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Um thriller sobre os crimes fiscais do governo Dilma

por Luiz Eduardo Peixoto (05/12/2016)

O livro de João Villaverde mostra bem como a concentração de poder decisório em alguns órgãos burocráticos pode ser danosa para o país.

"Perigosas pedaladas", de João Villaverde (Geração Editorial, 2016, 336 páginas)

“Perigosas pedaladas”, de João Villaverde (Geração Editorial, 2016, 336 páginas)

Para a sorte da memória do país, uma safra de livros vem chegando às estantes, narrando acontecimentos políticos e econômicos dos últimos anos. Surgem na esteira do que será a maior recessão da história documentada do país, em uma combinação depressiva de alta inflação, brutal queda do investimento, desequilíbrio fiscal e salto do desemprego. Analistas se esforçam em entender o caminho que nos levou a uma destruição de riqueza sem precedentes, enquanto o país desequilibrava suas contas de tal forma a quase ser declarado insolvente por alguns estudiosos. Há desde os mais técnicos e aprofundados – como Finanças públicas, organizado por dois dos maiores especialistas do Brasil no assunto, Mansueto Almeida (hoje Secretário de Acompanhamento Econômico) e Felipe Salto – até o ótimo Como matar a borboleta azul de Monica de Bolle, que relata a política econômica dos anos Dilma Rousseff como uma instigante e lírica histórica de terror (nada mais apropriado).

Perigosas pedaladas é dos essenciais: conta a história de como o governo federal, em especial nas figuras da ex-presidente Dilma Rousseff, do ex-ministro da Fazenda Guido Mantega e do ex-Secretário do Tesouro Nacional Arno Augustin, acabou por colocar a nação em uma trajetória descontrolada de gastos, com a adoção de um tóxico coquetel de subsídios, renúncias fiscais, caríssimos programas de incentivo e controle de preços para mascarar uma galopante inflação. O que se faz aqui aproxima a obra mais de um thriller de política econômica, em uma bem amarrada e lógica sequência historiográfica – que permite contextualizar bem a miríade de decisões que levaria o Brasil ao atoleiro, incluindo relatos das origens dos responsáveis pela calamidade fiscal. Permite destrinchar as atitudes de mentes que, orgulhosamente, esbravejavam “gasto é vida” – vida que, nos anos da Nova Matriz Econômica, foi como a de um viciado que se utiliza das mais variadas desculpas de forma a seguir em frente com o problema, e escondê-lo daqueles próximos.

Poucos seriam tão indicados para o relato quanto o autor, João Villaverde, que foi um dos primeiros jornalistas a expor as fraudes contábeis que acabariam por embasar o processo de Impeachment da Sra. Rousseff. Jornalista d’O Estado de S. Paulo (que, aliás, tem competente equipe de cobertura da economia, com nomes como Adriana Fernandes, Anne Warth e Murilo Rodrigues Alves), Villaverde esteve por trás da investigação que resultou em uma série de reportagens indagando as inconsistências nas contas públicas, que vai desde o rombo bilionário nos fundos de financiamento ao setor elétrico (financiados via pedaladas), após Dilma obrigar uma queda de quase 20% nas taxas de eletricidade – que, alguns anos mais tarde, além de arriscar deixar o país sob racionamento, forçaria a privatização de boa parte das distribuidoras da Eletrobrás, agora perto da falência – até os escandalosos subsídios para gigantes conglomerados via taxas de juros subsidiadas pelo BNDES.

A obra é prazerosa, algo incomum em livros similares, dada a complexidade da política fiscal e de leis que regem o governo. Comentando as pedaladas, Villaverde é didático e permite que mesmo aqueles mais leigos em política e economia possam ter uma leitura agradável, e é estimulante na narração: traduz bem fatos de aridez técnica e o emaranhado complexo das contas públicas, sem maiores perdas em profundidade, e entremeia os eventos da política econômica recente com acontecimentos que, além de ajudarem a contextualizar o momento, conferem maior fluidez à leitura. Além disso – como faz questão de delinear no início do livro –, o autor é extremamente apegado aos fatos, evitando interpretações próprias e sendo, na maior parte do relato, imparcial.

O livro mostra bem como a concentração de poder decisório em alguns órgãos burocráticos pode ser danosa para o país, com inúmeros desmandos em uma estrutura de cima-para-baixo com grande capacidade de impor uma agenda e influenciar os mais diversos aspectos da economia (e da sociedade, ao evitar o debate indispensável sobre recursos escassos e emitir sinais mentirosos aos indivíduos) no país. Ao registrar um período em que se enganou a população sobre um aspecto do governo que mais deveria ser transparente ao público – o dinheiro de todos, arrecadado via impostos – Perigosas Pedaladas atesta a importância de se fiscalizar ativa e incansavelmente os “donos do poder”.

