Segundo Burke, as ideias de dor são muito mais poderosas do que as ideias provocadas pelo prazer. Temos, então, a emoção mais forte que a mente pode sentir: o sublime.
1.
Geralmente quando dizemos que algo é belo, temos um “padrão” pessoal do que nos agrada – no caso da arte, um filme, concerto, pintura que nos dá uma sensação agradável. Mas também podemos nos encantar com a profundidade da alma humana descrita numa tragédia de Shakespeare, imersa numa torrente de sofrimento. Diante dessa profusão de sentimentos, poderíamos nos perguntar por qual motivo algo é belo ou sublime.
Edmund Burke escreveu Investigação filosófica sobre a origem de nossas ideias do Sublime e da Beleza (1757) motivado por um sentimento de confusão, sentindo-se “desorientado”: de onde vêm as ideias de belo e de sublime, sendo que não há uma teoria exata sobre as paixões humanas? Perguntando de outro modo, por que sentimos as sensações que denominamos beleza e sublime?
Durante todo o livro, ele se vale de expressões como “nossas paixões”, “nossas ideias”, “nosso entendimento”, buscando universalizar suas ideias como comum a todas as pessoas, o que nos deixa bem próximos do autor. Ao mesmo tempo, o livro é marcado por breves definições de conceitos; Burke faz um esforço contínuo ao dizer que toda sua investigação é uma “conjectura provável”. Não há certezas, categorias, o que se pode buscar é o que está no título: investigar ideias.
Uma introdução foi adicionada à segunda edição, de 1759, denominada “Sobre o Gosto”. Este ensaio se torna fundamental para uma compreensão do livro diante da discussão intelectual da época, que envolvia diferentes visões de mundo a partir de concepções filosóficas diferentes: o racionalismo e o empirismo. Além disso, traz à tona de forma mais explícita as ideias que perpassam a investigação.
Ao definir gosto como a relação entre a percepção dos sentidos, da imaginação e a faculdade de raciocinar, o bom gosto se relaciona com a retidão do juízo diante da percepção. O crítico de arte seria aquele que não poderia descontrolar suas paixões, pois sua sensibilidade deve se equilibrar à razão. Não pode ser também aquele que pensa tão corretamente que não leva em conta a sensibilidade.
Se em Burke o gosto é relacionado a uma conclusão da percepção das paixões no uso do juízo formulado pela razão, em Kant o juízo estético é estabelecido sem que haja qualquer relação entre ele e os objetos agradáveis ou provenientes da razão. Trata-se de um juízo sem qualquer interesse, ocorrendo que, se algo é belo, não o é por alguma finalidade, mas sim por necessidade. Percebe-se que Burke não busca a formação do juízo estético em um padrão universal. Ele procura entender a formação de um juízo em meio às próprias paixões, e ainda o poder metafórico de a arte provocá-los.
2.
Mas é possível o controle das paixões? É possível delimitar uma paixão num conceito? O livro é dividido em cinco partes, nas quais curiosamente não temos uma longa elaboração de raciocínios que fundamentem sua teoria das paixões, mas sessões cujos temas delimitam determinados assuntos ou conceitos, os quais formam um argumento numa sessão final denominada “Recapitulação”.
O texto tem uma leitura agradável, um relato da própria experiência estética do autor. É composto de cinco partes. Na Parte I, busca explicar que as paixões surgem porque os objetos são capazes de causar dor, prazer ou indiferença. Na parte 2, levanta todas as características que envolvem a ideia de Sublime. A parte 3 relaciona as paixões às características da Beleza. Curiosamente, na parte 4, o autor procura fundamentar com base na física newtoniana todo o raciocínio anterior. Por fim, a parte 5 discorre sobre o poder da palavra para as emoções e como esta pode despertar os sentimentos de Sublime e de Beleza pela poesia.
Dor, prazer e indiferença são ideias. Elas não podem ser definidas, sendo a indiferença o estado mais comum em que as pessoas se encontram: sem dor nem prazer. No entanto, a relação entre dor e prazer construída por Burke o conduz à questão: há prazer na remoção da dor? Para ele, retirar um sentimento de temor, por exemplo, traz uma certa tranquilidade ou indiferença por estar fora de perigo, mas não gera prazer. Pode-se gerar uma sensação que denomina de deleite.
Deste modo, as paixões que se relacionam à dor e ao perigo estão relacionadas à autopreservação. Faz sentido, se pensarmos que agimos de certo modo e não de outro para sobreviver, como, por exemplo, se usamos uma passarela pra atravessar uma rodovia ao invés de correr desesperadamente para não ser atingido por carros. Mas por que filmes de ação, catástrofe, tragédias gregas ou shakespeareanas fazem tanto sucesso e são consagradas pelo próprio fato de carregarem histórias trágicas e trazerem à tona questões consideradas essenciais à reflexão da humanidade para ela, inclusive, permanecer humana? Porque, segundo Burke, as ideias de dor são muito mais poderosas do que as ideias provocadas pelo prazer. Temos, então, a emoção mais forte que a mente pode sentir: o sublime.
