Dentre as marcas da chapa vitoriosa ao Planalto está a frase “Mais Brasil, Menos Brasília”. Ainda não se apresentou algo concreto a esse respeito.
A vitória de Jair Bolsonaro (PSL) nas eleições presidenciais de 2018, e a impactante renovação do parlamento brasileiro, levaram a opinião pública a retomar discussões que pareciam sepultadas. O conservadorismo saiu das catacumbas e finalmente apareceu como uma força política importante. No circuito de renovações, passamos a respirar ares dos anos 1960, pela marcante identificação de parte dos políticos eleitos com o regime militar de 1964-1984. Não só balanços e análises sobre esse período precisam ser realizados, mas também, sine ira et studio, considerações sobre o que realmente deve ser superado e o que pode ser restaurado. Aqui a análise recai a respeito do tema do federalismo.
Segue em pauta para todo o Brasil a necessidade de sanar uma doença do federalismo nacional que Oliveira Viana já acusava em suas “Instituições Políticas Brasileiras”, de 1949, ao dizer que: “O mal do federalismo não está na sua descentralização; está antes na sua uniformidade”. Daí a emergência de se tratar cada unidade federativa de forma especial.
O que precisa ser superado no sistema federativo brasileiro
Dentre as marcas da chapa vitoriosa ao Planalto está a frase “Mais Brasil, Menos Brasília”. Ainda não se apresentou algo concreto a esse respeito, que no fundo aponta para uma reformulação do modus operandi do federalismo brasileiro. Na teoria do federalismo, significa superar o modelo centrípeto para atingir um modelo centrífugo. Em outras palavras, é reduzir o grau de centralização política em Brasília e transferir autoridade aos estados e municípios. Acontece que dentro do problema do federalismo brasileiro reside um segundo aspecto que não se resolve apenas com a descentralização. É preciso superar também o modelo federativo simétrico, que insiste em compreender os estados como iguais. Embora o Brasil seja um imenso mosaico com particularidades gritantes, o modo de relacionamento entre União e Unidades Federativas é baseado nessa pressuposta simetria. Trata-se com efeito de uma configuração falha, que gera inúmeras disparidades e não resolve os problemas concretos. Por exemplo, se de um lado São Paulo acaba sendo punido, pois sub-representado em Brasília, porque é tratado de modo análogo aos demais estados, de outro lado, estados fronteiriços passam pelo drama de ter de lidar de forma local com problemas que são da ordem nacional. Exemplo, o controle da entrada de armas e drogas no território nacional.
Exceto Brasília, as demais regiões são tratadas dentro desse princípio simétrico, ainda que de forma proporcional, mas sem considerar a realidade das diferenças e particularidades de cada região. Foi no governo do general Ernesto Geisel (1974-1979) que o Brasil aprofundou um modelo centralizador, tanto na economia quanto no modo de relacionamento entre União e Estados. Por exemplo, em 1974 se deu início à fusão do antigo estado do Rio de Janeiro com a Guanabara, erigindo o atual estado do Rio de Janeiro. O objetivo do regime militar era superar o que então se considerava uma “aberração”, uma unidade federativa como a Guanabara, que já não era capital há 14 anos e aparentemente não estava sintonizada com o modelo político dos demais estados da região. O objetivo era fortalecer um novo estado do Rio de Janeiro para equilibrar o poder com São Paulo, que crescia economicamente. Como sabemos, o resultado foi catastrófico: a Guanabara perdeu poder, dinheiro e capacidade de atração de recursos, e a criminalidade explodiu. O antigo estado do Rio de Janeiro não enriqueceu, perdeu poder, e foi contaminado pelos problemas que surgiram a partir da antiga-Guanabara, sobretudo na questão da violência urbana.
O que alimentava esse pensamento era uma suposição sobre a simetria entre os estados, como se a tarefa do governo federal fosse fazer com que todas as províncias necessariamente tivessem que alcançar o destino de São Paulo. Na verdade se trata de um raciocínio absurdo, pois impõe a regiões diferentes um horizonte que não lhes é comum. Até hoje existe a crença de que um dia o Rio de Janeiro possa se tornar São Paulo. Erro crasso! Isso nunca irá acontecer, para bem ou para mal. O mesmo vale para Minas, Bahia, Maranhão, Santa Catarina.
