O crítico literário que tento ser sente inveja de Bloom a todo momento.
Harold Bloom é uma hipérbole ambulante, tendo em vista sua paixão pela literatura, sua fé em Shakespeare, os elogios aos escritores de seu cânone pessoal que se transforma em ocidental. Isso o faz ser um grande crítico, um grande professor, um grande ensaísta. Não por acaso, afirma, em O cânone americano que o “Sublime Americano em Melville, Whitman, Emerson e Hart Crane se funda na hipérbole extravagante ─ não um exagero, mas um indômito arremesso em que as imagens da voz se quebram e espalham cinzas e fagulhas”. No livro, há muitas dessas fagulhas que acendem a chama da grande literatura.
O título original da obra é The Daemons knows. Segundo nota da tradutora, a expressão ironiza o “God knows”, equivalente ao nosso “só Deus sabe”, transformando-o em “Só o Demo sabe”. Demo será uma palavra-chave dos ensaios, o que para Bloom é o que faz os escritores transcenderem ao humano em busca do sublime. “O elemento comum a esses doze escritores ─ embora disfarçadamente em Eliot ─ é sua receptividade ao influxo demônico.”
A escolha do cânone americano de Harold Bloom recai sobre dozes autores analisados de par em par: Walt Whitman e Herman Melville; Ralph Waldo Emerson e Emily Dickinson; Nathaniel Hawthorne e Henry James; Mark Twain e Robert Frost; Wallace Stevenson e T. S. Eliot; e William Faulkner e Hart Crane. São escritores que transitam entre a prosa e o verso, o ensaio e a ficção, o conto e o romance. Logicamente, são sempre comparados a Shakespeare, algo que me irrita um pouco quando leio as obras do crítico: “Moby Dick é uma tragédia de vingança? Apenas tanto quanto Hamlet: ou seja, de maneira nenhuma”.
O crítico literário que tento ser sente inveja de Bloom a todo momento, como por exemplo, ao falar sobre a sua infância como leitor: “Aos 10 anos de idade, fiquei perplexo e intrigado com Bulkington”, afirma depois de citar trechos de Moby Dick, que foi lido na íntegra por ele nessa época e não na adaptação como a que eu li (e da qual não me recordo nada, menos ainda das minhas reações). Boa parte do livro se compõe dessas memórias de leituras e o que isso gerou de paixão pelos escritores. Sobre Emerson por exemplo, afirma:
Eu lera os ensaios e poemas de Emerson antes de chegar à crise de meio de caminho em julho de 1965. Buscando equilíbrio, li seus diários. Quase meio século depois, continuo a relê-los nas noites de insônia.
Não deixa, como todo bom crítico, de apontar o que há de negativo, mesmo em escritores e obras consagradas. Sobre Faulkner, escreve que O som e a fúria e Absalão, Absalão são “narrativas grandiosas, porém esquematizadas demais”, apesar de considerar isso como limitação sua como leitor, humildade que me parece forçada. Sobre o autor de A terra desolada, afirma:
(…) Eliot traz o pior de dentro de mim. Seu dogmatismo, sua aversão às mulheres, a degradação da existência humana comum me deixam furioso. Seu antissemitismo virulento, na época dos campos de morte de Hitler, nunca diminuiu e se fundiu de uma maneira perigosa com sua posição religiosa neocristã. (…) Lemos não apenas como estetas ─ embora devêssemos ─, mas também como seres responsáveis. Por esse critério, Eliot, apesar de seu dom demônico, é definitivamente inaceitável.
Wilson Martins apontava que a crítica é uma espécie de “triálogo” entre Autor, Crítico e Leitor, sendo que o crítico faz a análise e o leitor faz o julgamento final. Bloom faz esse papel triplo, afinal cria uma voz própria ao analisar as obras (seu estilo é único na forma de escrever) e faz questão de frisar que é um leitor apaixonado acima de tudo e não dá margem para discordar de seu veredicto. O leitor apenas se deleita com suas tiradas (talvez discordando apenas com a tentativa de ver Shakespeare em tudo) e se vê diante de uma obra literária à altura das analisadas pelo ensaísta.
Cassionei Petry
Professor e escritor. Seu novo livro é Cacos e outros pedaços.