O que quer que de alguma forma seja capaz de excitar as ideias de dor e de perigo, ou seja, tudo o que for terrível de alguma forma, ou que compreenda objetos terríveis, ou opere de forma análoga ao horror é fonte do sublime; ou seja, é capaz de produzir a emoção mais forte que a mente é capaz de sentir. (p. 52)
Assombro, terror, obscuridade são paixões causadas pelo sublime. Já que não estamos em perigo, sentimentos surgem para nos direcionar à autopreservação. Mas não só isso. Sentimos deleite por não estar na situação de sofrimento. Este sentimento é o que motiva o autor, muito mais que a beleza. É o assombro pelo desconhecido, o temor à vastidão, mas ao mesmo tempo um encantamento que não passa pelo prazer, mas pela ausência de dor. A arte é fonte do sublime e promove o bem-estar em assistir a uma tragédia ou apreciar uma obra de arte que nos faça sentir aliviados por não estar em determinada situação.
3.
Já a ideia de Beleza é causada pela qualidade dos corpos que produz prazer. Mas o que faz um corpo gerar prazer? Suas características sensíveis. A beleza é erotizada, relacionada ao prazer provocado pelos objetos e ao prazer sexual. Para os homens, o prazer sexual envolve o ambiente social, por isso a beleza está relacionada diretamente à beleza da mulher e ao prazer que se direciona à autopreservação da espécie e da organização social. O amor é a união de costumes sociais e procriação. Burke descreve como o amor é produzido:
se pudermos mostrar que todas as coisas consideradas por nós como constituintes genuínos de beleza têm, cada uma delas tomadas separadamente, uma tendência natural para relaxar as fibras. E caso nos permitam dizer que a aparência do corpo humano, quando todos esses componentes estão unidos ante os sentidos, favorece ainda mais essa opinião, então poderemos nos aventurar, creio eu, a concluir que a paixão chamada amor é produzida por esse relaxamento. (p. 138)
O belo é ligado ao que é pequeno, suave; possui variação em sua composição, mas sem excessos de cor; ocorre no estado de repouso, de relaxamento; se relaciona a sons suaves – um estilo que se inclina à noção de Beleza do período clássico. O sublime remete à escuridão, ao terror, à tensão, à vastidão, à grandiosidade cujo contraste com o Belo nos remete à estética do barroco. De forma simbólica, Belo e Sublime revelam a angústia do homem diante do desconhecido, da grandiosidade da obra de Deus, diante da sua existência no mundo e das suas paixões mais individuais, que passam pela dor, pelo prazer e pela indiferença.
Talvez Burke tenha escrito tal livro não para definir uma teoria que justifique os conceitos de Belo e Sublime com sólida argumentação, logicamente correto, porque o autor parte de um discurso no qual ele próprio é subjugado às paixões, convivendo com a razão para formular o juízo crítico sobre o gosto. Talvez ele o tenha escrito para compreender as próprias paixões e como tantos autores conseguem reproduzi-las e despertá-las de forma artística – de modo mais específico, pela poesia.
4.
Além de ser um livro cujo discurso é direto e acessível, os conceitos e justificativas são um passeio para a discussão filosófica mais cotidiana, uma fonte de exemplos e situações para refletir, já que Burke possui a habilidade de descrever as próprias emoções em diversos contextos e o estranhamento que as paixões lhe causam. É curioso pensar que, quando Burke o escreveu, não havia outro recurso de análise psíquica a não ser o próprio ato de reconhecer e investigar as próprias sensações individuais. A noção da consciência como a conhecemos atualmente era precária, começando a se desenhar na filosofia moderna sobre a dicotomia indivíduo-mundo.
Fico a imaginar se Freud se deparou com este livro. Provavelmente sim. Se refletirmos que o princípio de prazer não domina os processos psíquicos e as fontes de desprazer têm origem em instintos não satisfeitos, mas funcionam em torno da autopreservação do indivíduo, faz sentido para Burke que a origem das noções de Beleza e Sublime são as paixões que não conseguimos definir nem controlar, sem nenhuma justificativa racional que suporte tais sensações.
Há muita incerteza no discurso de Burke. Por mais que seja uma obra que não dê referências formais para uma análise na qual possa se elaborar crítica de arte com base em suas reflexões, ela é uma referência para se pensar sobre os fundamentos em que nos baseamos para julgar o que é belo e o que é sublime. Deus está sutilmente nas entrelinhas como Criador do mundo, dos seres e das paixões. A leitura vale a pena: é a expressão do dilema do homem do final do período barroco, que busca o repouso na racionalidade dos gregos e vive a tensão da falta de compreensão de suas próprias paixões. Tal sentimento parece um tanto presente entre nós.
Carla Gullo
Estudou filosofia na Universidade Federal de Goiás.