Agatha Christie tem mais a ensinar do que a crítica está disposta a reconhecer.
A recente refilmagem de Assassinato no Expresso do Oriente, dirigida e estrelada por Kenneth Branagh, parece uma tentativa de relançar o detetive belga Hercule Poirot, criado por Agatha Christie, num molde mais de acordo com o que os executivos de Hollywood imaginam ser as sensibilidades do público atual, a exemplo do que foi feito com Sherlock Holmes nos (até agora) dois filmes dirigidos por Guy Ritchie.
Trabalhar com Poirot neste contexto é, no entanto, uma missão mais ingrata do que com Holmes: se o detetive de Conan Doyle já trazia, dos livros, a musculatura de um herói de ação (em seu segundo romance, O Signo dos Quatro, não apenas ficamos sabendo que Holmes é exímio boxeador como ainda o vemos envolvido uma alucinante perseguição de lanchas pelo Tâmisa!), Poirot é, ao menos fisicamente, feito de material bem mais suave.
Branagh tenta chegar a uma síntese que resolva o conflito entre seu material de base e os imperativos do cinema de entretenimento, nesta era dominada pelas produções do complexo Disney/Marvel/Lucasfilm, mas o que obtém é uma pitada de ação pouco convincente e, o que é pior, uma infeliz diluição da tensão psicológica que marcava as adaptações anteriores do romance para as telas: a de 1974, dirigida por Sidney Lumet, com Albert Finney no papel de Poirot, e a de 2010, para televisão, de Philip Martin, com David Suchet como o detetive.
Suchet é o ator que mais vezes interpretou Hercule Poirot, tento estrelado uma série de TV que, ao longo de mais de duas décadas, adaptou quase todas as histórias escritas por Agatha Christie com o personagem, até o romance final Cai o Pano, cuja versão para a TV foi ao ar em 2013. Para duas gerações de fãs, Suchet é Poirot, do mesmo modo que, durante boa parte do século 20, Basil Rathborne foi Sherlock Holmes.
Isso trouxe a Branagh o desafio de criar uma identidade visual para sua encarnação do personagem que fosse distinta da anterior. A esse se somou outro desafio, o de trazer frescor a uma nova versão de uma história que depende, crucialmente, de um final-surpresa que já é de domínio público há mais de 70 anos.
Se o filme de Lumet é construído quase como um teorema, que conduz inexoravelmente à única solução possível, a versão com Suchet, de quase quatro décadas mais tarde, compensa a forte possibilidade de que os telespectadores já conhecerem o desfecho da história ao focalizar o drama moral de Poirot diante da escolha, aparentemente impossível, entre punir vítimas ou deixar escapar culpados. A nova versão tateia em busca de um meio-termo entre esses dois caminhos, e termina sem percorrer nenhum deles de modo convincente. Trata-se de um filme razoável quando julgado por seus méritos intrínsecos, mas profundamente insatisfatório como adaptação.
O que nos traz à questão do apelo, que parece inesgotável, da história em si: da narrativa do assassinato no Expresso do Oriente. A sabedoria convencional sugeriria que um “whodunit” – um mistério clássico, que culmina com a revelação do culpado – se esgota em si mesmo: uma vez passada a surpresa, a história teria tanto apelo quanto o teipe de um jogo da Copa passada.
Mas o fato é que há pessoas que assistem a teipes de jogos de Copas passadas: porque o desfecho pode ser importante, e chegar a ele pela primeira vez é uma emoção que jamais se repete, mas não é a única emoção contida ali, assim como o nome do culpado está longe de ser a única coisa que interessa num mistério clássico.
A longevidade do interesse pelos livros de Agatha Christie, em comparação à obscuridade em que caíram obras de outros autores de mistério que, como ela, iniciaram suas carreiras nos anos 20 (alguém aí sabia que A.A. Milne, que depois ficaria famoso como criador do Ursinho Pooh, escreveu um mistério que foi best-seller em 1922?), sugere que a autora tem mais a ensinar do que a crítica – cuja atitude em relação a ela, no geral, oscila entre o desprezo e a condescendência – está disposta a reconhecer.
Uma dessas lições pode muito bem ser sua relação com fórmulas. Num momento em que a produção cultural se confunde com ação de marketing e a máxima é dar ao público cada mais do que ele já mostrou que gosta, Agatha Christie, que sabia ser formulaica – os suspeitos todos reunidos num mesmo ambiente, a lenta revelação do fato de que todos ali têm motivo para cometer o crime, o detetive genial – revela, em obras como O Assassinato de Roger Ackroyd, E Não Sobrou Ninguém e, sim, Assassinato no Expresso do Oriente, uma capacidade brilhante de subverter as próprias regras sem, no entanto, destruí-las. Ela entrega o que o leitor esperava, mas também algo mais.
Expresso Oriente funciona tanto como romance policial clássico quanto como comentário metalinguístico sobre o romance policial clássico, seus limites e convenções. A coincidência absurda que, na maioria dos mistérios estilo “cozy” (passado em ambientes familiares, “aconchegantes”), é um pré-requisito para a trama – a reunião, sob um mesmo teto, da vítima e de um grupo de pessoas com motivos e meios para matá-la – neste romance revela-se parte orgânica do enredo. E o que num romance policial comum seria “misdirection” (sob muitos aspectos, o policial clássico está para a literatura como o espetáculo de mágica está para o teatro), aqui se dá as claras: e é a clareza que engana.
Essa manipulação criativa de códigos, expectativas e regras implícitas está tão distante da subserviência cega às fórmulas quanto daquele par de soluções fáceis que tanto agradam a um certo tipo de intelectual, a paródia e a “desconstrução”.
Carlos Orsi
Jornalista e escritor, com mais de dez livros publicados. Mantém o blog carlosorsi.blogspot.com.