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Quando Daniel Galera encontra Eugênio Bucci

por Fabio S. Cardoso (03/12/2016)

O romance de Galera é a mostra exemplar de pessoas tentando a todo momento se reencontrar.

"Meia-noite e vinte", de Daniel Galera (Companhia das Letras, 2016, 208 páginas)

“Meia-noite e vinte”, de Daniel Galera (Companhia das Letras, 2016, 208 páginas)

1.

No livro João Santana: Um marqueteiro no poder, perfil biográfico assinado por Luiz Maklouf de Carvalho do todo-poderoso comissário da propaganda política de Lula, Dilma e do PT entre 2006 e 2015, há uma passagem que, de certa maneira, ficou ofuscada, tendo em vista os acontecimentos políticos do país nos últimos dois anos – desdobramentos da operação Lava Jato, impeachment de Dilma Rousseff e a falência da “narrativa” petista nas eleições recentes pelo Brasil. A passagem em questão se refere ao comentário de João Santana das já históricas Jornadas de Junho de 2013.

Disse assim o marqueteiro:

Junho era uma emoção, não era um sentimento. O sentimento das pessoas em relação a Dilma não foi modificado. Para isso precisaria de uma série de condições objetivas, concretas, que não aconteceram.

A menção a esse argumento de João Santana é importante porque, recentemente, dois livros tentaram interpretar esse fluxo de emoções. No plano da não-ficção, Eugênio Bucci escreveu A forma bruta dos protestos, ensaio que busca jogar luz nas passeatas que tomaram o Brasil de assalto a partir de junho de 2013. Já no campo da ficção, Meia-noite e vinte, novo romance de Daniel Galera, tem em um de seus personagens uma figura que participa das Jornadas de Junho na cidade de Porto Alegre como um dublê de black bloc, depredando exatamente a loja que pertencia à sua família. Trata-se, com efeito, de uma das principais passagens do livro de Galera, que consegue, como poucos autores de sua geração, elaborar uma teia de acontecimentos capaz de prender a atenção do leitor. A propósito disso, a cena inicial do romance é um exemplo do uso desse recurso.

Aquele ardor repentino por facilitar a destruição do mundo tinha a ver com o cheiro de merda humana nas calçadas, com os vapores do chorume acumulado em torno dos contêineres de lixo da prefeitura, com a greve dos ônibus e com o desespero geral pela onda de calor que esmagava Porto Alegre naquele final de janeiro, mas, se houve um antes e um depois, um marco entre a vida que parecia que iria ter e a vida que eu tive, esse marco foi a notícia de que o Andrei havia sido assassinado num assalto à mão armada, na noite anterior, perto do Hospital das Clínicas, a poucas quadras da região da Ramiro Barcelos por onde eu caminhava. (p.7)

2.

Em que pese a referência, as manifestações de Junho de 2013 não são o tema principal do livro de Daniel Galera. Antes, Meia-noite e vinte traz a história de quatro amigos que, depois de alguns anos, perderam o contato entre si. O reencontro de Aurora, Antero e Emiliano se dá, portanto, exatamente porque Andrei, o escritor talentoso do grupo, o único que permaneceu fiel às intenções artísticas da pós-adolescência, morre vítima de um assalto. A trama do romance, que é narrado pelos outros três amigos, se desenvolve em torno desse reencontro, mais precisamente: de como uma geração que tinha tudo pela frente, parece, não mais que de repente, ter se perdido ao longo dos últimos anos.

Pode-se afirmar, desse modo, que o romance de Galera se propõe a fotografar uma parcela significativa de uma geração. Qual parcela, especificamente? Ninguém menos do que adultos educados que assumiram os 20 anos logo depois da passagem para o século XXI. Como registro do tempo, vale a pena destacar que um dos narradores, a certa altura do livro, destaca que um dos grandes medos do fim dos anos 1990 era o “bug do milênio”.

Para além disso, é importante realçar que a galeria de personagens elaborada pelo autor é uma espécie de viga mestra dessa construção narrativa. Cada qual à sua maneira, Aurora, Antero e Emiliano (esse último responsável pela escrita da biografia de Andrei) são a mais perfeita tradução dos dramas de consciência, das hesitações e da fragilidade emocional de pessoas, que, ao mesmo tempo que possuem uma grande consciência de si e do seu papel no mundo, ainda têm enorme dificuldade em tomar decisões racionais mais acertadas e menos pautadas por certa infantilidade. Isso se traduz, por exemplo, nas atitudes de Aurora. De um lado, ela é capaz de encarar o aborto numa boa, como mulher do seu tempo, progressista, no melhor estilo “meu corpo, minhas regras”, sem se importar com qualquer tipo de cobrança social. De outro lado, no entanto, não consegue enfrentar o assédio moral na Universidade onde atua como uma das principais pesquisadoras. Bióloga, Aurora desafiou a autoridade de um professor, mas ficou na defensiva quando os seus segredos à Black Mirror são descobertos.

