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Para além de suas questões centrais, a biotecnologia e a inteligência artificial, "Homo Deus" é permeado por muitas referências históricas, literárias e culturais.

"Homo Deus: Uma breve história do amanhã", de Yuval Noah Harari (Companhia das Letras, 2016, 448 páginas)

“Homo Deus: Uma breve história do amanhã”, de Yuval Noah Harari (Companhia das Letras, 2016, 448 páginas)

Não é à toa que Homo Deus, o novo livro de Yuval Noah Harari começa com uma imagem, ao invés de por uma palavra. Tomando conta de toda a página inicial do livro e lembrando uma gravura em preto e branco, a imagem reproduz a tomada ampliada de uma microinjecção intracitoplasmática em um óvulo humano e de imediato situa o leitor onde Harari quer colocá-lo: do ponto em que o ser humano passa a dominar a biotecnologia e adquire um controle sem precedentes sobre a natureza em sua travessia no espaço-tempo.

Em seu livro anterior, o sucesso de vendas Sapiens: uma breve história da humanidade, a biotecnologia também aparecera, mas apenas no terço final de um livro que tinha o ambicioso projeto de narrar a história da civilização e da inteligência humana até o tempo presente. Em Homo Deus, Harari parte para um ponto de inflexão temporal que se ocupa mais do futuro e de especulações sobre o que pode estar por vir, reportando-se apenas eventualmente ao passado histórico da humanidade. Se em Sapiens a biotecnologia e sua expansão eram apresentadas como a forma encontrada pelo mundo globalizado em sustentar a escalada frenética da civilização em torno do consumo, do esgotamento dos recursos naturais e da expansão do crédito comercial em todo o mundo, em Homo Deus ela surge como uma situação já dada para a contemporaneidade, como se uma nova etapa da ciência talhada especialmente para a sobrevivência e a adaptação da espécie humana daqui em diante.

Homo Deus, portanto, não é um prolongamento de Sapiens e nem uma crítica epistemológica do contemporâneo ou um livro de filosofia da ciência. Mesmo assim, não deve ser tomado como um livro inteiramente fácil, de variedades cientificas. Apesar de manter a característica da leitura agradável e contínua que fizeram o sucesso de Sapiens, Harari investe pesado em uma contraposição ao senso comum e ao humanismo como ideologia e aponta muitas vezes para a composição de um cenário distópico para o futuro, no qual a novíssima face do humano seria engendrada pela composição de uma nova técnica e consciência, dado que sua dissociação da racionalidade começa a ocorrer por meio da mediação tecnológica e proliferação de sistemas artificiais de inteligência, como as que já existem hoje principalmente na internet.

Igualmente seria exagero ou equívoco afirmar que Homo Deus pudesse ser considerado uma extensão da ficção distópica do seriado inglês Black Mirror por tratar de um futuro que já dá seus sinais evidentes e altera inclusive a percepção que se pode obter do tempo. Mesmo que tanto o livro quanto o seriado realizem especulações sobre o futuro breve e muitas vezes se valham de exemplos semelhantes, isso apenas acontece porque ambos tratam da mesma matéria: a ascensão tecnológica e suas implicações. Mas as coincidências param por aí, uma vez que as projeções de Harari referem-se a um futuro mais distendido do que o cultuado seriado exibido pelo de streaming Netflix.

Para além de suas questões centrais, a biotecnologia e a inteligência artificial, Homo Deus é permeado por muitas referências históricas, literárias e culturais. É de onde emergem muitas de suas mais indagações, porque dialogam com o mundo real e o mundo de ontem ao invés de especular tão livremente, a ponto de parecer um mero devaneio. Harari parece estar bem mais preocupado em procurar entender as condições históricas do desenvolvimento humano futuro do que em propor um modelo de substituição do homem pela tecnologia.

De modo diferente de outros pensadores e idealizadores do futuro, como o japonês Michio Kaku ou mesmo o crítico da religiosidade Richard Dawkins, Harari devolve ao campo filosófico a precedência na crítica da racionalidade científica. Aos 40 anos, o autor israelense não apenas entrou de vez na lista de best-sellers do mundo inteiro, mas de forma ainda mais competente na lista de livros interessantes e populares sobre divulgação científica. Sem o astrônomo Carl Sagan no “páreo” e situando o pensamento humano no horizonte da ciência e da tecnologia, Harari propõe que a autonomia do pensamento e a liberdade, para ele os maiores desafios futuros, colocam-se desde já como desafios evolucionários para dar fisionomia a própria natureza humana. Embora por vezes possa soar superficial ou realize especulações um tanto temerárias, seu livro é uma aventura do pensamento. Não é pouco e, pela riqueza de detalhes e qualidade de informação, não é também um livro comum.

Lúcio Carvalho

Editor da revista digital Inclusive. Lançou em 2015 os livros Inclusão em pauta e A aposta (contos).

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