A falta de capacidade tática e a cortina de fumaça do sectarismo burocrático colocam a esquerda em um pedestal e a afastam do povão.
Tenho pouco apreço por Lênin. Minha opinião sobre o primeiro líder do Império Soviético é similar à de Edmund Wilson, no prefácio de 1971 a Rumo à Estação Finlândia – “tenho a impressão que Vladimir Ilitch demonstrava consideração e bondade exclusivamente com aqueles que não discordavam dele” – ou de Dimitri Volkogonov em Sete Chefes do Império Soviético – “[Lênin] parece ter amado apenas uma coisa: o poder. Odiava a autocracia, a burguesia, os latifundiários, os mencheviques, os revolucionários socialistas (SR), os kulaks, a religião, o clero, a classe média baixa, os parlamentos, os reformistas, o meio termo, a democracia social, a intelligentsia russa, os hesitantes e os confusos – enfim, todos os que não estavam ao seu lado”. Todas características de um líder de seita, ou de um tirano.
Contudo, é inegável a sua capacidade tática. A União Soviética, que durou 70 anos e ainda hoje influencia cabeças no mundo, de Mauro Iasi a Vladimir Putin, não existiria não fosse sua liderança férrea à frente do Partido Bolchevique e do regime comunista nascente. Claro, sempre seria possível toda essa capacidade sem que a pessoa se tornasse um ditador. Da esquerda à direita, temos diversos exemplos de gênios táticos com fortes convicções democráticas – Mandela, Adenauer, Kennedy, Roosevelt, De Gaulle, Churchill, Reagan, Kubitschek… Mas, para mal da esquerda e do povo russo, eles tiveram Lênin.
Basicamente, Lênin se movia em torno de um único princípio: total independência organizacional e programática de seu grupo político, estruturado sob a forma de um partido conspirador altamente disciplinado sob um regime que ficou conhecido como “centralismo democrático”. Fora isso, tinha a flexibilidade tática de um político do século XIX, como Metternich, Bismark ou Disraeli. A liderança de um grupo político independente, ainda que pequeno, e a flexibilidade tática se subordinavam a uma vontade férrea e determinada de construir um novo regime político na Rússia, e à consciência de que só ele era capaz de fazê-lo.
Esta combinação foi crucial para assegurar-lhe um pequeno exército disciplinado de seguidores, capaz de suportar golpes políticos heterodoxos contra uma geração de líderes débeis na Rússia, desde os Romanov, tão imbecis que eram influenciados por um charlatão como Rasputin, até chefes mencheviques como Martov e Plekhanov, passando pelo liberal Kerensky. Quem não conhece a história da Rússia no início do século XX não consegue imaginar quão mal servido o país estava de lideranças. Lembrava o Brasil de hoje. Ao mesmo tempo, sua determinação o levava a ignorar completamente as assimetrias impostas pela realidade, ao ponto de não pensar duas vezes antes de chamar o principal líder da social democracia alemã, Karl Kautsky, de renegado.
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A essa altura o leitor menos paciente com marxismos e russices deve estar pensando “mas Paulo, Lênin numa hora dessas?” Sim, é importante lembrar de Lênin porque ele era um gênio da política – ainda que um gênio do mal, como lembra Volkogonov. E porque Lênin ainda tem o respeito da esquerda brasileira – se eu falasse sobre Kissinger eles não se dariam ao trabalho de ler. Kissinger também é um gênio do mal, embora suas convicções democráticas sejam mais fortes que as de Lênin. E Lênin tem algumas lições a dar aos seus seguidores brasileiros, divididos entre o sectarismo burocrático e o infantil.
Se tinha uma coisa que Lênin não fazia era ficar escolhendo aliado. Mantida a independência de sua organização, aliava-se com quem fosse preciso para viabilizar o seu projeto político. Por isso, antes de 1917, quando os bolcheviques tinham apenas dois deputados na Duma, espécie de parlamento convocado pelo czar, eles tinham ações em comum até com o Partido Constitucional Democrata (conhecido como Cadetes), além dos outubristas, trudoviques e outros grupos liberais e democráticos.
Depois, quando eclodiu a Revolução de Fevereiro de 1917, chegou a um acordo com o maior inimigo da Rússia, o Kaiser alemão Frederico Guilherme II, pelo qual teria salvo conduto para passar por terras alemãs em troca da retirada russa da guerra. Já na Rússia, quando o chefe do governo provisório Kerensky o havia colocado na prisão, chamou o apoio ao seu governo contra um golpe militar promovido pelo general Kornlov. Para viabilizar a Revolução de Outubro, quando os bolcheviques deram um golpe de estado, cedeu a maioria do governo ao partido socialista revolucionário, de inspiração liberal. Por fim, não deixou de articular ajuda econômica à Alemanha governada pelos social democratas, o mesmo partido do renegado Kautsky, que sofria os efeitos do Tratado de Versalhes.
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Diferentemente de Lênin, a esquerda brasileira, com raras exceções, decidiu que não se junta com o Vem Pra Rua e o Movimento Brasil Livre. Podemos dividir essa esquerda em dois grandes grupos:
* PT e PCdoB são dois defuntos políticos, cujo fedor nos causa náuseas. Eles preferem se unir a Renan Calheiros e Rodrigo Maia, apoiando o desfiguramento das medidas contra a corrupção. Do PT, o único que votou contra a emenda de Weverton Rocha (PDT-MA) que criava o crime de responsabilidade de juízes e promotores foi Andrés Sanches – o seu lado corintiano falou mais alto que seu lado petista. O PCdoB votou coeso a favor da mordaça. Por isso, não interessa a eles enfrentar a corrupção, mas sim estancar a Lava Jato.
