve sua obra editada no Brasil pela primeira vez pela Companhia das Letras. Tendo vivido ela mesma sob o jugo soviético, estava em Minsk, na Bielorrúsia, quando uma série de explosões no reator 4 da usina nuclear de Tchernóbil resultou em uma das maiores tragédias humanas da história recente. Em seu entorno, um sarcófago foi erigido para conter as mais de duzentas toneladas de material radioativo que restaram, ameaçadoras. Ninguém sabe por quanto tempo a proteção resistirá, mas há fendas em sua composição e fenômenos inexplicáveis em seu interior. Na região contígua a Tchernóbil, os casos de câncer elevaram-se quase setenta e quatro vezes. De cada catorze pessoas, apenas uma morre de velhice, e sete em cada dez estão doentes, segundo inspeções médicas. Mais do que dados técnicos do desastre, é o relato desses sobreviventes que interessa a Svetlana, que coletou mais de quinhentos depoimentos de testemunhas diversas ao longo de dez anos, desde simples camponeses e funcionários da instalação até bombeiros, políticos e figuras importantes do regime comunista. O resultado é um livro de forte carga emocional que dá voz ao que parece ser incomunicável. Nada é poupado na fala incontida e, dez anos depois, ainda perplexa das vítimas da falha humana que tiveram sua sorte arruinada para sempre naquele agora longínquo mas aparentemente eterno 26 de abril de 1986. Vozes de Tchernóbil é o coro resultante de vozes que foram afetadas pelo mesmo incidente, mas cujas consequências particulares constituem, à sua maneira, histórias ainda mais funestas.


 

filosofia-scrutonFilosofia verde: Como pensar seriamente o planeta, Roger Scruton. (É Realizações, 416 páginas)

por Elton Flaubert, doutorando em história e colaborador da Amálgama

Nos últimos tempos, quando ouvimos a palavra ecologia logo temos a sensação de que sinos estão tocando a nos avisar sobre uma possível hecatombe climática. E esta vem acompanhada quase naturalmente de duas pautas políticas: a) uma governança global encarregada de salvar o mundo, b) e regulações de modos de vida, ou seja, do nosso cotidiano, da nossa vida prática. No entanto, em Filosofia verde, Roger Scruton quebra essa cadeia de reciprocidade entre aceitar as pautas de um poder integrado para “salvar o mundo” e negar as virtudes (e a urgência) da preocupação ecológica. Scruton nos faz lembrar que o homem não está apartado da natureza, mas tem sobre ela maior responsabilidade, pois ela é sua casa (ecologia vem do grego oikos, que significa casa). Contra o utilitarismo, ele descarta a valorização do mercado como único instrumento. Contra o poder global e a afetação do politicamente correto, lembra que precisamos, acima de tudo, do espírito bem orientado que nos faz cuidar da criação. Nem o materialismo de quem consome sem se preocupar com a sustentabilidade do seu lar, nem a divinização da natureza e as suas consequências políticas. Em suma, Scruton trata das virtudes da conservação e de como cuidar do lugar em que vivemos e da criação independe de qualquer alarme sobre o fim do mundo. É a virtude de indivíduos conscientes sobre o sentido da Criação que pode tatear verdadeiramente a urgência do tema.

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