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A morte e as mortes em Araci

por Ronaldo Cagiano (12/12/2016)

No romance de Franklin Carvalho, presente e passado se interpenetram, o sagrado e o profano se imiscuem, fato e invenção se consorciam.

“Céus e terra”, de Franklin Carvalho (Record, 2016, 208 páginas)

Que homem há, que viva, e não veja a morte?
ou que livre a sua alma do poder do mundo invisível?

Salmo 90:48

 

Em A queda, o personagem Jean-Baptiste Clamence, ao desfiar um intenso e poético monólogo sobre a vida, dispara: “Talvez não amemos a vida o bastante. Já reparou que só a morte desperta os nossos sentimentos?”

A título de analogia, recorro a essa passagem do romance de Albert Camus para situar a atmosfera de todo o percurso narrativo de Céus e terra, romance vencedor do Prêmio Sesc de Literatura 2016, do jornalista e escritor baiano Franklin Carvalho.

Pela via de uma linguagem diáfana, que funde lirismo e densidade, o autor deslinda a história de três protagonistas cujas mortes são o pano de fundo para uma profunda investigação existencial e um mergulho filosófico sobre a passagem do tempo, sobre nossos fantasmas e obsessões, sobre o estreito liame entre a vida e a morte.

Corre o ano de 1974, quando a “indesejada das gentes” ceifa a vida de três personagens: um cigano, um lavrador e um menino de doze anos. E é sob a perspectiva deste que todo o enredo se desenvolve. Vítima de um acidente que o decapitou, o infante defunto passa em revista à sua e às outras mortes, ao mesmo tempo em que vai esmiuçando um rosário dos acontecimentos que tiveram lugar no folclore da cidade, como uma espécie de memória ancestral que tudo viu e vê e conduz toda a trama com seus impulsos reflexivos e críticos.

Dividido em capítulos, cada qual correspondendo aos meses de abril a dezembro, quando a ação transcorre, o defunto Galego, convertido em narrador onisciente, esboça nesse painel sucinto, mas vário e enigmático, o período em que os fatos ocorrem na pequena Araci do interior baiano, seu olhar sobre esse mundo que já não é mais seu, mas carrega seus apelos e é força motriz do imaginário e do inconsciente. O recurso ficcional, habilmente trabalhado pelo autor, funciona como um polifônico e multifacético espelho de uma típica cidade interiorana, com toda sua mitologia e idiossincrasias, revelando peculiaridades e inconfidências, num ambiente em que presente e passado se interpenetram, o sagrado e o profano se imiscuem, fato e invenção se consorciam.

Da barbearia ao casarão que abrigará um restaurante; do circo ao velório; da farmácia ao enlace matrimonial, a trajetória individual e coletiva é um trajeto que se conta com maestria e alguns influxos de suprarrealidade. Nesse processo em que o real e o imaginário se relacionam simbioticamente, Franklin conduz o leitor a uma viagem muita vezes onírica, em cujo trânsito a linguagem cristalina e sem piruetas exerce também seu papel  catalisador, com passagens que, muitas vezes guardam delicada empatia com os territórios  mágicos de José J. Veiga, Juan Rulfo e Gabriel García-Marquez, mas com uma versatilidade e uma carga semântica e metafórica peculiares a um escritor em pleno domínio de sua arte, que já nos deu Câmara e cadeia (2004) e O encourado (2009), e que traz em seu estilo uma visão fotográfica e hermenêutica desse mundo perdido e culturalmente rico do interior nordestino.

Galego, que na história é chamado para ajudar a resgatar um homem crucificado e que acaba sendo colhido acidentalmente pela própria morte, é a chave para entender esse grande e transcendente mistério que é viver. E também compreender os motivos históricos e sociológicos, as pulsões psicológicas e religiosas que nos regem e ligam as duas pontas do severo existir, esse tempo tão povoado de sutilezas e simbologias, como a prosa refinada de Franklin Carvalho, pois entre esse Céus e Terra não há vã filosofia, mas a certeza que nasce dessas vidas miúdas e perdidas, de que (como diria Camilo José Cela) “ao final sempre ganha a morte, porque tem menos pressa que a vida e também menos vergonha”.

Da mesma forma, mas com pujante luz própria, Franklin poderá também referir-se ao mundo de seus personagens e ao mapeamento desse cenário humano e social, como o fez personagem camusiano, o juiz-narrador de A queda e dizer: “Com isso fabrico um retrato que é de todos e de ninguém. (…) Mas, ao mesmo tempo, o retrato o retrato que apresento aos meus contemporâneos torna- se um espelho.” Um autor, sem dúvida, cioso de seu compromisso literário ético e estético, em penetrar o insondável de nossa própria condição.

Ronaldo Cagiano

Autor de Dicionário de pequenas solidões (contos, Língua Geral) e O sol nas feridas (poesia, Dobra Ideias), dentre outros. Mineiro de Cataguases, viveu em Brasília e reside em SP desde 2007.