É salutar que um dos presidentes-militares criticados em entrevistas de campanha pela chapa Jair Bolsonaro-Hamilton Mourão foi justamente Ernesto Geisel. A crítica ao mandatário de então não deveria se restringir ao açodamento da coisa pública, com a criação de mais empresas estatais, mas também ao modo como se pensou o federalismo no Brasil. Cabe nesse sentido um significado prático ao “Mais Brasil, Menos Brasília”, enquanto desenvolvimento de um federalismo assimétrico que considere os estados como diferentes, para que sejam tratados de forma diferente. Não se trata de romper com o paradigma constitucional da forma federativa, mas justamente fazer valer o princípio para a superação de um vício.
Algo que precisa ser restaurado no federalismo brasileiro
Uma das virtudes da experiência administrativa do regime militar de 64 foi a manutenção dos Territórios Federais, dentre os quais Rondônia (até 1982), Amapá, Roraima e o arquipélago de Fernando de Noronha. Na prática era uma maneira da União tratar administrativamente de modo especial certas áreas do país, devido a fatores estratégicos e econômicos – inclusive quando essas configurações não tinham viabilidade financeira para serem estados.
Ainda que pudesse não ser a índole do regime, o relacionamento com os Territórios Federais até 1988 estava mais próximo do ideal de um federalismo assimétrico. Na prática esse modelo aliviava do nossos federalismo mal-acabado, que vai além da extrema centralização política, e compreende o modo padronizado de relacionamento da União com as unidades federativas – pensadas como se fossem iguais ou projetadas para serem iguais. Ao passo que o federalismo assimétrico preconiza uma diferença natural entre os estados, e como os mesmos precisam ser tratados de forma alternativa: uns com mais ação do centro (da União), outros com mais autonomia; uns com baixa intervenção, outros com ações especiais de acordo com as particularidades.
A história dos Territórios Federais no Brasil remonta ao período da Segunda Guerra Mundial, quando em setembro de 1943 o governo federal decidiu desmembrar seis áreas em regiões estratégicas de fronteira do país para exercer uma administração direta. Foram formados os seguintes Territórios Federais: Amapá, Rio Branco, Guaporé, Ponta Porã, Iguaçu e o arquipélago de Fernando de Noronha. Com o fim da guerra e o advento da Constituição de 1946 os Territórios Federais de Ponta Porã e Iguaçu são extintos e incorporados aos estados de origem, Mato Grosso, Paraná e Santa Catarina. O Território Federal do Guaporé, depois chamado de Rondônia, é transformado em estado no ano de 1982. Rio Branco, que também sofreu alteração do nome para Roraima (1962), vira estado com a Constituição de 1988, assim como o território do Amapá. Na mesma época Fernando de Noronha é repassado a Pernambuco, enquanto distrito estadual.
Uma proposta de restauração
Mesmo sem uma existência concreta, a Constituição de 1988 manteve o instituto jurídico-constitucional do “Território Federal”. Segundo o art. 18, § 2º os Territórios Federais são autarquias territoriais integrantes da União, destituídos de autonomia política. Não são entidades federativas, fazem parte do Estado, mas não da organização político-administrativa do país, conforme o caput do art. 18 da Carta. A Constituição ainda manteve uma característica importante, a maleabilidade administrativa, na media em que os Territórios Federais podem ser subdivididos em Municípios (art. 33, § 1º).
Dentro do próprio paradigma constitucional estabelecido é possível, portanto, pensar na criação de novos Territórios Federais. O objetivo principal é imprimir um novo patamar de exercício de autoridade pública nas regiões de fronteira, já que o quadro atual implica no desgaste dos recursos e capacidades dos estados fronteiriços com Segurança Pública e Defesa. Drogas, armas, mercadorias contrabandeadas, tráfico de pessoas e demais ações criminosas acontecem nas regiões fronteiriças, sem que os estados sejam capazes de responder à altura. Ainda que forças nacionais, como Polícia Federal e Forças Armadas, se façam presentes nessas regiões, a atuação está parcialmente dentro do espaço de competência da Segurança Pública dos estados. Há uma série de “zonas cinzentas” nessas regiões. E aquilo que escapa das ações da Polícia Federal ou das Forças Armadas acaba recaindo sobre a alçada das polícias locais, que não estão preparadas e instrumentalizadas, em muitos casos, para lidar com certas situações. Vale notar que 70% das ocorrências relacionadas a crimes de fronteira ocorrem nos estados de Mato Grosso, Mato Grosso do Sul e Paraná, e a literatura é farta em demonstrar como o tráfico de droga que rasga as fronteiras deixa um rastro de crimes e violência – como descreveu Allan de Abreu em Cocaína – a Rota Caipira. O narcotráfico no principal corredor de drogas do Brasil.