* PSOL, REDE, Raiz, blogueiros da Boitempo e a galera que rachou com o PSTU foi contra a medida, mas se posicionou contra o ato deste domingo. Na visão deles, não cabe unidade de ação com esses movimentos, porque eles apoiaram o impeachment. Sua decisão se baseia na Narrativa do Golpe.
A primeira turma não nos interessa, o lugar deles é na carceragem da Polícia Federal. É com a segunda turma que me preocupo. O seu comportamento é errático, volúvel e infantil: ora se contrapõe ao petismo, ora o segue rumo ao abismo. Como resultado, se afasta das massas e comete suicídio político, um trágico suicídio político.
O alerta não é meu, mas de referências importantes da esquerda que permanece independente. Por exemplo, para Pablo Ortellado:
As mobilizações anticorrupção eram a expressão de um mal-estar profundo da sociedade brasileira que assistia perplexa às crescentes cifras de bilhões de reais desviados de sua principal empresa pública. Enquanto a esquerda respondia com desqualificação dos adversários e um infantil discurso de “a corrupção é estrutural ao sistema e os outros partidos que estiveram no poder também se envolveram com ela”, os novos grupos de direita canalizavam sozinhos a indignação popular, convertendo o sentimento anticorrupção em antipetismo e o antipetismo em antiesquerdismo até transformar em corrupto qualquer um que se dissesse de esquerda.
Para Raphael Tsavkko:
Ao invés de tentar aproveitar a onda, de tentar tomar a frente da onda de insatisfação ou de ao menos mostrar que também está revoltada, setores da ex-querda e da esquerda preferem seguir fechadas em si mesmo, discursando apenas para os seus e mantendo um purismo absolutamente deslocado.
Não se trata de fazer aliança com a direita (algo que o PT fez durante seus 13 anos no poder, mas hoje paga de puro), mas de fazer uma aliança com a população. Se trata de descer do pedestal da pureza e marchar lado a lado com a população revoltada que não dá a mínima pra bandeiras de partidos e balões de sindicatos com necessidade de aparecer e vender sua marca.
Para Idelber Avelar:
A esquerda brasileira que morreu abraçada ao governo anterior — e boa parte da esquerda que nem era governista — usou e abusou do direito de distribuir levianamente rótulos de golpista no último ano e meio. Ter uma leitura diferente da realidade política passou a ser suficiente para receber deles a etiqueta de golpista. Racharam associações acadêmicas, aparelharam sindicatos e associações populares, tudo para impor uma versão da realidade que nem 5% da população brasileira compartilha.
O resultado está aí: isolados, sem proposta nem pauta, gritando “Fora Temer” durante ano e meio para depois soltar um “não é bem assim” justamente na hora em que Temer pode mesmo cair, perguntando “cadê as panelas?” durante meses para depois ficar de braços cruzados olhando enquanto os paneleiros vão de novo às ruas, presos em uma psicótica narrativa que tem que inventar uma teoria da conspiração diferente para cada fato novo que surge, humilhados nas eleições.
Para Bruno Cava:
Em vez de olhar para os próprios problemas, a esquerda prefere atribuí-los a causas externas, projetando um inimigo terrível que sempre parece emergir de alguma profundeza sinistra. Diante desse monstro do pântano, a unidade deveria ser imposta como necessidade histórica a qualquer um que preze os direitos, a democracia, o mundo: contra uma onda conservadora, contra a chocadeira de um fascismo originário, contra o Partido da Imprensa Golpista, contra um golpe imperialista norte-americano e a restauração do Consenso de Washington. Não importa, é sempre alguma entranha que é orgânica à sociedade, que estaria vindo à tona para ameaçar a civilização das esquerdas e a sua missão pedagógica. Uma explicação que não explica nada.
Vejam, é raro eu concordar com todos esses caras ao mesmo tempo, uma vez que abandonei o marxismo faz tempo, rezo para um Deus semita e troquei a academia (as duas, a universitária e a de ginástica) pelo empreendedorismo. O problema é que o enfraquecimento das esquerdas atrapalha o pluralismo político da sociedade tanto quanto foi o “todos com Lula” que reinou de 2002 a 2013. E uma sociedade pouco plural é uma sociedade pouco dinâmica, o que atrapalha o desenvolvimento do capitalismo. Ou seja, pelo bem do capital, é importante que a esquerda continue existindo.
O problema aqui é de tática, mas a tática está sendo afetada pela subjetividade da narrativa. É, meus amigos marxistas, o mundo das ideias conformado na Narrativa do Golpe os está fazendo ignorar as condições objetivas, fazendo de seu discurso um sermão fundamentalista e nada materialista (ah, eu estava doido para usar essa carga de sarcasmo!).
As manifestações deste domingo foram grandes, importantes, e colocaram o governo Temer em xeque. A esquerda ficou fora disso. Para o cidadão mais ou menos informado, ela foi apenas cretina. Para o cidadão comum, ela apoiou o governo corrupto. Desfazer essa percepção vai demandar muito mais do que propagandismo e mimimi do tipo “você não estuda História”. É essa atitude que envergonha Lênin. Ou algum de vocês acha que a União Soviética surgiu graças a um grupo de bebês chorões reclamando que acabou o todinho?
Paulo Roberto Silva
Jornalista e empreendedor. Mestre em Integração da América Latina pela USP.
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