Os relatos dos primeiros anos de atividade dos arquitetos das pedaladas conferem contornos ricos à história. É lembrado, por exemplo, os anos de Dilma quando gestora das contas da prefeitura de Porto Alegre (1981-85), até deixar o cargo em momento dramático, fazendo o prefeito seguinte herdar um orçamento que não conseguia nem pagar o salário de funcionários – “incapaz”, ele diria sobre a economista que viria a gerir com mãos de ferro todo o país. Também nos é revelado que Arno Augustin, que controlaria por quase 8 anos o Tesouro Nacional, deixara o Rio Grande do Sul em estado falimentar. Ainda que Villaverde não se alongue muito nisso (até porque os eventos no território gaúcho gerariam outra obra aterradora), o economista – que no início da vida adulta militava como comunista na UFRGS – iniciaria suas manobras fiscais em larga escala ali, no governo de Olívio Dutra (PT), aprofundando um problema que desembocaria numa imensa crise anos mais tarde, com o estado sem condições de sustentar serviços públicos básicos.

João Villaverde faz um belíssimo trabalho em narrar uma história que, como se viu no debate público que acompanhou a destituição da ex-presidente, passou longe do conhecimento amplo da população. Dilma não foi deposta pelos crimes fiscais (nem aos manifestantes nas ruas usaram isso contra a petista), mas ainda assim é inegável que ela ajudou a arquitetar um dos mais graves e danosos sistemas de fraude contábil na gestão pública no país, que mascarou, por tempo demais, a real situação das contas públicas brasileiras.

E a natureza criminosa é algo sobre o qual Villaverde não deixa dúvidas: o jornalista abre a obra com o relato de um evento que passou totalmente despercebido, quando a Fazenda, em 2009 (comandada pelo próprio Guido Mantega), confirmou que seria crime a Caixa Econômica Federal, banco público, “utilizar de suas disponibilidades para antecipar recursos, em nome da União”, algo que, a Procuradoria-Geral da Fazenda (PGFN) garantiu, feriria a Lei de Responsabilidade Fiscal. As fraudes fiscais, se sabia (e, quanto mais evolui o livro, mais claro fica), atentavam contra a lei e a boa gestão. A exposição, clara e em sequência lógica, dos debates e ordens internas no comando econômico do governo não deixa dúvidas: havia o amplo entendimento, dentro do governo, de que as manobras eram fraudes – tanto é que a ordem, desde o início, foi abafar qualquer discordância.

Nos são expostas as diversas e complexas operações que fariam dos boletins estatísticos do Tesouro Nacional peças de ficção, com o atraso de pagamentos em programas sociais, de repasses a estados e municípios (que, na época, só foram neutralizados pelo aumento do endividamento destes) e de investimentos federais diversos, enquanto o governo efetivamente contraía dívidas com Caixa e Banco do Brasil – que pagavam os beneficiários sem efetivamente receber do governo, configurando uma operação de empréstimo proibida pelas leis brasileiras. Em 2014, ano de eleição (e ápice da Nova Matriz Econômica), o recado da Presidência e da Fazenda era claro: era preciso fazer o que fosse necessário para conseguir espaço para os crescentes gastos, mesmo já com claros sinais de risco às contas públicas.

Os empréstimos dos bancos públicos ao governo eram tão recorrentes que mesmo a Caixa, controlada pelo governo federal, teve de ingressar com processo na Advocacia-Geral da União para mediar os atrasos, que levavam a cada vez maiores prejuízos e faziam os gestores e técnicos do banco se sentirem com medo de serem enquadrados e incriminados pela justiça. Relata Villaverde:

As volumosas pedaladas praticadas pelo Tesouro nos ministérios forçavam a Caixa a usar recursos próprios para continuar pagando em dia os programas de seu controlador, o governo. Esta atitude (…) poderia ser interpretada como uma violação grave à Lei de Responsabilidade Fiscal e também à Lei do Colarinho Branco (…). O pânico era grande.

Além disso, o governo de Dilma Rousseff ampliou o uso dos bancos públicos para levar a cabo programas sociais, efetivamente fazendo destes uma extensão de seu orçamento – algo muito similar ao que o governo militar fez em fins dos anos 70, com a conta-movimento no Banco do Brasil.

Uma outra característica positiva do livro é o relato direto dos acontecimentos, citando explicitamente nomes, órgãos e empresas responsáveis pelas ações e declarações no período. Isto permite dar uma face a cada ação e declaração do período, de modo a não deixar dúvidas sobre os responsáveis. Na narração de Villaverde, eles se concentram na ex-presidente Dilma e sua fiel tríade no comando da política econômica – Augustin, Mantega e Coutinho – mas, o autor não deixa de citar importantes atores no jogo de interesses que suportaria o descalabro fiscal – entre os quais, interlocutores da Fiesp, CNI e Firjan. O autor, no entanto, pouco cita outros atores políticos (amalgamados em uma gigante coalizão governista que participou da eleição de Dilma e foi complacente com os crimes), já que opta por focar nos eventos ligados à gestão fiscal.