De igual modo, Antero, o artista que se converteu em publicitário, é um desses dublês de guia espiritual, coolhunter e palestrante que, de uma hora para outra, tomou de assalto a publicidade e a própria ideia de convergência entre comunicação e novas tecnologias. Nós, leitores, não sabemos o que figuras como Antero fazem; ainda assim, nós já tivemos a chance de presenciá-lo em ação, e aqui o autor comete a picardia de colocá-lo em moto-contínuo de uma cena de masturbação enquanto o filho pequeno dorme no quarto. Novamente, adolescentes em corpo de jovem: a experiência do relacionamento físico é facilmente trocada por uma mais cinestésica, própria do espetáculo, que é a de entrar em sites de pornografia online e ficar por bastante tempo em transe em busca de êxtase sexual permanente.

Como já foi dito, coube a Emiliano, o jornalista, a tarefa de escrever a biografia de Andrei. No tocante ao escritor, o livro nos conta que ele é talentoso, mas sua legião de fãs mais parece a de seguidores de uma espécie de culto de personalidade, tão típico dos nossos dias. Andrei é legítimo na medida em que, tal como outras personalidades artísticas e criativas de sua geração, tem uma preferência por criar em torno de si uma narrativa intrincada cheia de mistério, com vários perfis nas mídias sociais, atento em dominar as novas tecnologias, não necessariamente interessado em construir uma obra. Emiliano, por sua vez, ao tentar escrever a história do amigo esbarra na dificuldade em se desvincular do personagem, e aqui temos o desdobramento de uma trama que não tinha sido anunciada.

3.

De modo proposital, A forma bruta dos protestos, livro de Eugênio Bucci, é um livro desigual. O autor confirma isso logo no começo, quando escreve que na primeira parte existe um pendor para reconstituição jornalística enquanto a segunda parte oferece um tratamento teórico, algo que, nesse último caso, pode soar exagerado, se tomado ao pé da letra.

Bucci não pretende fazer uma leitura científica dos protestos, ainda que se utilize de pensadores diversos para apresentar uma leitura crítica. Aliás, aqueles que estão habituados com os seus textos vão encontrar ali cacos de artigos e ensaios anteriores, na medida em que o autor se desdobra a falar do espetáculo e de como esse fenômeno se impôs junto aos jovens que foram às ruas em junho de 2013. Para Bucci, portanto, é a estética do espetáculo, da performance acima de tudo, que ajuda a explicar como os acontecimentos se desenvolveram nos últimos anos. Vale a pena citar uma passagem:

Os black blocs de junho de 2013 eram uma imagem (supostamente de contestação) que se batia contra outra (de manutenção do status quo). Não realizavam um modo de ativismo, como seus atores teriam preferido dizer, mas uma hiperatividade que soube fazer do anonimato sua via narcisista. A essa figuração estrepitosa e maquinal, eles chamavam de tática – uma tática que eles assimilavam não em grupos de estudo ou em sessões de doutrinação política, mas ao assistir a vídeos nas telas eletrônicas, como fazem os praticantes de skate, os músicos das bandas cover e os papais noéis de shopping. (p.53)

No livro de Daniel Galera, o trecho em que Antero aparece como cosplay de black bloc traz precisamente a representação de um narcisista. Ou melhor, de um narcisista no palco. É curioso, mas o autor acerta exatamente quando apresenta os protagonistas do romance como personalidades instáveis, muito embora sejam dotados de uma arrogância e de um falso saber sobre si e sobre o mundo.

Nesse sentido, até mesmo as eventuais virtudes são facilmente transformadas em caricaturas, como é o caso do posicionamento ideológico de Aurora, quando confrontada pelo pai. Ela chega a dizer: “pode me chamar de petralha, mas…”. No turbilhão de acontecimentos políticos de sua geração, a menina em corpo de mulher prefere se esconder num argumento frágil a defender abertamente sua posição. Dito de outro modo, ela escolhe a zona de conforto da desqualificação do adversário (ao citar, ironicamente, o termo petralha, marca referencial de um dos lados do falso debate), demonstrando um posicionamento tipicamente olímpico de quem ignora os valores da conversação, mas que, ainda assim, assume os louros do vencedor legítimo.

4.

O ensaio de Eugênio Bucci e o romance de Daniel Galera são frutos da mesma árvore porque simbolizam o novo tempo do mundo, uma época em que a entropia e o ruído têm como denominador comum o culto da performance. Não é mera coincidência, portanto, que sejam livros publicados no mesmo ano. Trata-se, em verdade, de uma espécie de fotografia de um período histórico, fundamental para que se possa compreender o que aconteceu, mas que, exatamente por se tratar de episódios que se desmancham no ar, tendem a não permanecer. Então, quando escrevem das Jornadas de Junho, o que sobra são as emoções, o registro do entretenimento, de fenômenos da vida, mas que, seja pela tragédia, seja pela farsa, não se tornaram capítulos definitivos de uma época.

Dessa forma, ainda que possa parecer uma história prosaica, o romance de Daniel Galera é a mostra exemplar de pessoas tentando a todo momento se reencontrar – pode ser consigo mesmo, pode ser com o outro –, enquanto o ensaio de Bucci é a análise da impossibilidade desse reencontro. Meia-noite e vinte e A forma bruta dos protestos forjam um coda para uma narrativa do Brasil pós-2013, mas a partícula de realce tão somente reforça a veleidade, e as emoções, de uma história que ainda não terminou.

Fabio S. Cardoso

Jornalista. Autor de Capanema (Record, 2019).