O trabalho de Razzo é uma gota de sensatez e racionalidade em um oceano de lugares comuns panfletários.
Francisco Razzo é um sujeito de coragem. Sim, a maioria da população é contra o aborto. Mas quando vamos aos círculos intelectuais, a proporção se inverte, e se torna difícil se posicionar contra o aborto sem ser interditado como fundamentalista e assassino de mulheres. Por isso, entrar no debate de forma clara é um ato de coragem.
É também um ato de idealismo. Já faz um tempo que perdi as esperanças de que argumentos racionais sirvam para alguma coisa. Ultimamente acredito em narrativas. Razzo não. Ele acredita que “em disputas filosóficas, vence quem consegue apresentar e sustentar o melhor argumento”. Este esforço tem seus méritos: permite que os contrários ao aborto possam debater de igual para igual com os abortistas. Só por isso o livro vale a leitura. Ou, nas palavras do próprio autor:
Meu objetivo é convidar o defensor do aborto, que participa do debate público, a rever alguns de seus argumentos antes que produzam efeitos práticos e induzam uma pessoa a interromper a gravidez como se estivesse apenas exercendo sua liberdade e eliminando um amontoado de células. Também quero convidar aqueles que não estão muito seguros sobre o assunto a pelo menos saber como alguém contrário ao aborto pensa o problema pelo viés filosófico.
É um projeto ambicioso. Por um lado, é um convite para que os abortistas saiam dos lugares comuns que trazem a toda discussão e reflitam respeitosamente sobre os argumentos contrários. Por outro, incita os opositores do aborto a sair da bolha doutrinária. Algumas experiências recentes mostram que se trata de uma missão quase impossível: há tempos não vejo debates sobre o aborto sem desonestidade intelectual de lado a lado. O trabalho de Razzo é, portanto, uma gota de sensatez e racionalidade em um oceano de lugares comuns panfletários.
E qual a base de seus argumentos contra o aborto? Basicamente, a base de toda a Filosofia: quais os elementos que nos definem enquanto ser humano? Esta reflexão vai muito além das questões biológicas e das ciências humanas. Isto porque
A experiência humana ultrapassa as condições do fenômeno “vida” estudado pela embriologia. O fenômeno biológico não contempla a totalidade da experiência humana, e as ciências naturais referem-se apenas a uma pequena parte do que se entende por “vida”. Explica muita coisa, mas está longe de explicar todos os significados possíveis e objetivos do que é viver como pessoa. Já as ciências humanas abordam o fenômeno humano em suas relações históricas e estruturais. No entanto, para isso, presumem noções básicas do que vem a ser a própria realidade da vida humana. Só a filosofia, a partir de seus diferentes métodos, pode investigar essa realidade e responder de modo mais abrangente, consistente e adequado.
Ou seja, a reflexão proposta por Razzo vai para o campo da moral. Um ato não pode ser bom por estatística, mas por conta de uma reflexão sobre o homem e sua dignidade. Isso vale para todos os atos humanos, e o aborto não é exceção. Isso passa por uma hierarquia de valores. Para o autor, o direito à vida é um valor absoluto e superior ao direito à liberdade.
Formulado dessa maneira, evidenciam-se dois direitos básicos em aparente conflito: o direito à vida daquele que está por nascer e o direito à liberdade da gestante sobre o próprio corpo — porém, isso é só aparente, visto que (…) não se trata de dois valores absolutos em disputa. Há, na verdade, um valor absoluto, vida, e outro relativo, liberdade.
Razzo avança na reflexão sobre o status no nascituro. Mas e o direito da mulher? Não seria a proibição ao aborto uma imposição masculina sobre a mulher, que não teria direito a escolher sobre o seu próprio corpo?
Essa é uma construção imaginária. Só para dar um exemplo, nos Estados Unidos, em 2015, o jornal The New York Times fez uma matéria sobre o estereótipo de que o aborto seria uma guerra contra as mulheres. A constatação interessante, ao contrário do que ativistas pró-aborto divulgam, foi a de que “mulheres conservadoras são o segmento mais antiaborto da população, e as mulheres liberais são as mais favoráveis aos direitos do aborto”. Em outras palavras, do ponto de vista do conflito público, aborto é uma disputa entre as próprias mulheres e não a imposição de homens contra mulheres.
Avançando na questão filosófica, Razzo afirma que a contraposição entre o direito à vida do nascituro e da mulher é um falso dilema:
O crítico do aborto, ao chamar atenção para o valor intrínseco da vida do nascituro, não desvaloriza a vida da mulher; pelo contrário, reafirma e enfatiza o valor da mulher adulta como sendo um valor inalienável desde a concepção. Não se trata de “valorizar mais a vida” de um para desvalorizar a vida do outro.
A partir daí, Contra o aborto desmonta a argumentação de diversos grupos pró-aborto, inclusive a controversa Católicas pelo Direito de Decidir. Aí reside uma das grandes virtudes do autor: ele não reduz essa exposição a um maniqueísmo conspiratório, mas analisa a fundo a argumentação de cada grupo, expondo suas contradições internas. Trata cada adversário com respeito e honestidade, duas atitudes que faltam neste debate.
Isso – o respeito e a honestidade – não o impede de ser bastante duro contra as estratégias de defesa do aborto, que silenciam as vozes contrárias, fabricam consensos e usam inclusive da epidemia de zika virus para defender o aborto. Razzo não esconde suas posições nem suas intenções. Esse livro é um instrumento de luta: traz aos debatedores anti-aborto argumentos para confrontar seus opositores.
Justamente por isso, é um ato de coragem – repito. Até o momento, os abortistas têm evitado confrontá-lo. Quando isso acontecer, não haverá respeito ou consideração. O autor sabe disso – e escreveu o que escreveu mesmo assim. Porque sentiu que era seu dever como filósofo fazê-lo. Uma sociedade de grandes homens o respeitaria só por isso. Infelizmente, não vivemos uma época povoada e liderada por grandes homens.
Paulo Roberto Silva
Jornalista e empreendedor. Mestre em Integração da América Latina pela USP.
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