Os questionamentos de Finkielkraut sugerem reflexão mais aguda, sem apelar ao lugar-comum do pragmatismo.
Uma das muitas virtudes de A identidade envergonhada reside na sua estrutura. Explico. O novo livro do filósofo francês Alain Finkielkraut se organiza a partir das histórias que o próprio autor apresenta, ora segundo excertos extraídos da imprensa, ora de acordo com sua história pessoal. Essas histórias, que a princípio poderiam estar desconectadas no tempo e no espaço, são articuladas na escrita de Finkielkraut, um provocativo e arguto pensador da contemporaneidade. E, de fato, seu estilo só não supera a densidade ao qual o autor se dedica ao longo das 158 páginas: a questão da imigração e do multiculturalismo na França hoje, conforme indica o subtítulo do livro.
Trata-se, com efeito, de um dos pontos de discussão mais ardentes da política na atualidade. Por ocasião do resultado das eleições norte-americanas, para trazer outro exemplo, o pensador norte-americano Mark Lilla assinou, para o The New York Times, um artigo que foi bastante criticado porque, entre outras questões, fez a seguinte pergunta: “Como a diversidade deve moldar a política nos Estados Unidos?”.
De sua parte, Finkielkraut não responde diretamente a essa questão de Lilla, mas aponta para o estado da arte da política identitária na França, em especial no que concerne os aspectos ligados à imigração e ao multiculturalismo. Como se nota à medida que acompanhamos o raciocínio do autor, esses tópicos estão organicamente entrelaçados, haja vista que o embate sobre uso do véu, por exemplo, remonta não apenas a uma tradição do laicismo na França, como também corresponde a uma série de outras medidas que, tomando como base o primado da razão, não enxerga os impasses provocados pelo fenômeno do choque das civilizações em menor ou maior escala.
Alguém poderia imaginar que a retórica de Finkielkraut obedece à agenda dos falcões neoconservadores que assumiram o poder nos Estados Unidos no início dos anos 2000, declarando, inclusive, a guerra ao terror. Só que Finkielkraut, em vez disso, recupera a longa tergiversação europeia acerca da questão identitária, que, por seu turno, acaba por corromper os mesmos princípios que garantem a sua existência numa democracia liberal, e aqui talvez seja o momento para deixá-los com o próprio Finkielkraut, na tradução de Clóvis Marques:
Com a separação das ordens, Pascal dá à laicidade sua definição mais rigorosa: não só dar a César o que é de César e a Deus o que é de Deus, mas desvincular a vida do espírito da esfera religiosa, sem por isso deixa-la cair na esfera da política ou da economia. O místico Pascal é eminentemente laico, na medida em que reconhece, entre carne e caridade, a independência da ordem espiritual. Contra a velha opção que, diante do temporal, confundia espiritual e divino, ele circunscreve e seculariza o território do espírito.
Uma leitura apressada poderia mostrar que o livro endossa as fileiras das forças da reação, movimento este que, autoritário por excelência, flertaria com a xenofobia. O engano prosseguiria ao dar vazão ao espantalho do reacionarismo hostil que alcança determinada parcela de políticos europeus, sobretudo em países como a Hungria, mas que também começa a desgastar nações que deram guarida aos refugiados nos últimos anos, como foi o caso da Alemanha da chanceler Angela Merkel. Embora vencedora das últimas eleições, Merkel enfrentou dificuldades no sentido de formar nova coalizão para o governo. E muito disso se deve à fissura provocada pela política adotada para com os refugiados desde 2015.
A análise que Finkielkraut oferece em A identidade envergonhada, no entanto, vai além das notícias e dos diagnósticos políticos a curto prazo. Assim, a despeito de retomar episódios relacionados à questão identitária na França, sua preocupação se filia a uma perspectiva filosófica. Afinal, o quanto do modelo liberal francês, originário da Revolução, estaria sob risco caso essas medidas relacionadas à proteção da diversidade ganhasse mais fôlego na França? Em vez de reações simples, seus questionamentos têm relevo porque sugerem reflexão mais aguda, sem apelar ao lugar-comum do pragmatismo. Não que a realpolitik não faça parte da proposta legítima de análise, mas neste caso a leitura crítica tem mais a ver com uma compreensão mais ampla do fenômeno abordado.
É importante destacar outro momento notável do livro, que se encerra numa pergunta decisiva em torno da disputa no território das identidades:
O Estado não se limita a defender princípios da fraternidade, laicidade e igualdade(…) O Estado defende um modo de ser, uma forma de vida, um tipo de sociabilidade, uma forma de vida, um tipo de sociabilidade, em suma, arrisquemos a palavra, uma identidade comum. Mas, justamente, a palavra é arriscada. Somos pagos para saber que é possível fazer da identidade o pior dos usos. Donde esta questão crucial e temível: o pior não nos está ameaçando de novo? Até onde é possível, até onde é lícito reivindicar a mobilização, para pensar o viver-junto, do conceito de identidade comum?
É com esse tipo de reflexão que o autor guia o leitor no caminho de análise complexa do que está em jogo no território francês. Em outras palavras, o colapso da identidade comum leva a um processo de desidentificação que é sustentado pelo conformismo ideológico da nossa época, de acordo com as palavras de Finkielkraut: o politicamente correto. Embora muito já tenha sido escrito, contra e a favor dessa agenda, é interessante observar o quanto a noção de identidade envergonhada é derivada dessa estrutura de pensamento: afinal, é o politicamente correto que define a diversidade cultural como um ativo das sociedades contemporâneas; é o politicamente correto que exige que a alteridade tenha um status de idealização; no limite, é o politicamente correto que faz com que o homem democrático, em vez de ter autonomia, pense como todo mundo.
O argumento que consolidou as democracias no Ocidente jamais esteve tão fragilizado quanto agora. Em seu lugar, os modelos substitutos nem de longe almejam proporcionar um guarda-chuva tão amplo, mas as pessoas parecem não se importar com o fato de que estão prestes a perder o arcabouço fundamental da vida em sociedade. Nesse sentido, o alerta definitivo de Alain Finkielkraut é o seguinte: o colapso da identidade em comum, para além de ser uma questão filosófica elementar do nosso tempo, é também o colapso do viver-junto.
Fabio S. Cardoso
Jornalista. Autor de Capanema (Record, 2019).