Se nos Estados Unidos o “Bolsonaro americano”, o presidente Donald Trump, prometera a construção de um muro para conter o tráfico de drogas e a imigração na fronteira com o México, no Brasil isso não é nem passível de cogitação. Aqui a extensão é muito maior – são 15.719 km de fronteiras terrestres, muito mais recortada e dividida – entre dez países vizinhos. O caso é diferente e quiçá até mais complexo. O “muro” que o Brasil pode fazer é a partir da constituição de novos Territórios Federais nas regiões de fronteiras, como uma verdadeira tripa estreita nas regiões mais críticas. Nesses Territórios a União atuaria de forma direta sobre todo o âmbito da Justiça, Segurança Pública e Defesa, mantendo cooperação com os estados para as demais competências – saúde, educação, etc.. Essa “federalização” retiraria um fardo dos estados fronteiriços e legaria à União a responsabilidade de um problema que de fato é nacional, e não meramente local.
A primeira experiência para a criação desses novos territórios poderia ser através da recriação dos Territórios Federais de Ponta Porã e Iguaçu, o que já compreenderia as fronteiras mais críticas: com o Paraguai e parte significativa com a Bolívia. As figuras abaixo ilustram essa ideia.
Um outro problema federal
Nessa toada de tratar os estados de forma alternativa, no exercício de um federalismo assimétrico, cabe colocar o problema do Rio de Janeiro. Como nas regiões fronteiriças do país, que demandam uma ação federal emergencial, há décadas o segundo estado mais rico do país vive de ações federais de última hora para lidar com o caos social, a violência, a falta de fornecimento de serviços básicos e a corrupção generalizada. Esse conjunto de problemas tem as suas razões estruturais, dentre elas duas que dizem respeito ao tema da política federalista. Primeiro, o Rio jamais se curou da transferência da capital para Brasília, que podou a vocação precípua de Capital Federal. Segundo, e inflando o problema nascido em 1960, foi que a toque de caixa o governo Geisel faz a fusão de dois estados distintos, inventando o que se tem atualmente, a partir de 1975.
Decididamente, não é possível tratar da crise do Rio de Janeiro sem enfrentar o tema do federalismo. A proposta da criação de uma frente para tratar a questão faz parte do mesmo enredo de dar tratamento diferenciado às unidades federativas. No caso do Rio de Janeiro as possibilidades são várias. Federalizar a cidade do Rio, junto com a Baixada Fluminense, transformando a área em segundo Distrito Federal, em que ministérios ou até mesmo um dos poderes por completo seja transferido, dividindo com Brasília o atributo de capital federal é apenas uma proposta, cujas pesquisas foram inicialmente desenvolvidas pelo professor Christian Lynch (IESP-UERJ). Mas nada impede que outras possibilidades sejam aventadas, todas possíveis e dentro dos limites da Constituição Federal de 1988, tais como:
1) Fazer do município do Rio de Janeiro uma segunda capital, na forma de um município especial, dotado de polícia municipal (reconfigurando a atual Guarda Municipal), e recebendo o Palácio da Presidência – aproveitando a reforma no Palácio São Cristóvão, inclusive – e trazendo mais outros ministérios;
2) Mudar formalmente o município sede do governo estadual para Niterói, sem desmembramento do Estado do Rio de Janeiro;
3) Elevar todo o Estado do Rio de Janeiro a segundo Distrito Federal, mas sendo diferente de Brasília, comportando a divisão em municípios;
4) Tornar a pasta da Segurança Pública competência da União, sustentando e gerenciando essas atividades no âmbito do ex-Estado completo, para um Distrito Federal do Rio de Janeiro. As pastas da educação e saúde do município especial ou federal (exceto o judiciário) sendo mantidas com recursos dos royalties do petróleo. Esta proposta poderia contornar as maiores dificuldades das demais: desfusão, financiamento e conflito federativo.
Esse conjunto de possibilidades não corresponde a uma volta ao passado, mas procura o encontro de saídas para além do mero paliativo. A oportunidade para se aventar mudanças é aberta por ocasiões como a Intervenção Federal – que de hipotética se tornou realidade em 2018.
Luiz Ramiro
Professor de Segurança Pública (UFF/CEDERJ) e Coordenador-Geral na Fundação Biblioteca Nacional.
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