Réquiem para Ferreira Gullar

por Wagner Schadeck (04/12/2016)

Mesmo a poesia engajada gullariana, cujo ápice é "Romances de cordel", requer a experiência de vida.

ferreira-gullar

Perseguido pelo nazismo, Thomas Mann dizia que onde estivesse carregaria consigo a literatura alemã. Não era bazófia; ele sabia da ameaça iminente que marchava pelo coração do mundo, desejosa pela destruição cultural. Exilado, o escritor alemão era o guardião do fogo contra as investidas do totalitarismo.

É que mentalidade totalitarista apodrece a cultura e engaiola as ideias. No lugar do Bem, o relativismo coloca a Força, como lembra Roger Scruton. O homem está sempre criando novos termos para justificar sua sede pelo derramamento de sangue.

No Brasil, Alexei Bueno estava certo ao relacionar o positivismo e o parnasianismo, como doutrina e estética da Belle Époque, com a socialismo e o concretismo, durante a Ditadura Militar. Eis o gérmen do nosso mais íntimo totalitarismo.

Durante a ditadura, no entanto, entre os exilados, nenhum fora mais sincero do que Ferreira Gullar. Poeta existencial, é próprio de sua poesia o embate com a vida e com as palavras. E em seu périplo, que passa pela Argentina – onde compôs o poema de fôlego mais importante de seu tempo (“Poema Sujo”) –, pelo Chile e União Soviética, o poeta colhera o gosto da experiência e a autoridade para desmascarar muitos ex-companheiros.

Ao retornar ao Brasil, desiludido com o marxismo, Gullar parece não ter caído no farisaísmo hegemônico da intelligentsia brasileira. Nelson Rodrigues propunha uma medida moral inusitada: o quanto de ressentimento que um indivíduo provoca é um aceno de grandeza. Os ataques que Gullar sofrera, não somente por ser eleito para a ABL, mas sobretudo por falar o que pensa, é um indicativo claro da importância de sua poesia e personalidade para nossas letras. O coletivismo, primeiro motor totalitário, sempre procura sufocar arte e pensamento.

Em excelente entrevista a Martim Vasques da Cunha, Gullar revela:

Você desmonta uma coisa que os séculos criaram. Resultado? Trinta anos de fome na União Soviética. Você desmonta a vida! E havia outra porção de erros: afirmavam que quem faz a riqueza é o trabalhador. Mentira!

A censura oferecida pelos acólitos do concretismo-cabralista, após a declaração de Gullar sobre Oswald de Andrade, mais agitador que poeta, demonstra como essa mentalidade totalitária funciona. Com o impedimento de Dilma Rousseff e os escândalos de corrupção, o Partido dos Trabalhadores lançou coordenadas precisas aos militantes. E, tendo como pretexto o resgate de Oswald de Andrade, Augusto de Campos, de uma subserviência política abjeta, encaminha a discussão contra Gullar para a denúncia política, para forjar um fato que escorasse a narrativa do golpe.

É claro que o poeta de Luta corporal e Dentro da noite veloz também defendera que poesia podia ser engajada, mas desde que fosse poesia. E isso agrava ainda mais o ferimento dos incapazes que apodrecem por dentro.

Mas mesmo a poesia engajada gullariana, cujo ápice é Romances de cordel, requer a experiência de vida. Para isso o poeta lançou mão da lírica da materialidade, como nos poemas “Galo galo” e “A galinha”, ou “As peras”, ou o algo surrealista “O cavalo sem sede”. Tal técnica é aquilo que que Martim Vasques da Cunha considerava como uma influência de Rilke. Além de “Fera diurna”, desde mesmo feitio, lembremos do poema “O trabalho das nuvens”:

há nuvens não há
cidades: as nuvens ignoram
se deslizam por sobre
nossa cabeça: nós é que sabemos que
deslizamos sob elas: as
nuvens cintilam, mas não é para
o coração dos homens.

Para ele, a poesia também se revela como a flor no asfalto drummondiana, mas nasce sobretudo de uma lírica da existência, como em “Dois e dois: quatro”:

Como dois e dois são quatro
sei que a vida vale a pena
embora o pão seja caro
e a liberdade pequena

Além disso, o experimentalismo formal e sintático se mantém, desde de “Roçzeiral”, mesmo com o flerte surrealista:

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Convém destacar, no entanto, a abertura dos olhos para o cotidiano – quase uma lírica-crônica – uma poesia intimista sui generis, como em “Poema de adeus ao falado 56”, ou ainda o fluxo da memória, técnica já utilizada no célebre “Poema sujo”, do belo poema, entre o verso e a prosa – “Réquiem para Gullar”:

Os domingos cruéis primeiro apeadouro segundo apeadouro aquele que acredita em mim mesmo depois de morto morrerá, […] Cravo-de- defunto. Estearina. Moscas no nariz a língua coagulada na saliva de vidro e açúcar. O esmalte do dente apodrecido já nada tem a ver com o amor a timidez a injustiça social o ensino precário.

De um vaticínio espantoso para a data de hoje que anuncia a sua desaparição, esse poema nos leva a este que parece ser uma das peças mais pungentes de nossa lírica:

CANTIGA PARA NÃO MORRER

Quando você for se embora,
moça branca como a neve,
me leve.

Se acaso você não possa
me carregar pela mão,
menina branca de neve,
me leve no coração.

Se no coração não possa
por acaso me levar,
moça de sonho e de neve,
me leve no seu lembrar.

E se aí também não possa
por tanta coisa que leve
já viva em seu pensamento,
menina branca de neve,
me leve no esquecimento.

Laureado por diversos prêmios nacionais, ensaísta, tradutor, dramaturgo, crítico de arte, a herança de Ferreira Gullar, feiticeiro das palavras, é uma obra que testemunha um poeta profundamente espantado pela beleza.

Wagner Schadeck

Nasceu em Curitiba, onde vive. É tradutor, ensaísta, editor e poeta. Colabora com a Revista Brasileira (ABL), com a Revista Poesia Sempre (BN) e com os periódicos Cândido e Rascunho. Em 2015, organizou a reedição de A peregrinação de Childe Harold, de Lord Byron, pela Editora Anticítera.

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