Somos esclarecidos de que, sim, a ex-presidente tinha total controle do que ocorria na tomada de decisão da troica econômica; o Banco Central, sob a gestão de Alexandre Tombini, foi complacente com a irresponsabilidade fiscal e prontamente ouvia os “recados” da Fazenda, como na operação abafa que se seguiu à descoberta por técnicos de um rombo de R$ 4 bilhões, ainda em 2013; e Arno Augustin ativamente ordenou previsões irreais, obras de ficção científica, de forma a poder gastar muito acima dos limites previstos pela lei Orçamentária – e ordenou a demissão dos que ousavam expor a realidade, como o então secretário do Ministério de Previdência Social, Leonardo Rolim, cuja cabeça rolou após publicamente discordar da previsão de redução no déficit previdenciário em 2014 (mesmo sem quaisquer mudanças no regime).

Os relatos da rebelião entre os técnicos do Tesouro Nacional e de outros órgãos do governo (incluindo o TCU, ainda que tarde) são especialmente interessantes, por de fato ilustrar o caráter criminoso e contínuo das fraudes, não deixando dúvidas de que as pedaladas foram arquitetadas com o deliberado intuito de submergirem, jamais vindo a público. A documentação reunida por Villaverde – que efetivamente atesta as operações de pedaladas como crimes – é ponto importante para tipificar as ocorrências como crime. Da metade do livro em diante, se percebe quão gigantes as pedaladas se tornariam, num mecanismo que se retroalimentou.

Dilma e sua tríade no comando da economia agiram como ladrões que percebem como é fácil roubar lojas próximas umas das outras – e o fizeram com frequência cada vez maior. A ausência dos tribunais de contas e a ilusão de consumo criada por crédito farto ajudariam a prolongar os crimes, mas, como qualquer ladrão, eles quebrariam a cara eventualmente – desembocando nos capítulos finais, onde o foco se volta para o impeachment, em um relato que evita simplificações comuns aos eventos do período.

Economistas não raro criticam jornalistas por transmitirem os fatos da economia de forma simplista e superficial. Vale mencionar, porém, que as manobras fiscais da equipe chefiada por Rousseff e Mantega não foram captadas antes pelos órgãos de controle, como o Tribunal de Contas da União (TCU), e que as críticas de analistas independentes – destacadamente Almeida, Salto, Marcos Mendes, Fábio Giambiagi e Fernando Montero – só tiveram presença relevante no debate econômico do país com a vazão de suas análises pela imprensa (e posterior investigação), em veículos como o próprio Estadão, Valor Econômico, Gazeta do Povo e Correio Braziliense. Villaverde é um dos nomes por trás dessas revelações, explicitando o valor para uma sociedade em se ter uma mídia investigativa vigorosa e independente. O livro aqui analisado organiza e sintetiza uma história que precisa ficar acesa na memória brasileira, para que não incorramos novamente nos erros e no desastre que se seguiu.

Não espere por diversos gráficos ou minúcias de política econômica. O intuito do livro não é esse – a opção de Villaverde é por narrar os acontecimentos focando na reação de seus principais atores. E é isto que o destaca em meio a outros, já que permite entender um pouco melhor a rationale por trás dos acontecimentos. Além disso, dá uma boa aula da dinâmica das decisões em Brasília, inclusive ilustrando a interessante mudança de paradigma e de controle dentro do Partido dos Trabalhadores, que vinha ocupando o poder desde 2003.

Algo que demonstra de forma inequívoca a importância de relatos como o de Villaverde está em nossa própria história. Era recorrente na gestão econômica do país, em especial entre os anos 50 e 80, um indiscriminado uso de bancos públicos e estatais como instrumentos de intermediação dos gastos públicos, sendo uma constante o repasse de empréstimos do Banco do Brasil para o Tesouro Nacional, por exemplo. A prática tornaria a dívida pública insustentável e colocaria fogo no processo que terminou na década perdida e nas loucuras da hiperinflação – e, ainda assim, seria repetida décadas depois. Os eventos daquela época são pouco compreendidos pela população em geral, e estão infelizmente restritos aos livros de história econômica – algo reconhecido por João Villaverde, que enriquece o relato contextualizando as operações de décadas passadas. Se mais bem explicitados, quem sabe não teríamos algum tipo de vacina contra os equívocos do passado?

Perigosas Pedaladas – e o próprio trabalho do jornalismo investigativo que ele tão bem exemplifica – é indispensável para se entender o Brasil de hoje e a encruzilhada em que nos encontramos. É também um poderoso alerta contra o populismo e a irresponsabilidade fiscal, cujos frutos são de uma podridão que hoje nos insufla.

Luiz Eduardo Peixoto

Graduando em economia na FEA-USP.



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